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A salva de 21 tiros dada no rio Tejo pelo navio Vasco da Gama, da Marinha de Guerra, marcou o final da tarde de 23 de Fevereiro de 1916, altura em que Portugal tomou posse dos 38 navios alemães ancorados em Lisboa.
O primeiro foi o Santa Úrsula, depois rebaptizado de Estremadura, com 3771 toneladas brutas. O acto, com pormenores beligerantes, foi seguido depois em outros portos, e conduziu à declaração de guerra por parte da Alemanha.
O primeiro passo para o envolvimento oficial de Portugal na I Guerra Mundial, envolvendo num conflito directo com as forças do Kaiser e com o Império Austro-Húngaro, tinha sido dado no início de Fevereiro de 1916. No dia sete desse mês, o Governo republicano publicou uma lei onde, entre outros aspectos, ficava estabelecido que poderia requisitar, “em qualquer ocasião”, as “matérias-primas e os meios de transporte que forem indispensáveis à defesa ou economia nacional, que se encontrem nos domínios da República”.
No dia 23 foi dado o segundo passo, com a entrada a bordo nos navios alemães ancorados em Lisboa.
Na mão, os emissários portugueses levavam uma carta pró-forma de notificação da requisição dos navios, com base numa lei publicada nesse mesmo dia.
Esta alegava que a requisição se tornara necessária devido à falta de navios para transporte marítimo, o que dificultava o acesso do país a muitos produtos indispensáveis para a subsistência da população (facto que já dera origem a vários distúrbios em diversas localidades). De acordo com nova lei, que conta com a assinatura de Bernardino Machado (presidente) e Afonso Costa (chefe do Governo), caberia ao Ministério da Marinha avaliar os navios e todos os seus pertences.
Ao todo, foram apreendidos 72 navios e respectivas cargas, espalhados por todos os territórios portugueses, como Angola e Moçambique , mas com destaque para Lisboa (onde estavam mais de metade). No Porto, por exemplo, estava apenas uma embarcação, o Vesta. Diversos vapores precisaram de reparações, já que, embora sem incidentes, o processo de requisição confrontou-se com peças escondidas ou danificadas pelas tripulações alemãs.
As relações comerciais entre Portugal e a Alemanha tinham-se intensificado no virar do século, à medida que o Kaiser tentava ganhar espaço no palco europeu e mundial.
Em 1910, dois anos após a assinatura de um acordo comercial entre os dois países, os alemães ultrapassam os ingleses. Nesse ano, conforme destaca Sacuntala de Miranda, “para 906 navios britânicos, com tonelagem de 1.594.969, entram em Portugal 723 navios alemães, com tonelagem de 1.598.449”. Por essa altura, a Alemanha tinha doze linhas de navegação comercial a fazer escala regular em Lisboa, e vários cidadãos alemães viviam na capital portuguesa e na cidade do Porto.
Quando se dá a requisição dos navios, que tinham ficado estacionados nos portos portugueses com o eclodir da guerra, a decisão já estava mais do que tomada ao nível do governo de Afonso Costa, em articulação com os ingleses.
Era só uma questão de saber quando é que se avançava. Publicamente, numa entrevista ao jornal O Século, a 10 de Fevereiro, o deputado Leote do Rego defende de forma vincada o “aproveitamento temporário” dos vapores alemães. “O governo não deve hesitar em fazê-lo, embora preze aos germanófilos, aos seus falsos medos de zeppelins, de complicações, de açoites de qualquer Von, medos que se escondem atrás das lamúrias de certos loiros Falstaffs, sobre a sorte dos pobres soldadinhos, que terão de deixar o amanho das suas vinhas.”
Os receios ingleses
O governo de Afonso Costa, formado nos finais de 1915, queria entrar no conflito ao lado dos aliados, promovendo assim o regime republicano e protegendo os territórios em África. A falta de navios por parte dos ingleses acabou por proporcionar essa intervenção. O historiador Luís Alves de Fraga refere que, após várias negociações, o gabinete de guerra britânico invocou, a 16 de Fevereiro, de modo formal, a aliança com Portugal para requisitar os navios alemães.
Existiam no entanto, vários receios por parte do gabinete de guerra britânico. Num relatório classificado como “secreto”, datado de dia 12 de Fevereiro e onde se analisam as possíveis consequências da iniciativa portuguesa, refere-se ser provável que tal acto justifique a declaração de guerra por parte da Alemanha.
Esta, por sua vez, poderia levar a confrontos em Moçambique (como aconteceu) mas poderia também levar Espanha a apoiar a Alemanha e o Império Austro-Húngaro.
O clero espanhol, constatava o relatório, era fortemente pró-alemão, e esta poderia ser uma ocasião para a Espanha tentar voltar a deter o domínio da Península Ibérica. “Se o exército espanhol é mau, o português é certamente muito pior”, sublinhava-se, realçando que, com a requisição dos navios, a Inglaterra ficava moralmente responsável por apoiar Portugal, o que poderia implicar o envio de “uma considerável força expedicionária para Portugal”, numa nova frente de combate.
A requisição dos navios poderia “envolver a Grã-Bretanha em pesadas responsabilidades militares”, e proporcionar a Portugal a justificação para pedir empréstimos de grande dimensão. “Se os navios em questão são tão essenciais para o esforço de guerra de modo a justificar o preço que poderá ter de ser pago é uma questão para ser decidida pelo governo de sua majestade”. A Espanha acabou por se manter neutral, aliviando assim o nível de risco.
A falta de navios de transporte era encarada como um grave problema pelo lado inglês. Um outro documento do gabinete de guerra, este classificado de “muito secreto” e datado de 11 de Fevereiro, alertava para o facto de o Almirantado ter informado que havia sérios atrasos no programa de construção naval, devido, nomeadamente, à falta de pessoal qualificado.
