Então cito o artigo:
Começámos por entrevistar a mãe de Eduardo Trepa que, apesar da sua avançada idade, se mostrou por completo lúcida e com uma linguagem oral espontânea, capaz de fazer inveja a muitos apresentadores das TV´s em horário nobre. «Sabe, percebi logo, assim que nasceu, que estava ali uma criança diferente …», começou por afirmar a progenitora. «Sabe, era o meu sexto filho e já não existiam segredos para mim, sejam pré ou pós-parto. Ora quando levou a palmada do costume no rabo, para ver se tinha goela, sabe, percebi perfeitamente que não tinha chorado, não!  Sabe, os seus gritos eram de revolta, de grande combatividade contra quem assim lhe deu as boas vindas a este mundo».
Depois de uma breve pausa, para molhar a garganta seca, continuou: «Sabe, a sua grande sorte foi o 25 de Abril. Já me tinham avisado, sabe, um conhecido que tinha na PIDE, que se ele continuasse assim, logo que fosse maior, ou ainda antes, seria preso». Concluiu: « E depois de uma bela sova, ultramar com ele, foi a ameaça».
De súbito o seu tom de voz elevou-se, quase que guinchou: « Sabe, e ainda lhe chamam corrupto agora. Sabe, o que ele poderia ter sofrido, coitadinho, nas mãos de tais carniceiros. Sabe, o que ele ajudou a família? principalmente o pai, Deus o tenha em descanso, embora não prestasse para nada, os irmãos, os amigos e a mim, que fui a única que merecia de verdade ser ajudada. Tanto dinheiro esbanjado, credo!».
Recapitulemos um pouco a “estória” para aqueles que andam distraídos.  O antigo deputado Eduardo Trepa, foi absolvido em 2010 do crime de enriquecimento ilícito, eu gostaria que o denominassem apenas com o nome de “fortuna sem evidências”  na forma como foi construída. Agora vai ser nomeado para um alto cargo da nação.
Resolvi fazer jornalismo de investigação e deixar de encher chouriços, trabalho a que se dedica com grande zelo a maior parte da comunicação social e reconstruir um pouco da sua vida. Descrevo o que averiguei:
Eduardo nasceu em 1955 e sempre foi um revoltado. Não existem dúvidas na sua cabeça e nas cabeças da sua família que não conseguiu terminar o antigo 5.º ano por afronta exterior ao seu recto feitio. Sempre em confronto com os professores e com todos os que simbolizassem a autoridade, sempre em defesa daqueles que ele considerava mais fracos e oprimidos.
A revolução dos cravos trouxe-lhe a desejada libertação. Inscreveu-se num partido político, movido pelo desejo de igualdade e liberdade. Ao fim de alguns meses, percebeu que, onde estava, necessitava de cumprir orientações superiores que considerava iam contra a sua liberdade. Desfiliou-se  e inscreveu-se noutro partido que, embora com diferenças, bem vistas as coisas, também não lhe deixava grande margem de manobra. Desfiliou-se de novo. Nos dois casos para sair de cabeça erguida arranjou motivos de discussão ideológica para desaparecer. Percebeu finalmente de onde soprava o vento e inscreveu-se num outro partido político.
Eduardo que não era tolo, compreendeu que mais do que mudar o mundo, queria era mudar a sua vidinha. Jurou para si próprio que era o último partido do qual seria militante. Jurou e cumpriu.
Com a experiência acumulada, verbo fácil, boa aparência e sorriso encantador, Eduardo começou a dar nas vistas no partido no qual agora militava. As suas experiências anteriores valorizavam-no e funcionavam como uma mais valia, até do ponto de vista moral. Entretanto tinha casado com a sua namorada de sempre, vizinha do bairro e colega de escola, da qual esperava um rebento.
