por Daniel Oliveira
Fica aqui o texto que publiquei, hoje, no "Expresso", sobre o Miguel. Pela intensa amizade e cumplicidade pessoal, política e profissional que com ele mantive, nos últimos 22 anos, falta-me o distanciamento que consegui ler noutros, em textos muito mais claros e relevantes sobre o que foi a vida e o percurso do Miguel. Tentei, mas não consegui. Uma espécie de anestesia não me deixa. Mas era obrigatório passar para o papel (era no papel que o Miguel se entendia) o imenso carinho que tinha, que tenho, que sempre hei de ter por este ruivo que mudou, em muitas coisas, talvez em muitas mais do que ele julgava, a minha vida. Sinto falta dele, e isso impede-me de escrever com clareza. Ficam as minhas desculpas por isso. Mas, mesmo assim, tenho de deixar escrito.
Nada tenho a escrever sobre política. O Miguel não me perdoaria isto. Deixar passar uma semana sem me entregar ao que sei fazer. As duas coisas a que me dediquei na vida – a política e o jornalismo – fiz ao lado dele, com ele. E para ele, por pior que tudo corresse, a escrita e a política não esperavam pelos nossos estados de alma. Nessa matéria, era implacável. Mas tinha, apesar disso, uma fome de vida como nunca vi em ninguém. E desconfiava de quem só vivia para grandes causas. Como podemos nós compreender o que devemos fazer pelos outros se nada sabemos deles? Como podemos nós lutar pelo outro se ele não for mais do que uma abstração? O Miguel gostava de pessoas antes de gostar de uma ideia.
Não, não me preparo para um panegírico. Panegíricos fazem-se a heróis. E o Miguel não era um herói. Não era uma estátua. Sim, foi detido com 15 anos pela PIDE. Sim, foi militante comunista quando era difícil. Sim, viveu sempre dividido entre a lealdade à sua “tribo” e o imperativo de não defender aquilo em que não podia acreditar. Mas, da sua coragem, o que mais importava era o desplante. Ter organizado os primeiros concertos em Lisboa quando isto era um deserto. Ter lançado um jornal e uma revista de esquerda quando isso era impensável. Ter-se mudado para o Alentejo e para a serra algarvia para trabalhar em desenvolvimento local quando o seu “estatuto” não o obrigaria. Ter voltado ao jornalismo, várias vezes, para nos oferecer maravilhosos documentários e livros. Ser, e isso era uma das nossas muitas cumplicidades, um incurável viajante. Os seus olhos terem continuado, até ao último dia, a brilhar com cada coisa nova que descobria, com cada coisa velha que defendia. Dos seus míticos ataques de fúria passarem com a mesma inesperada rapidez com que chegavam. Com as mulheres, com os lugares, com a política, com o trabalho, com tudo, o Miguel era intenso.
O Miguel era irremediavelmente humano em todos os seus defeitos e qualidade. Não faço um panegírico porque o Miguel não era apenas meu camarada. Não era sobretudo meu camarada. Era meu amigo. Com fraquezas, erros, injustiças. Como com todos os amigos, que não o são apenas por hábito, claro que me zanguei tantas vezes com o Miguel como ele se terá zangado comigo. Fizemos sempre as pazes sem uma palavra, apenas voltando porque tem de ser. O tempo permite que a amizade viva com o que não precisa de ser dito. E ao fim de 22 anos de um imenso carinho, mais de metade da minha vida, onde em cada momento me aparece o seu rosto, a sua voz, o seu riso estranho e o seu desvairado otimismo, os seus defeitos passaram a ser tão indispensáveis como as suas qualidades. Parte de mim.
O Miguel morreu (custa escrever) indecentemente cedo. Cedo demais para toda a energia que tinha e que, até ao último minuto, nunca o abandonou. Cedo demais para todos, e éramos muitos, que dele dependiam, como se depende de uma casa que, mesmo com infiltrações, sempre foi a nossa. Mas uma coisa é certa: o Miguel teve uma vida cheia. E encheu as dos outros. E como ele não me perdoaria que não falasse de política, deixou a nossa muitíssimo mais pobre. Há pouca gente com a sua ousadia. Na política, mundo repleto de bonecos insufláveis, não há quase ninguém. Sim, talvez o País aguente todas as perdas. Talvez a esquerda supere esta. Para mim, para todos os seus amigos, é que é mais difícil tapar este buraco.