“Tendo em conta a actual insuficiência de tonelagem disponível e a probabilidade de maior actividade por parte dos submarinos inimigos no curto prazo”, o gabinete de guerra defende que a resolução deste problema é de “importância primordial”.
Conforme refere Luís Alves de Fraga, a apreensão dos navios alemães fornece a Portugal uma tonelagem bruta superior à da marinha mercante nacional. No entanto, o acordo com a Inglaterra pressupunha a passagem para os britânicos da maior parte dos navios, embora navegassem com bandeira portuguesa.
Foi, aliás, a passagem de muitos das embarcações para as mãos inglesas que levou Portugal ao estado de guerra com a Alemanha. A 2 de Março de 1916, Sidónio Pais, então responsável da República portuguesa junto do governo do Kaiser, enviou um telegrama para Lisboa onde sustentava que ainda se podia chegar a uma solução pacífica caso fosse “assegurado que navios não se destinam a inimigos da Alemanha”.
Uma semana depois, no dia 9, o ministro plenipotenciário alemão em Portugal, o barão Otto Karl Von Rosen, entregou finalmente a declaração de guerra do seu país.
Diferentes destinos
Depois de ter cedido os navios à Grã-Bretanha, como estava estipulado, à disposição do governo republicano ficaram embarcações que somavam 85.208 toneladas, o equivalente a 35% do total. Em troca, Portugal entraria na Guerra com o apoio inglês, o que significava apoiar a formação e manutenção de um corpo expedicionário e um empréstimo financeiro, 25 anos após a bancarrota do país.
Vários dos navios apreendidos sofreram um destino algo irónico, afundados por submarinos alemães.
Foi o caso do Leça e do Cascais, alvos, em Dezembro de 1916, dos torpedos lançados pelo UC 18, comandado por Wilhelm Kiel, perto da costa francesa.
Entre os navios que acabaram por ficar em mãos portuguesas houve destinos diversos. Alguns, poucos, serviram de apoio à Armada portuguesa, como o cruzador auxiliar Gil Eanes. Vários entraram para a empresa de Transportes Marítimos do Estado. Há, ainda, casos especiais, como o do Flores, que após ter sido devolvido pelos ingleses foi utilizado pela Marinha Portuguesa como navio-escola com o nome de Sagres (o actual navio foi construído também na Alemanha, mas em 1937).
Após a declaração de guerra da Alemanha o Governo republicano muda, inevitavelmente, de tom. A 20 de Abril são banidos os súbditos alemães de ambos os sexos, aos quais são dados cinco dias para saírem do país. A excepção são os homens entre 16 e 45 anos, que, para não poderem participar no esforço de guerra, “serão conduzidos para o lugar que for designado pelo Governo”. Ou seja, são aprisionados.
Proíbe-se todo o comércio com o inimigo e inicia-se uma intervenção sobre os bens dos cidadãos tidos como súbditos da Alemanha. Quanto à carga dos navios apreendidos, estabelece-se que “as mercadorias sujeitas a deterioração, ou de difícil guarda e conservação, podem ser vendidas em hasta pública por intermédio das alfândegas”, com o respectivo encaixe financeiro a ficar depositado na Caixa Geral de Depósitos (CGD).
Embora fosse difícil perceber quem eram os verdadeiros proprietários das mercadorias (se alemães ou se estas tinham sido pagas por um outro país, aliado ou neutral), foram vendidos diversos produtos que estavam nos navios, como aveia, sacas de café, placas fotográficas, barricas com anilina ou cimento, tabaco e tanques com ferro galvanizado.
Pelo meio, houve uma carga mais preciosa: a bordo do Cheruskia (depois Leixões), um dos navios apreendidos em Lisboa, estavam diversas peças arqueológicas de Assur, antiga Mesopotâmia, como uma estátua suméria e pequenas placas com inscrições cuneiformes e um cofre com mais de 3000 anos. O espólio, reencaminhado para a Universidade do Porto, era suficientemente importante para, após o final da guerra, em 1926, as autoridades alemãs o quererem reaver. Em troca, deram cerca de 600 várias outras peças de valor histórico, com destaque para o espólio egípcio. Hoje, parte dessas peças estão expostas no Museu Natural da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto.
O ataque aos “bens dos inimigos”
A necessidade de organizar o que eram os bens de cidadãos residentes em Portugal considerados agora adversários, levou, a 4 de Maio de 1917, à criação da Intendência dos bens dos inimigos. A este organismo, que funcionou no âmbito do Ministério das Finanças, cabia “superintender a administração dos bens arrolados” e “promover a liquidação dos bens dos inimigos sempre que dela não resulte inconveniente”.
O processo foi tudo menos simples e rápido e marcou fortemente, pela negativa, diversas famílias enraizadas no país, algumas das quais com grande peso na sociedade portuguesa, como os Burmester e os d’Orey. Neste último caso, os membros da família eram descendentes de um exilado alemão que se instalara em Portugal 65 anos antes. Logo no dia em que foi publicada a lei que estabeleceu quem era considerado súbdito inimigo, três membros da família d’Orey, Rui, Waldemar e Guilherme (irmãos), apresentaram, como refere Maria João da Câmara, autora de um livro sobre os Orey, um requerimento no Ministério dos Negócios Estrangeiros no qual reafirmam a nacionalidade portuguesa.
No entanto, não há resposta, e têm de sair do país. Estes responsáveis pela empresa de transportes de pessoas e mercadorias, que estavam ligados também ao comércio de ferro, “vêem-se obrigados a partir para Espanha, a 10 de Maio de 1916, rumo a Pontevedra”. A firma, que mantém a sua actividade, fica então nas mãos de um depositário-administrador, José Augusto Prestes, ficando José Antunes dos Santos como gerente.
Um documento da Intendência dos bens dos inimigos, cujo arquivo está hoje na Torre do Tombo (mas ainda em fase de tratamento), demonstra que, no início de Junho, Waldemar d’Orey e outro membro da família entregam um pedido de subsídios de alimento. A análise do valor a atribuir ficava a cargo de José Augusto Prestes.