Neste entretém, sem ele esperar, a sua vida mudou. O chefe da distrital, “mula velha”, chamou-o e, entre elogios e falas mansas, lançou-lhe o isco: «Precisamos de alguém para ir dar uma volta pelo país e recolher o dinheiro dos militantes. Dinheiro sem rasto, claro». Depois acrescentou: «Despesas pagas, carro por sua conta e um ordenado bom. Os gastos com a saúde da esposa e do parto ficam por nossa conta. Tudo do melhor, evidentemente».
Sem hesitar nem regatear Eduardo aceitou. Demorou pouco mais de um mês esta sua primeira volta pelo país. Na véspera do seu regresso, pernoitou numa pacata cidade da província e, num discreto balcão de um banco, depositou 20 contos. Acautelar o futuro, seria o seu guia a partir de agora. No fundo, confortava-se, a quantia era menos de 1% do que iria entregar; não compensava sequer os riscos corridos, concluiu o seu pensamento.
Quando se encontrou com o seu líder, o diálogo mantido constituíu para si uma grande surpresa. Ao saber que Eduardo tinha consigo 2177 contos, felicitou-o pela elevada quantia conseguida, agradeceu-lhe pela honestidade mostrada, congratulou-se pelo militante que mostrava ser e acrescentou: «Você correu um grande perigo. Mostrou ser de uma honradez a toda a prova. Vamos depositar 2107 contos, não convém ser números certos, para não levantarmos lebres e vamos dividir os 70 contos que sobram. Dividir, mas não de forma igual, claro, você é que se expôs aos perigos. Fica com 40 contos, eu fico com 30 e esta conversa nunca existiu». Sorriu.
«Que não!» exclamou Eduardo. Que fazia isto pela militância, pela democracia e pelo povo português. Longe de se assustar, o interlecutor esboçou o seu melhor sorriso e concluiu: «Você é novo, tem uma vida pela frente, família para sustentar, agora um filho, depois outro, só Deus sabe quantos, de seguida a mulher quer uma casa maior, uns trapos mais vistosos, fazer inveja às amigas, mostrar que o marido não é um zé-ninguém …».  Sorriram, abraçaram-se e foram almoçar juntos. Essa refeição selou o início de uma longa amizade.
Nos anos seguintes, Eduardo continuou com o seu trabalho de recolha de fundos doados pelos militantes e simpatizantes do seu partido e o seu chefe de secção foi subindo na hierarquia, acabando por chegar ao parlamento. Ambos enriqueceram, não se coabiram de mostrar os seus sinais exteriores de riqueza e para seu espanto eram louvados pelos militantes, vizinhos, amigos e família pela sua honradez a toda a prova, exemplos da observância rigorosa dos deveres, da justiça e da moral. As críticas, as más línguas como as designavam, eram somente fruto da inveja, assim pensavam.
A vida pessoal de Eduardo também corria bem. Amigo da sua família e dos seus amigos, pai babado dos seus quatro filhos, enamorado de forma rápida e supérflua por constantes amantes rapidamente substítuidas, já que a união da família era o seu grande lema, Eduardo prosperava tão velozmente como crescia a sua barriga.
No início dos anos 90, Eduardo estava farto da forma como obtinha o seu ganha pão. O lucro estava longe de ser tão compensador como antigamente, os mecanismos de controlo eram maiores, as viagens começavam a cansá-lo, a criar-lhe fastio, entristecia-o estar constantemente longe dos filhos, principalmente da filha mais nova, que era o “ai Jesus” da sua vida.
Com os seus conhecimentos, sabendo dos pontos fracos e fortes daqueles que o rodeavam, não foi difícil arranjar um lugar elegível nas listas para deputado da nação. Tinha entretanto concluído o ensino secundário, mais um bacharelato e pensava agora estudar para ser doutor. Estudar era um eufemismo, sabia bem o que era possível obter através do dinheiro.
Foi uma década de ouro para Eduardo. Mimou a família e os amigos, acarinhou as inúmeras amantes, concluiu o doutoramento, sentou-se na última fila do parlamento para apenas picar o ponto, dizer amén e receber o ordenado. Ia também sacando um bom dinheiro através da meia dúzia de empresas nas quais tinha um lugar como administrador, mais os pareceres jurídicos que ia acumulando e que os estagiários do seu consultório iam resolvendo. Decididamente tinha nascido com o rabo virado para o sol.
