Helena Pato foi presa em junho de 1967. Tinha 28 anos e já era viúva. Alfredo morrera um mês depois de ser detido pela PIDE. O seu 25 de Abril chegou dois dias depois, quando o segundo marido saiu da prisão de Caxias. Foi professora do secundário e sabe que os mais novos querem conhecer a História. Foi esta uma das razões que a levaram a criar a página “Antifascistas da Resistência” no Facebook, que já tem 400 biografias e milhares de seguidores
Helena Pato soubesse que a ditadura do Estado Novo ia cair uma semana depois, nunca teria deitado rolos e rolos de documentos proibidos pela janela. O ambiente andava agitado, “o Zé receava ter sido denunciado e decidimos sair uns dias de Lisboa” para aliviar a pressão: “Fomos a Londres, passámos lá o aniversário dele [12 de abril] e regressámos a 17, porque nos disseram que até essa altura não tinha havido denúncias. Nesse dia, decidimos limpar tudo o que estivesse em casa e nos pudesse comprometer; fizémos uma queima de papéis na casa de banho, enrolámos jornais clandestinos e cartazes e atámos uma batata a cada rolo para ganhar peso e velocidade... deitámos os rolos pela janela porque não fomos capazes de destruir aqueles materiais que tinham dado trabalho a imprimir, a fazer”.
A chuva de rolos e batatas sobre o Bairro das Colónias durou até tarde. Com a casa ‘limpa’ de papéis comprometedores, Helena e o marido, o historiador José Manuel Tengarrinha, dirigente do MDP/CDE, acreditaram que poderiam dormir descansados. Eram 6H00 da manhã quando a campainha da porta os acordou com alvoroço. A PIDE entrou e virou a casa do avesso. Ao fim de muitas horas de buscas, Tengarrinha foi para Caxias, sob prisão.
“O telefone começou a tocar porque nessa madrugada tinham sido presos outros dirigentes do MDP; eu achei que ele ia ter pela frente uns anos em Peniche”. Apesar da angústia, nesse 18 de abril, Helena, não teve muito mais tempo para pensar nisso: “Tínhamos dois filhos pequenos, que tinham ficado a dormir em casa dos meus pais... e eu fazia anos no dia seguinte. O meu filho já ligava à ideia dos anos e [também] por causa dos meus pais decidi fazer o jantar de família”. A crise obrigava-a a reagir, andar para a frente, como uma tocha que ilumina o caminho, ou não fosse esse o significado do seu nome em grego.
Mesmo para esta mulher de combate, que resistitu seis meses em regime de isolamento na cadeia de Caxias, foi estranha e azeda a celebração do seu 35º aniversário. “A primeira visita ao Zé estava agendada para as 11h00 de quinta-feira, 25; ficou logo marcada no dia em que o levaram. Eu ainda fui uma vez a Caxias levar roupa e comida, e recebi uma carta dele. Uma carta muito curiosa, extensa” que Tengarrinha sabia que iria ser lida pela PIDE. Em vez de se queixar da prisão, o historiador escreveu sobre o século XIX. “Quase que fez o plano de um livro”, diz Helena, que ontem [24 de abril] ofereceu este documento ao Museu do Aljube.
Por volta das 4h30 da madrugada de dia 25, o telefone tocou na residência do casal Pato/Tengarrinha. Helena pegou no auscultador e ouviu alguém dizer: “Houve uma revolução e o seu marido vai sair da cadeia”. Não respondeu. Pousou o auscultador sem dar qualquer resposta e, depois de desligar, falou sozinha: “Provocadores.... fazem isto para provocar, nem me deixam dormir durante a noite”.
Minutos depois o telefone voltou a tocar. Desta vez foi a empregada que ajudava Helena a cuidar dos filhos, quem respondeu e anunciou eufórica: “Houve uma revolução ... o senhor doutor vai ser libertado!”.
Atordoada, Helena que passara a noite anterior a cozinhar para levar comida ao marido preso, deve ter ligado a rádio como todos os portugueses que já estavam acordados aquela hora. As informações eram poucas, o telefone continuava a tocar: “Arranjei-me e fui para a Av. do Uruguai, para uma reunião em casa da Julieta Correia e do marido, o jornalista Fernando Correia que creio que também estava preso, para me encontrar com familiares de outros presos políticos e combinarmos o que iríamos fazer”.
Por ironia do destino, Helena não foi capaz de festejar a Revolução no dia em que ela aconteceu. Foram dois dias de grande tensão; só conseguia pensar no marido e nos outros presos... que só deixariam a prisão de Caxias no dia 27.
A reunião na Av. do Uruguai serviu para distribuir tarefas. Helena e a sua camarada do PCP, Aida Magro, começaram por se deslocar ao Rádio Clube Português, ocupado pelos militares do MFA. Daí seguiram para o exterior da prisão de Caxias onde passaram o resto do dia.