Pelo meio, e segundo Maria João da Câmara (que é também bisneta do fundador da firma), José Antunes dos Santos tentava “adquirir a empresa através de manobras pouco edificantes”.
Após uma recolha de assinaturas onde se pedia a revogação da expulsão dos membros desta família, “com dezenas de carimbos de firmas lisboetas”, a interdição acaba por ser retirada a 20 de Outubro. É o regresso dos Orey, cerca de seis meses depois. Diferente destino tiveram várias outras empresas.
Evitar especulações
Ao todo, foram abertas 1148 cadernetas individuais na CGD, ligadas a contas bancárias de pessoas identificadas como inimigas do Estado (incluindo pessoas e empresas portuguesas que tinham relações próximas com os indivíduos referenciados pelas autoridades).
Nessas contas constam valores em numerário, títulos e objectos preciosos arrolados e depositados no banco público pelos respectivos depositários-administradores. No arquivo da Intendência dos bens dos inimigos estão também cerca de 890 processos ligados aos arrolamentos dos bens. Entre as empresas e instituições afectadas, além da família Burmester, estão o Clube Alemão de Lisboa, o Deutsche Bank, a Igreja Evangélica Alemã, a Bayer, a Siemens, o Colégio Alemão e o Consulado Alemão, apenas para dar alguns exemplos. São vendidos móveis e imóveis, além de diversos produtos (como sal, vinhos em pipas e garrafas, cortiça, produtos químicos, couros e automóveis).
Aos antigos donos eram devolvidos objectos como roupas, retratos e quadros de família.
As hastas públicas devem ter sido aproveitadas por algumas pessoas em negócios pouco claros, já que, no final de Setembro de 1917, são dadas indicações para que uma venda de activos de uma empresa fosse feita em bloco para evitar conluios e especulações que resultassem “na adjudicação dos bens do inimigo por preço diminuto ou muito inferior ao seu valor”.
Pelo meio houve casos em que os antigos proprietários tentaram passar a tempo a propriedade, no papel, para cidadãos não conotados com o inimigo, colocando assim os seus bens a salvo. No arquivo da Intendência dos bens inimigos é relatado um caso, da firma Wimmer, na qual, segundo o documento enviado ao Tribunal do Comércio de Lisboa, se recorreu a “verdadeiras manigâncias para simular passagens de negócios a outras entidades”.
Neste processo, nem a CUF, um dos maiores grupos empresariais naquela época, ficou imune. A Inglaterra suspeitava das simpatias alemãs de Alfredo da Silva, e já tinha congelado as importações de produtos do patrão da CUF. A pressão aumentou com a declaração de guerra da Alemanha.
Foi exigido o afastamento do alemão Martin Weinstein, sócio e amigo de longa data de Alfredo da Silva. Weinstein vende as suas acções a Alfredo da Silva e parte para Madrid onde virá a falecer.
A contra-gosto, o empresário português acede a uma análise do seu grupo, que conta com a participação do presidente da Câmara do Comércio Inglês, Garland Jayne. No dia 10 de Março de 1916, fica inscrito nas actas da empresa que “o Sr. Garland Jayne (...) disse que quer pela inspecção do perito contabilista, quer pelo que ele estava vendo agora, reconhecia que na CUF havia e há sempre a maior correcção, não tendo ela feito coisa alguma contrária aos interesses da Grã-Bretanha e dos seus aliados”. O perigo fora afastado.
Pagar no futuro
Pesando apenas as questões económicas do impacto e do envolvimento de Portugal na 1ª Guerra Mundial, fica evidente que as contas do país ficaram a perder.
Com a requisição dos navios alemães ficou aberta uma linha de crédito inglesa para o esforço de guerra, cuja soma, em 1918, segundo o historiador António José Telo, era de 15,6 milhões de libras. Sete anos depois, esse valor subira para 22,7 milhões de libras, devido aos juros acumulados e ausência de amortizações. Ou seja, um aumento de 45,5%.
Os encargos começaram logo em 1914-1915, com a inscrição de despesas extraordinárias para “material de preparação para a guerra”. O Orçamento do Estado para 1916-1917, datado de 26 de Maio de 1916, refere a abertura de uma conta especial, no Ministério das Finanças, de 75 milhões de escudos.
Esta, denominada de “despesas excepcionais resultantes da guerra”, era a conta à qual seriam deduzidas “todas as despesas de carácter militar, económico e financeiro, não compreendidas no orçamento normal do Estado”. As despesas ordinárias para 1916-1917 estimadas para a Metrópole eram de 77,7 milhões de escudos. A dívida pública era então de 30,6 milhões. Dos 75 milhões disponíveis para a guerra, as principais fatias cabiam ao Ministério da Guerra (40 milhões), ao Ministério da Marinha (12 milhões) e ao Ministério das Colónias (10 milhões).
No orçamento do ano seguinte (1917-1918), datado de 6 de Setembro de 1917, as “despesas excepcionais”, “durante o estado de guerra e por motivo de guerra”, eram já de 150 milhões de escudos, cabendo ao Ministério da Guerra 100 milhões.
As colónias ficavam agora com 20 milhões e a Marinha com outros 8 milhões (parte dos quais seria para pagar o início da construção de três submarinos). Para tal, o governo ficava autorizado a realizar “empréstimos e outras operações de crédito”.
Em 1918-1919 (já com o conflito terminado), o valor das despesas extraordinárias com a guerra é de 100 milhões de escudos. Nesta altura era já Sidónio Pais quem governava, ficando o Ministério da Guerra com 59,6 milhões, o das Colónias com 15 milhões e, em terceiro lugar, no lugar da Marinha, vinha o Ministério das Finanças, com 10,3 milhões de escudos.