Com a chegada do novo milénio, com o seu mentor, protetor e amigo de sempre tolhido pelo Alzheimer, com a entrada de nova gente na liderança do seu partido, viu o seu oculto poder ir diminuindo. Aquando das novas eleições, embora em público mostrasse uma grande surpresa pelo facto de não ter sido escolhido para representar a nação, sabia há muito que não iria ser escolhido pelos seus superiores para manter o lugar. O que ele não esperava era que perdendo a sua cadeira no parlamento, perderia também o seu lugar nos conselhos de administração dos quais até aí fazia parte, bem como iria ver diminuído abismalmente os seus pareceres jurídicos.
De cabeça perdida, voltou à tarefa de pombo-correio monetário. Depressa compreendeu que os tempos eram outros e como tal desistiu. No entanto, a sua soberba e orgulho acabaram por lhe toldar a inteligência, pelo que continuou a ostentar um modo de vida faustosa, arrogante e petulante, agora incompatível com o ordenado de professor universitário, último reduto que tinha conseguido manter.
Um dia, o céu caiu-lhe em cima da cabeça. O ministério público, dando seguimento a denúncias anónimas, constitui-o arguido, acusando-o de enriquecimento ilícito.  Amargos anos se seguiram para ele e para os seus.
O tempo passou, a roda da vida continuava a girar e pouco a pouco inclinou-se de novo na sua direção. O partido do qual era militante regressou às posições de poder. Voltou a ser convidado para lugares de administração nas empresas público-privadas, bem como noutras do setor privado e conseguiu reanimar o seu escritório de pareceres jurídicos, agora sob a liderança da sua querida filha.
Finalmente um dia ouviu a sentença final do tribunal: absolvido por falta de provas. A juíza bem realçou a expressão “falta de provas” e não “inocência”. Quem quereria saber desta nuance? O sol brilhou de novo. A sua esposa voltou a mostrar a paixão inicial, os filhos fizeram prova de vida,  antigas amantes mostraram-se de novo com o cio, os amigos pediram perdão entre juras de amizade eternas. Para Eduardo apenas o céu era o limite.
Como jornalista nunca consegui ouvir nada saído da boca da estrela desta narrativa. Mas ainda me recordo das últimas palavras de sua mãe, acerca do caso: «Sabe, nos anos em que ganhava uma miséria, não chegava a trazer para casa mais de 5000€ mensais, ningém quis saber nada dele. Agora parecem abutres à sua volta. No entanto, sabe, só eu e a minha neta é que lhe fomos sempre fiéis».
Perguntei-lhe se tinha ideia do futuro do filho. Respondeu-me, abrindo a cara com o seu sorriso de velha manhosa: «Sabe, o meu filho nada me diz. Apresenta apenas os resultados. Mas, sabe, eu conhece-o, sabe, e parece-me que ele já sabe algo, mas não me conta. Sabe, gosto de si e vou contar-lhe o que acho».
De repente vi extraordinárias primeiras páginas da imprensa da manhã seguinte citando este meu furo jornalístico. Mas a velha, escarneceu de mim, acrescentando somente:
«Sabe, o meu filho apenas me disse que já vê luz ao fundo do túnel».
Luz? pensei eu. Luz? Mas isso sustenta uma família?
Sinto-me desmoralizado. Não consegui desvendar nada, não fui longe na investigação e nem sequer consegui pôr uma velhinha a falar.
Com o parágrafo anterior termina a crónica, que volto a sublinhar é copiada integralmente da Gazeta de Alcoentre.
Espero que tenham gostado tanto dela como eu. Posso acrescentar, embora só cá para nós, que a Gazeta de Alcoentre é um maná de “estórias” que só visto, pois dito, ninguém acredita.
Praça do Bocage