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terça-feira, 29 de novembro de 2016

Queria tanto ser cubano

Crónica


Nunca fui turista em Cuba. Nunca dormi num hotel nem molhei o cu em Varadero. Ganhei enormes bolhas nas mãos. Rebentaram-se os lábios de tanto cieiro. Transpirei ao ritmo da catana e da enxada

Texto de Adriano Miranda • 

Em 1994 era um tenro fotógrafo e tinha ganho um prémio em Espanha. Em Cuba milhares de Balseros partiam do Malecon em direcção ao desconhecido. No avião da Ibéria sentia o nervoso miudinho. Gastei todo o valor do prémio num bilhete para Havana. Era louco. Talvez. Deixei a minha avó a chorar. Deixei. Mas o que importava, se um lado da história estava em Cuba. Todas as manhãs e a todas as horas, jornais e televisões debitavam barcos improvisados. Cuba era somente Malecon. E a outra Cuba? Foi então que parti para Caimito. De catana numa mão e máquina fotográfica na outra.

Vivíamos o tempo negro. O Período Especial. Lojas vazias. Autocarros sem peças. Prédios gastos. Luz só de vez em quando. Racionamento de leite e iogurtes. A palavra de ordem era resolver. E com engenho e persistência os cubanos resolviam. A música não faltava. Assim como não faltava a união.

O bloqueio do vizinho e a queda do muro, fizeram de Cuba uma despensa vazia. Não existia quase nada. Desde o simples sabonete ao barril de petróleo. O que existia em abundância era a dignidade, e isso foi fundamental para os cubanos. O seu sistema de saúde e educação que fazem corar um país desenvolvido continuou a funcionar, a taxa de mortalidade infantil continuou mais baixa que a dos Estados Unidos, a alimentação chegou a todos. E quando a Rússia fechou todas as portas, Cuba continuou de portas abertas para receber as crianças vítimas de Chernobyl e tratá-las nos seus hospitais.

Nunca fui turista em Cuba. Nunca dormi num hotel nem molhei o cu em Varadero. Ganhei enormes bolhas nas mãos. Rebentaram-se os lábios de tanto cieiro. Transpirei ao ritmo da catana e da enxada. Fiz quilómetros de bicicleta. Fiz outros a pé ou de boleia. Percorri quase toda a ilha. Fui a festas em casas modestas. Entrei em escolas e hospitais. Discuti muito. Com artistas, com médicos, com varredores de rua, com reformados. Abracei imensa gente. Beijei com amor. Amor sentido de que algo de mágico me estava a acontecer. Não sei o que era e ainda hoje não sei.

O povo cubano é diferente. Não parece deste mundo. Eu, fruto do capitalismo desenvolvido sentia-me pequeno perante a grandeza de tamanha gente. Culta, interessada, inteligente e coisa rara, humana. Em cada esquina, em cada quarteirão, numa avenida, num largo, num café, numa marginal, num quarto, numa cozinha, numa escola, num ministério, num cabeleireiro, sentia a solidariedade a fervilhar. Respirava-se outros valores e fiquei sem respiração quando um velho me convidou a entrar na sua casa. Olha, tenho casa, televisão, banheiro e até batedeira. O velho em novo foi criado de americano. Não tinha nada, só as suas mãos e a força do saber que alguma coisa tinha que mudar. A revolução deu-lhe quase tudo. Outras tantas faltarão.

Depois de meses a aprender a ser cubano aprendi que nunca lá chegaria. Numa noite de trovoada, a Ângela, uma negra grande e linda, olhou-me nos olhos e disse "fica". Não fiquei. Não tinha a grandeza humana que um cubano tem. Depois de meses em Cuba regressei a Portugal e todos os santos domingos ia a uma cabine telefónica para ouvir a voz doce de Ângela.

Um dia a Ângela aterrou na Portela. Foram dias loucos. E numa noite num hotel em Lisboa olhei-a nos olhos e disse "fica". Não ficou. Tinha que ajudar Cuba. O amor impossível findou. Ficámos os dois nos seus mundos tão distantes e tão próximos. Nunca mais voltei a aterrar em Havana.

Adiós Fidel!


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