Entre as suas despesas inscritas estava a contabilização dos “juros e amortizações da dívida de guerra”. A dívida pública era agora contabilizada em 31,6 milhões de escudos, pouco mais do que em 1916-1917. Que as contas ligadas à guerra ficaram algo descontroladas é evidenciado por uma lei de 7 de Janeiro de 1924, onde se estipulava que, a partir da publicação desse decreto, passava a ser “absolutamente proibido requisitar ao Ministério das Finanças (...) quaisquer importâncias em conta da verba descrita no Orçamento do Estado, sob a rubrica ‘despesas excepcionais resultantes da guerra’”. De acordo com a nova lei, ficavam “civil e criminalmente responsáveis os organismos do Estado e respectivos funcionários que procederem em contrário”.
As contas de Salazar
Em 1926, oito anos depois do fim da guerra, ainda foi aberto “um crédito especial” de 2,2 milhões de escudos para liquidar “todas as despesas excepcionais” anteriores ao ano económico de 1924-1925. Já em Março de 1927, após a queda do regime republicano (na sequência do golpe militar de 28 de Maio de 1926), e de acordo com um outro decreto, faz-se a “consolidação” nas contas públicas da dívida de guerra contraída por Portugal junto da Grã-Bretanha.
Era, refere-se, “necessário proceder às indispensáveis operações de escrita a fim de se transferir da conta ‘operações de tesouraria’ para a competente conta de receita e despesa, inscrevendo-se, consequentemente, no Orçamento Geral do Estado, em receita, a soma a consolidar avaliada no citado acordo de 20.133.589 libras”. Feito o câmbio, eram 90,6 milhões de escudos (numa conta que não sugere a inclusão de juros).
Ao Ministério das Finanças era aberto um crédito de 11,8 milhões de escudos, soma que ficou inscrita sob uma nova rubrica: “Dívida de guerra de Portugal à Grã-Bretanha, primeira prestação da anuidade de 1927”. O empréstimo ia demorar a ser pago.
Entre 1919-1920 e 1920-1921 a dívida pública mais do que duplicou, chegando ao redor dos 50 milhões de escudos. Em 1921-22 já era superior a 100 milhões, chegando a 1928-1929 acima do patamar dos 400 milhões de escudos. Nem tudo, obviamente, foi por causa do envolvimento directo na guerra (há todo o ambiente económico derivado do conflito mundial, como o aumento de preços e diferenças cambiais, com destaque para os produtos alimentares, num ambiente de crise económica e financeira) mas este está certamente incluído nas contas da derrapagem.
No final de 1939, quando a Europa vivia o início de uma 2ª Guerra Mundial, e certamente por causa disso, Salazar manda os organismos públicos fazerem um levantamento urgente sobre as repercussões da guerra de 1914-1918 nas receitas e despesas do Estado.
A análise feita pela Direcção Geral da Contabilidade Pública refere que o conflito “pouco influenciou as receitas do Estado”, e, num comentário critico, sublinha que “só desde princípios de 1918 começaram a ser publicados vários diplomas com a intenção especial de ocorrer às excessivas despesas do Estado que de ano para ano vinham aumentando em sensível progressão”.
Nesse ano, tomam-se medidas como a subida dos direitos sobre alguns tipos de tabacos e imposto de selo, “aumentam-se em 5% as taxas do imposto de rendimento sob os vencimentos dos funcionários públicos”, e é instituído “o imposto sobre os lucros excepcionais derivados do estado de guerra” do qual “não consta, porém”, execução em contas públicas.
Os organismos públicos do Estado Novo destacam que após ter sido “declarada a guerra entre Portugal e a Alemanha, em 1916, é que começam verdadeiramente as despesas excepcionais resultantes da guerra e se começa a esboçar o agravamento do custo de vida”.
Ao mesmo tempo, não terá havido a preocupação em “procurar aumentar as receitas públicas para fazer face ao aumento das despesas públicas”.
A ideia geral, refere-se, é que depois do fim da guerra os preços voltariam a estabelecer-se tal como antes de 1914. No entanto, é no início do ano económico de 1918-19 que “as despesas públicas começam propriamente a sofrer a influência da guerra”. Em 1919-1920, as receitas do Estado ascendem a 217,2 milhões de escudos, dos quais 8,3 milhões são receitas extraordinárias derivadas do conflito. Já as despesas somam 315,8 milhões de escudos, dos quais 87,8 milhões são encargos da guerra devidos pelos ministérios da Guerra e das Finanças.
As últimas indemnizações
Na década de 1930 já os cidadãos alemães tinham recebido os “bens imobiliários e créditos não cobrados que se achavam sequestrados e arrolados”. No entanto, faltava ainda pagar diversas indemnizações a cidadãos portugueses lesados pelo conflito.
Um advogado, Levy Marques da Costa, publica uma petição em Junho de 1934 sobre os “sinistrados civis portugueses da Grande Guerra” (como em Angola e Moçambique), que depois irá remeter a Salazar, e onde dá conta que Portugal já recebera da Alemanha 2,3 milhões de escudos (embora as indemnizações ficassem bastante abaixo do esperado por Portugal).
Aos sinistrados que ainda não tinham sido ressarcidos o Estado devia cerca de 22,6 milhões de escudos.
“Os encargos da guerra, qualquer que seja a sua natureza, que não puderem ser pagos pelas indemnizações obtidas do inimigo, devem ser suportados por toda a Nação”, defende Levy Marques da Costa.
Finalmente, no Verão de 1937, já com a guerra civil a atravessar Espanha, é publicada uma lista com mais de 300 nomes de pessoas e entidades, civis e militares (ou seus familiares), com o valor da respectiva indemnização a ser paga.
É o caso, por exemplo, de Francisco Marques Vieira, residente na vila de Chibia (sul de Angola, perto de Lubango) e que foi um dos vários civis afectados por “prejuízos materiais causados pelo combate de Naulila, e conjuntamente pela subsequente revolta indígena”. Duas décadas depois da intervenção militar de Portugal na I Guerra Mundial, as contas ainda estavam a ser fechadas.
