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terça-feira, 1 de novembro de 2016

O velho foi à viola - Segunda-feira, 27 de Julho de 1970. Um inusitado toque de clarim interrompe a rotina matinal na prisão de Caxias.


Segunda-feira, 27 de Julho de 1970. 

Um inusitado toque de clarim interrompe a rotina matinal na 

prisão de Caxias. 


Por Diana Andringa em Caminhos da Memória.


O funeral de Salazar no Mosteiro dos Jerónimos, partida para Santa Comba Dão











Um toque diferente, desconhecido, num tom lamentoso que não lhe conhecíamos.
Numa cadeia, ganham-se mil ouvidos: habituamo-nos aos sons ciciados da chegada de um novo preso, ao esforço de distinguir qual a cela onde o colocam (da parte da frente, com o rio ao longe? Da de trás, tendo como única visão o muro e as pernas do guarda republicano andando nele?), à frase «Prepare-se para ir à António Maria Cardoso», que pode significar, para aquele a quem é dita, uma sessão de tortura, seja a pancada, o sono ou a estátua, o seu regresso («Quantas horas passou em interrogatórios? 
Quantas noites?»), à tosse que anuncia esse regresso, ao assobio longínquo de um camarada, identificando-se com uma canção comum (no nosso caso, uma coladera), até às crises de asma de alguém que necessita socorro, numa cela próxima. Então, um toque de clarim, a uma hora inabitual, desperta de imediato a atenção e a ansiedade. 
Lá em baixo, na guarita, o jovem guarda republicano olha, também ele, o lado de onde o som surgiu.«Que toque é este?», perguntamos-lhe, gritando.Olha-nos e encolhe os ombros. 
Não como quem não quer responder à pergunta gritada por aqueles que tem o dever de guardar, mas como quem não sabe. 
E ouvimo-lo repetir a pergunta para a guarita seguinte: «“Que toque é este?»Do outro lado chega uma resposta, para nós inaudível. 
Mas o jovem ouve-a e repete-a para nós: «“É o toque dos mortos!»Para que, numa cadeia, toque o clarim por alguém que morreu, é que esse alguém é pessoa de importância. E a ansiedade e a curiosidade crescem. Gritamos, de novo, para o guarda: «E quem é que morreu?»
Tal como da primeira vez, ele repete, para a guarita seguinte, a nossa pergunta. 
E tal como da primeira vez, a resposta escapa-nos. Mas – tal como da primeira vez – o jovem que nos guarda logo no-la repete: «Foi o velho! O velho foi à viola!» 
Não houve necessidade de perguntar mais nada. O «velho» com direito a clarim só podia ser um: Salazar. E logo nos abraçámos a rir, enquanto ouvíamos, vindos de outras celas, gritos de regozijo. 
Que a morte, tantas vezes desejada, do ditador, nos fosse anunciada pelo jovem que devia guardar-nos aumentava a ironia da notícia.
A cadeia explodiu em gritos, risos, murros nas paredes, comunicando de cela em cela, na velha caligrafia prisional – «Um toque é “a”, dois são “b”, três “c” e por aí adiante…» –  a morte do antigo Presidente do Conselho.
Os mais lúcidos lembraram que já havia outro, Marcelo Caetano. 
Mas, nesse dia, a alegria prevaleceu. Mesmo quando a visita foi cancelada, mesmo quando nos cortaram os minutos de música diária, porque «o país está de luto». «De luto?», respondemos nós. «O vosso talvez esteja, o nosso país está em festa!»
E, desafinadas ou não, ergueram-se as vozes dos presos e ouviram-se pela Cadeia,  nesses minutos sem música, canções de resistência.
(Publicado no nº 26 da colecção Os anos de Salazar/ O que se contava e o que se ocultava durante o Estado Novo , coordenada por António Simões do Paço.)
www.esquerda.net

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