Publicado na eição de hoje do "Expresso"
Nada tenho a escrever sobre política. O Miguel não me perdoaria isto. Deixar passar uma semana sem me entregar ao que sei fazer. As duas coisas a que me dediquei na vida – a política e o jornalismo – fiz ao lado dele, com ele. E para ele, por pior que tudo corresse, a escrita e a política não esperavam pelos nossos estados de alma. Nessa matéria, era implacável. Mas tinha, apesar disso, uma fome de vida como nunca vi em ninguém. E desconfiava de quem só vivia para grandes causas. Como podemos nós compreender o que devemos fazer pelos outros se nada sabemos deles? Como podemos nós lutar pelo outro se ele não for mais do que uma abstração? O Miguel gostava de pessoas antes de gostar de uma ideia.
Não, não me preparo para um panegírico. Panegíricos fazem-se a heróis. E o Miguel não era um herói. Não era uma estátua. Sim, foi detido com 15 anos pela PIDE. Sim, foi militante comunista quando era difícil. Sim, viveu sempre dividido entre a lealdade à sua “tribo” e o imperativo de não defender aquilo em que não podia acreditar. Mas, da sua coragem, o que mais importava era o desplante. Ter organizado os primeiros concertos em Lisboa quando isto era um deserto. Ter lançado um jornal e uma revista de esquerda quando isso era impensável. Ter-se mudado para o Alentejo e para a serra algarvia para trabalhar em desenvolvimento local quando o seu “estatuto” não o obrigaria. Ter voltado ao jornalismo, várias vezes, para nos oferecer maravilhosos documentários e livros. Ser, e isso era uma das nossas muitas cumplicidades, um incurável viajante. Os seus olhos terem continuado, até ao último dia, a brilhar com cada coisa nova que descobria, com cada coisa velha que defendia. Dos seus míticos ataques de fúria passarem com a mesma inesperada rapidez com que chegavam. Com as mulheres, com os lugares, com a política, com o trabalho, com tudo, o Miguel era intenso.
O Miguel era irremediavelmente humano em todos os seus defeitos e qualidade. Não faço um panegírico porque o Miguel não era apenas meu camarada. Não era sobretudo meu camarada. Era meu amigo. Com fraquezas, erros, injustiças. Como com todos os amigos, que não o são apenas por hábito, claro que me zanguei tantas vezes com o Miguel como ele se terá zangado comigo. Fizemos sempre as pazes sem uma palavra, apenas voltando porque tem de ser. O tempo permite que a amizade viva com o que não precisa de ser dito. E ao fim de 22 anos de um imenso carinho, mais de metade da minha vida, onde em cada momento me aparece o seu rosto, a sua voz, o seu riso estranho e o seu desvairado otimismo, os seus defeitos passaram a ser tão indispensáveis como as suas qualidades. Parte de mim.
O Miguel morreu (custa escrever) indecentemente cedo. Cedo demais para toda a energia que tinha e que, até ao último minuto, nunca o abandonou. Cedo demais para todos, e éramos muitos, que dele dependiam, como se depende de uma casa que, mesmo com infiltrações, sempre foi a nossa. Mas uma coisa é certa: o Miguel teve uma vida cheia. E encheu as dos outros. E como ele não me perdoaria que não falasse de política, deixou a nossa muitíssimo mais pobre. Há pouca gente com a sua ousadia. Na política, mundo repleto de bonecos insufláveis, não há quase ninguém. Sim, talvez o País aguente todas as perdas. Talvez a esquerda supere esta. Para mim, para todos os seus amigos, é que é mais difícil tapar este buraco.
Publicado na eição de hoje do "Expresso"
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