O primeiro foi o Santa Úrsula, depois rebaptizado de Estremadura, com 3771 toneladas brutas. O acto, com pormenores beligerantes, foi seguido depois em outros portos, e conduziu à declaração de guerra por parte da Alemanha.
O primeiro passo para o envolvimento oficial de Portugal na I Guerra Mundial, envolvendo num conflito directo com as forças do Kaiser e com o Império Austro-Húngaro, tinha sido dado no início de Fevereiro de 1916. No dia sete desse mês, o Governo republicano publicou uma lei onde, entre outros aspectos, ficava estabelecido que poderia requisitar, “em qualquer ocasião”, as “matérias-primas e os meios de transporte que forem indispensáveis à defesa ou economia nacional, que se encontrem nos domínios da República”.
No dia 23 foi dado o segundo passo, com a entrada a bordo nos navios alemães ancorados em Lisboa.
Na mão, os emissários portugueses levavam uma carta pró-forma de notificação da requisição dos navios, com base numa lei publicada nesse mesmo dia.
Esta alegava que a requisição se tornara necessária devido à falta de navios para transporte marítimo, o que dificultava o acesso do país a muitos produtos indispensáveis para a subsistência da população (facto que já dera origem a vários distúrbios em diversas localidades). De acordo com nova lei, que conta com a assinatura de Bernardino Machado (presidente) e Afonso Costa (chefe do Governo), caberia ao Ministério da Marinha avaliar os navios e todos os seus pertences.
Ao todo, foram apreendidos 72 navios e respectivas cargas, espalhados por todos os territórios portugueses, como Angola e Moçambique , mas com destaque para Lisboa (onde estavam mais de metade). No Porto, por exemplo, estava apenas uma embarcação, o Vesta. Diversos vapores precisaram de reparações, já que, embora sem incidentes, o processo de requisição confrontou-se com peças escondidas ou danificadas pelas tripulações alemãs.
As relações comerciais entre Portugal e a Alemanha tinham-se intensificado no virar do século, à medida que o Kaiser tentava ganhar espaço no palco europeu e mundial.
Em 1910, dois anos após a assinatura de um acordo comercial entre os dois países, os alemães ultrapassam os ingleses. Nesse ano, conforme destaca Sacuntala de Miranda, “para 906 navios britânicos, com tonelagem de 1.594.969, entram em Portugal 723 navios alemães, com tonelagem de 1.598.449”. Por essa altura, a Alemanha tinha doze linhas de navegação comercial a fazer escala regular em Lisboa, e vários cidadãos alemães viviam na capital portuguesa e na cidade do Porto.
Quando se dá a requisição dos navios, que tinham ficado estacionados nos portos portugueses com o eclodir da guerra, a decisão já estava mais do que tomada ao nível do governo de Afonso Costa, em articulação com os ingleses.
Era só uma questão de saber quando é que se avançava. Publicamente, numa entrevista ao jornal O Século, a 10 de Fevereiro, o deputado Leote do Rego defende de forma vincada o “aproveitamento temporário” dos vapores alemães. “O governo não deve hesitar em fazê-lo, embora preze aos germanófilos, aos seus falsos medos de zeppelins, de complicações, de açoites de qualquer Von, medos que se escondem atrás das lamúrias de certos loiros Falstaffs, sobre a sorte dos pobres soldadinhos, que terão de deixar o amanho das suas vinhas.”
Os receios ingleses
O governo de Afonso Costa, formado nos finais de 1915, queria entrar no conflito ao lado dos aliados, promovendo assim o regime republicano e protegendo os territórios em África. A falta de navios por parte dos ingleses acabou por proporcionar essa intervenção. O historiador Luís Alves de Fraga refere que, após várias negociações, o gabinete de guerra britânico invocou, a 16 de Fevereiro, de modo formal, a aliança com Portugal para requisitar os navios alemães.
Existiam no entanto, vários receios por parte do gabinete de guerra britânico. Num relatório classificado como “secreto”, datado de dia 12 de Fevereiro e onde se analisam as possíveis consequências da iniciativa portuguesa, refere-se ser provável que tal acto justifique a declaração de guerra por parte da Alemanha.
Esta, por sua vez, poderia levar a confrontos em Moçambique (como aconteceu) mas poderia também levar Espanha a apoiar a Alemanha e o Império Austro-Húngaro.
O clero espanhol, constatava o relatório, era fortemente pró-alemão, e esta poderia ser uma ocasião para a Espanha tentar voltar a deter o domínio da Península Ibérica. “Se o exército espanhol é mau, o português é certamente muito pior”, sublinhava-se, realçando que, com a requisição dos navios, a Inglaterra ficava moralmente responsável por apoiar Portugal, o que poderia implicar o envio de “uma considerável força expedicionária para Portugal”, numa nova frente de combate.
A requisição dos navios poderia “envolver a Grã-Bretanha em pesadas responsabilidades militares”, e proporcionar a Portugal a justificação para pedir empréstimos de grande dimensão. “Se os navios em questão são tão essenciais para o esforço de guerra de modo a justificar o preço que poderá ter de ser pago é uma questão para ser decidida pelo governo de sua majestade”. A Espanha acabou por se manter neutral, aliviando assim o nível de risco.
A falta de navios de transporte era encarada como um grave problema pelo lado inglês. Um outro documento do gabinete de guerra, este classificado de “muito secreto” e datado de 11 de Fevereiro, alertava para o facto de o Almirantado ter informado que havia sérios atrasos no programa de construção naval, devido, nomeadamente, à falta de pessoal qualificado.
“Tendo em conta a actual insuficiência de tonelagem disponível e a probabilidade de maior actividade por parte dos submarinos inimigos no curto prazo”, o gabinete de guerra defende que a resolução deste problema é de “importância primordial”.
Conforme refere Luís Alves de Fraga, a apreensão dos navios alemães fornece a Portugal uma tonelagem bruta superior à da marinha mercante nacional. No entanto, o acordo com a Inglaterra pressupunha a passagem para os britânicos da maior parte dos navios, embora navegassem com bandeira portuguesa.
Foi, aliás, a passagem de muitos das embarcações para as mãos inglesas que levou Portugal ao estado de guerra com a Alemanha. A 2 de Março de 1916, Sidónio Pais, então responsável da República portuguesa junto do governo do Kaiser, enviou um telegrama para Lisboa onde sustentava que ainda se podia chegar a uma solução pacífica caso fosse “assegurado que navios não se destinam a inimigos da Alemanha”.
Uma semana depois, no dia 9, o ministro plenipotenciário alemão em Portugal, o barão Otto Karl Von Rosen, entregou finalmente a declaração de guerra do seu país.
Diferentes destinos
Depois de ter cedido os navios à Grã-Bretanha, como estava estipulado, à disposição do governo republicano ficaram embarcações que somavam 85.208 toneladas, o equivalente a 35% do total. Em troca, Portugal entraria na Guerra com o apoio inglês, o que significava apoiar a formação e manutenção de um corpo expedicionário e um empréstimo financeiro, 25 anos após a bancarrota do país.
Vários dos navios apreendidos sofreram um destino algo irónico, afundados por submarinos alemães.
Foi o caso do Leça e do Cascais, alvos, em Dezembro de 1916, dos torpedos lançados pelo UC 18, comandado por Wilhelm Kiel, perto da costa francesa.
Entre os navios que acabaram por ficar em mãos portuguesas houve destinos diversos. Alguns, poucos, serviram de apoio à Armada portuguesa, como o cruzador auxiliar Gil Eanes. Vários entraram para a empresa de Transportes Marítimos do Estado. Há, ainda, casos especiais, como o do Flores, que após ter sido devolvido pelos ingleses foi utilizado pela Marinha Portuguesa como navio-escola com o nome de Sagres (o actual navio foi construído também na Alemanha, mas em 1937).
Após a declaração de guerra da Alemanha o Governo republicano muda, inevitavelmente, de tom. A 20 de Abril são banidos os súbditos alemães de ambos os sexos, aos quais são dados cinco dias para saírem do país. A excepção são os homens entre 16 e 45 anos, que, para não poderem participar no esforço de guerra, “serão conduzidos para o lugar que for designado pelo Governo”. Ou seja, são aprisionados.
Proíbe-se todo o comércio com o inimigo e inicia-se uma intervenção sobre os bens dos cidadãos tidos como súbditos da Alemanha. Quanto à carga dos navios apreendidos, estabelece-se que “as mercadorias sujeitas a deterioração, ou de difícil guarda e conservação, podem ser vendidas em hasta pública por intermédio das alfândegas”, com o respectivo encaixe financeiro a ficar depositado na Caixa Geral de Depósitos (CGD).
Embora fosse difícil perceber quem eram os verdadeiros proprietários das mercadorias (se alemães ou se estas tinham sido pagas por um outro país, aliado ou neutral), foram vendidos diversos produtos que estavam nos navios, como aveia, sacas de café, placas fotográficas, barricas com anilina ou cimento, tabaco e tanques com ferro galvanizado.
Pelo meio, houve uma carga mais preciosa: a bordo do Cheruskia (depois Leixões), um dos navios apreendidos em Lisboa, estavam diversas peças arqueológicas de Assur, antiga Mesopotâmia, como uma estátua suméria e pequenas placas com inscrições cuneiformes e um cofre com mais de 3000 anos. O espólio, reencaminhado para a Universidade do Porto, era suficientemente importante para, após o final da guerra, em 1926, as autoridades alemãs o quererem reaver. Em troca, deram cerca de 600 várias outras peças de valor histórico, com destaque para o espólio egípcio. Hoje, parte dessas peças estão expostas no Museu Natural da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto.
O ataque aos “bens dos inimigos”
A necessidade de organizar o que eram os bens de cidadãos residentes em Portugal considerados agora adversários, levou, a 4 de Maio de 1917, à criação da Intendência dos bens dos inimigos. A este organismo, que funcionou no âmbito do Ministério das Finanças, cabia “superintender a administração dos bens arrolados” e “promover a liquidação dos bens dos inimigos sempre que dela não resulte inconveniente”.
O processo foi tudo menos simples e rápido e marcou fortemente, pela negativa, diversas famílias enraizadas no país, algumas das quais com grande peso na sociedade portuguesa, como os Burmester e os d’Orey. Neste último caso, os membros da família eram descendentes de um exilado alemão que se instalara em Portugal 65 anos antes. Logo no dia em que foi publicada a lei que estabeleceu quem era considerado súbdito inimigo, três membros da família d’Orey, Rui, Waldemar e Guilherme (irmãos), apresentaram, como refere Maria João da Câmara, autora de um livro sobre os Orey, um requerimento no Ministério dos Negócios Estrangeiros no qual reafirmam a nacionalidade portuguesa.
No entanto, não há resposta, e têm de sair do país. Estes responsáveis pela empresa de transportes de pessoas e mercadorias, que estavam ligados também ao comércio de ferro, “vêem-se obrigados a partir para Espanha, a 10 de Maio de 1916, rumo a Pontevedra”. A firma, que mantém a sua actividade, fica então nas mãos de um depositário-administrador, José Augusto Prestes, ficando José Antunes dos Santos como gerente.
Um documento da Intendência dos bens dos inimigos, cujo arquivo está hoje na Torre do Tombo (mas ainda em fase de tratamento), demonstra que, no início de Junho, Waldemar d’Orey e outro membro da família entregam um pedido de subsídios de alimento. A análise do valor a atribuir ficava a cargo de José Augusto Prestes.
Pelo meio, e segundo Maria João da Câmara (que é também bisneta do fundador da firma), José Antunes dos Santos tentava “adquirir a empresa através de manobras pouco edificantes”.
Após uma recolha de assinaturas onde se pedia a revogação da expulsão dos membros desta família, “com dezenas de carimbos de firmas lisboetas”, a interdição acaba por ser retirada a 20 de Outubro. É o regresso dos Orey, cerca de seis meses depois. Diferente destino tiveram várias outras empresas.
Evitar especulações
Ao todo, foram abertas 1148 cadernetas individuais na CGD, ligadas a contas bancárias de pessoas identificadas como inimigas do Estado (incluindo pessoas e empresas portuguesas que tinham relações próximas com os indivíduos referenciados pelas autoridades).
Nessas contas constam valores em numerário, títulos e objectos preciosos arrolados e depositados no banco público pelos respectivos depositários-administradores. No arquivo da Intendência dos bens dos inimigos estão também cerca de 890 processos ligados aos arrolamentos dos bens. Entre as empresas e instituições afectadas, além da família Burmester, estão o Clube Alemão de Lisboa, o Deutsche Bank, a Igreja Evangélica Alemã, a Bayer, a Siemens, o Colégio Alemão e o Consulado Alemão, apenas para dar alguns exemplos. São vendidos móveis e imóveis, além de diversos produtos (como sal, vinhos em pipas e garrafas, cortiça, produtos químicos, couros e automóveis).
Aos antigos donos eram devolvidos objectos como roupas, retratos e quadros de família.
As hastas públicas devem ter sido aproveitadas por algumas pessoas em negócios pouco claros, já que, no final de Setembro de 1917, são dadas indicações para que uma venda de activos de uma empresa fosse feita em bloco para evitar conluios e especulações que resultassem “na adjudicação dos bens do inimigo por preço diminuto ou muito inferior ao seu valor”.
Pelo meio houve casos em que os antigos proprietários tentaram passar a tempo a propriedade, no papel, para cidadãos não conotados com o inimigo, colocando assim os seus bens a salvo. No arquivo da Intendência dos bens inimigos é relatado um caso, da firma Wimmer, na qual, segundo o documento enviado ao Tribunal do Comércio de Lisboa, se recorreu a “verdadeiras manigâncias para simular passagens de negócios a outras entidades”.
Neste processo, nem a CUF, um dos maiores grupos empresariais naquela época, ficou imune. A Inglaterra suspeitava das simpatias alemãs de Alfredo da Silva, e já tinha congelado as importações de produtos do patrão da CUF. A pressão aumentou com a declaração de guerra da Alemanha.
Foi exigido o afastamento do alemão Martin Weinstein, sócio e amigo de longa data de Alfredo da Silva. Weinstein vende as suas acções a Alfredo da Silva e parte para Madrid onde virá a falecer.
A contra-gosto, o empresário português acede a uma análise do seu grupo, que conta com a participação do presidente da Câmara do Comércio Inglês, Garland Jayne. No dia 10 de Março de 1916, fica inscrito nas actas da empresa que “o Sr. Garland Jayne (...) disse que quer pela inspecção do perito contabilista, quer pelo que ele estava vendo agora, reconhecia que na CUF havia e há sempre a maior correcção, não tendo ela feito coisa alguma contrária aos interesses da Grã-Bretanha e dos seus aliados”. O perigo fora afastado.
Pagar no futuro
Pesando apenas as questões económicas do impacto e do envolvimento de Portugal na 1ª Guerra Mundial, fica evidente que as contas do país ficaram a perder.
Com a requisição dos navios alemães ficou aberta uma linha de crédito inglesa para o esforço de guerra, cuja soma, em 1918, segundo o historiador António José Telo, era de 15,6 milhões de libras. Sete anos depois, esse valor subira para 22,7 milhões de libras, devido aos juros acumulados e ausência de amortizações. Ou seja, um aumento de 45,5%.
Os encargos começaram logo em 1914-1915, com a inscrição de despesas extraordinárias para “material de preparação para a guerra”. O Orçamento do Estado para 1916-1917, datado de 26 de Maio de 1916, refere a abertura de uma conta especial, no Ministério das Finanças, de 75 milhões de escudos.
Esta, denominada de “despesas excepcionais resultantes da guerra”, era a conta à qual seriam deduzidas “todas as despesas de carácter militar, económico e financeiro, não compreendidas no orçamento normal do Estado”. As despesas ordinárias para 1916-1917 estimadas para a Metrópole eram de 77,7 milhões de escudos. A dívida pública era então de 30,6 milhões. Dos 75 milhões disponíveis para a guerra, as principais fatias cabiam ao Ministério da Guerra (40 milhões), ao Ministério da Marinha (12 milhões) e ao Ministério das Colónias (10 milhões).
No orçamento do ano seguinte (1917-1918), datado de 6 de Setembro de 1917, as “despesas excepcionais”, “durante o estado de guerra e por motivo de guerra”, eram já de 150 milhões de escudos, cabendo ao Ministério da Guerra 100 milhões.
As colónias ficavam agora com 20 milhões e a Marinha com outros 8 milhões (parte dos quais seria para pagar o início da construção de três submarinos). Para tal, o governo ficava autorizado a realizar “empréstimos e outras operações de crédito”.
Em 1918-1919 (já com o conflito terminado), o valor das despesas extraordinárias com a guerra é de 100 milhões de escudos. Nesta altura era já Sidónio Pais quem governava, ficando o Ministério da Guerra com 59,6 milhões, o das Colónias com 15 milhões e, em terceiro lugar, no lugar da Marinha, vinha o Ministério das Finanças, com 10,3 milhões de escudos.
Entre as suas despesas inscritas estava a contabilização dos “juros e amortizações da dívida de guerra”. A dívida pública era agora contabilizada em 31,6 milhões de escudos, pouco mais do que em 1916-1917. Que as contas ligadas à guerra ficaram algo descontroladas é evidenciado por uma lei de 7 de Janeiro de 1924, onde se estipulava que, a partir da publicação desse decreto, passava a ser “absolutamente proibido requisitar ao Ministério das Finanças (...) quaisquer importâncias em conta da verba descrita no Orçamento do Estado, sob a rubrica ‘despesas excepcionais resultantes da guerra’”. De acordo com a nova lei, ficavam “civil e criminalmente responsáveis os organismos do Estado e respectivos funcionários que procederem em contrário”.
As contas de Salazar
Em 1926, oito anos depois do fim da guerra, ainda foi aberto “um crédito especial” de 2,2 milhões de escudos para liquidar “todas as despesas excepcionais” anteriores ao ano económico de 1924-1925. Já em Março de 1927, após a queda do regime republicano (na sequência do golpe militar de 28 de Maio de 1926), e de acordo com um outro decreto, faz-se a “consolidação” nas contas públicas da dívida de guerra contraída por Portugal junto da Grã-Bretanha.
Era, refere-se, “necessário proceder às indispensáveis operações de escrita a fim de se transferir da conta ‘operações de tesouraria’ para a competente conta de receita e despesa, inscrevendo-se, consequentemente, no Orçamento Geral do Estado, em receita, a soma a consolidar avaliada no citado acordo de 20.133.589 libras”. Feito o câmbio, eram 90,6 milhões de escudos (numa conta que não sugere a inclusão de juros).
Ao Ministério das Finanças era aberto um crédito de 11,8 milhões de escudos, soma que ficou inscrita sob uma nova rubrica: “Dívida de guerra de Portugal à Grã-Bretanha, primeira prestação da anuidade de 1927”. O empréstimo ia demorar a ser pago.
Entre 1919-1920 e 1920-1921 a dívida pública mais do que duplicou, chegando ao redor dos 50 milhões de escudos. Em 1921-22 já era superior a 100 milhões, chegando a 1928-1929 acima do patamar dos 400 milhões de escudos. Nem tudo, obviamente, foi por causa do envolvimento directo na guerra (há todo o ambiente económico derivado do conflito mundial, como o aumento de preços e diferenças cambiais, com destaque para os produtos alimentares, num ambiente de crise económica e financeira) mas este está certamente incluído nas contas da derrapagem.
No final de 1939, quando a Europa vivia o início de uma 2ª Guerra Mundial, e certamente por causa disso, Salazar manda os organismos públicos fazerem um levantamento urgente sobre as repercussões da guerra de 1914-1918 nas receitas e despesas do Estado.
A análise feita pela Direcção Geral da Contabilidade Pública refere que o conflito “pouco influenciou as receitas do Estado”, e, num comentário critico, sublinha que “só desde princípios de 1918 começaram a ser publicados vários diplomas com a intenção especial de ocorrer às excessivas despesas do Estado que de ano para ano vinham aumentando em sensível progressão”.
Nesse ano, tomam-se medidas como a subida dos direitos sobre alguns tipos de tabacos e imposto de selo, “aumentam-se em 5% as taxas do imposto de rendimento sob os vencimentos dos funcionários públicos”, e é instituído “o imposto sobre os lucros excepcionais derivados do estado de guerra” do qual “não consta, porém”, execução em contas públicas.
Os organismos públicos do Estado Novo destacam que após ter sido “declarada a guerra entre Portugal e a Alemanha, em 1916, é que começam verdadeiramente as despesas excepcionais resultantes da guerra e se começa a esboçar o agravamento do custo de vida”.
Ao mesmo tempo, não terá havido a preocupação em “procurar aumentar as receitas públicas para fazer face ao aumento das despesas públicas”.
A ideia geral, refere-se, é que depois do fim da guerra os preços voltariam a estabelecer-se tal como antes de 1914. No entanto, é no início do ano económico de 1918-19 que “as despesas públicas começam propriamente a sofrer a influência da guerra”. Em 1919-1920, as receitas do Estado ascendem a 217,2 milhões de escudos, dos quais 8,3 milhões são receitas extraordinárias derivadas do conflito. Já as despesas somam 315,8 milhões de escudos, dos quais 87,8 milhões são encargos da guerra devidos pelos ministérios da Guerra e das Finanças.
As últimas indemnizações
Na década de 1930 já os cidadãos alemães tinham recebido os “bens imobiliários e créditos não cobrados que se achavam sequestrados e arrolados”. No entanto, faltava ainda pagar diversas indemnizações a cidadãos portugueses lesados pelo conflito.
Um advogado, Levy Marques da Costa, publica uma petição em Junho de 1934 sobre os “sinistrados civis portugueses da Grande Guerra” (como em Angola e Moçambique), que depois irá remeter a Salazar, e onde dá conta que Portugal já recebera da Alemanha 2,3 milhões de escudos (embora as indemnizações ficassem bastante abaixo do esperado por Portugal).
Aos sinistrados que ainda não tinham sido ressarcidos o Estado devia cerca de 22,6 milhões de escudos.
“Os encargos da guerra, qualquer que seja a sua natureza, que não puderem ser pagos pelas indemnizações obtidas do inimigo, devem ser suportados por toda a Nação”, defende Levy Marques da Costa.
Finalmente, no Verão de 1937, já com a guerra civil a atravessar Espanha, é publicada uma lista com mais de 300 nomes de pessoas e entidades, civis e militares (ou seus familiares), com o valor da respectiva indemnização a ser paga.
É o caso, por exemplo, de Francisco Marques Vieira, residente na vila de Chibia (sul de Angola, perto de Lubango) e que foi um dos vários civis afectados por “prejuízos materiais causados pelo combate de Naulila, e conjuntamente pela subsequente revolta indígena”. Duas décadas depois da intervenção militar de Portugal na I Guerra Mundial, as contas ainda estavam a ser fechadas.
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