Ao princípio da noite Helena decidiu voltar a casa; queria saber dos filhos, comer, tomar banho. Telemóveis eram coisa que não existia nem em sonhos, e as cabines telefónicas não estavam propriamente à porta da cadeia...
Veio com a sua amiga Luísa Amorim. “No meu bairro havia um clima de festa ... e de acampamento. As escadinhas ao lado da minha casa, que dão para o Bairro das Colónias, estavam cheias de soldados sentados de metralhadora” em punho. Era tarde, estava frio, “e eu e a Luísa ficámos com pena deles e decidimos fazer café e umas sandes e ir lá levar-lhes. Eu levei uns cobertores ... e só três dias depois é que dei conta que tinha ficado sem cobertores em casa”. Quem viveu a Revolução sabe que aconteceram coisas destas e que ninguém prestava atenção a minudências ... como cobertores, por muita falta que eles façam numa casa.
Na véspera dos 42 anos da queda da ditadura em Portugal, Helena colocou este post na sua página pessoal do Facebook, onde recorda os soldados a quem deu os cobertores; raramente coloca notas de caráter privado na sua página do Face.
VÍDEO
ANTIFASCISTAS DA RESISTÊNCIA TÊM QUASE 5 MIL LIKES
Há dois anos, quando estava prestes a deixar a direção do movimento cívico Não Apaguem a Memória, Helena constatou que havia muitos professores e alunos que procuravam material sobre a resistência à ditadura. Se os arquivos da PIDE e outros, os jornais, etc, fornecem elementos, há uma parte da história que vive de outro tipo de informações e testemunhos.
Enquanto militou no Não Apaguem a Memória [fundado em 2006 para contestar a transformação da sede da PIDE em condomínio de luxo], verificou que havia muita gente que era esquecida pelas formas convencionais de preservar a memória: “Há muitas biografias escritas sobre dirigentes, mas existiram muitos homens e mulheres, heróis anónimos da resistência, pessoas que tiveram vidas muito difíceis, de quem ninguém sabe nada”. E foi assim, para lembrar o papel destes heróis anónimos, que surgiu no Facebook o grupo “Fascismo nunca mais”, que tem quase 10 mil membros.
“A ideia era criar um grupo aberto; mas eu cliquei numa opção para grupo fechado e quando dei conta reportei para o Facebook. Nunca responderam e não foi possível reverter a situação. O grupo ficou mesmo fechado, e criámos uma outra página no Facebook, “Antifascistas da Resistência”, onde estão as biografias”. Esta página é pública e tem quase cinco mil seguidores
Para salvaguardar algum ataque informático [já tiveram um], ou outro clique involuntário de Helena ou de alguma das outras duas administradoras que com ela colaboram, foi criado umblogue com o mesmo nome onde está um índice das biografias com links de acesso aos textos.
Militante do Partido Comunista durante 29 anos [1962 - 1991], Helena faz questão de fazer biografias de “gente de todas as áreas que esteve envolvida em ações de resistência. E convidei para colaborarem comigo na administração das páginas, duas mulheres de outras áreas políticas: Inês de Castro, professora de História e a Benedita Vasconcelos que é de Direito”.
Nos comentários, “não são permitidas agressões que sirvam para denegrir o passado dos antifascistas”, e é uma forma de evitar querelas entre pessoas de tendências e fações diferentes.
Maria Helena Martins dos Santos Pato Noales Rodrigues, é este nome que está escrito nas fotos da prisão que se vêem no vídeo que abre este trabalho, foi presa em junho de 1967. Tinha 28 anos e já era viúva. O marido, o jornalista e dirigente estudantil, Alfredo Noales Rodrigues, com quem casara em 1960, saiu do país em 1962 para não ser preso pela PIDE. Foi para Paris e Helena foi ter com ele logo que pode; ainda não tinha acabado o curso, mudou a matrícula para a Universidade de Coimbra [muitos estudantes que tiveram ‘problemas’ com a polícia política utilizaram esta solução para acabar os cursos noutras universidades portuguesas] e vinha a Portugal uma vez por mês, de comboio – a viagem durava quase 30 horas – para tentar acompanhar as matérias e fazer exames.
Em 1964, nesta foto do jovem casal que o Expresso publica, Alfredo está visivelmente mais magro no que nas fotos que vimos do seu casamento com Helena em 1960.
Quando tiraram a foto, Helena ainda não sabia que o marido estava doente. Nem ela nem ele, porque o linfoma ainda não tinha sido diagnosticado. Na década de 1960, o tratamento das doenças oncológicas estava menos avançado do que hoje e Alfredo foi definhando. Exilado político, tinha o desejo de vir morrer a Portugal, no país onde nasceu e perto dos pais e restante família. Foram feitas diversas diligências junto da polícia política, pedindo que Alfredo pudesse sem regressar sem correr o risco de ser detido. A resposta era invariavelmente a mesma: “Poderá regressar quando houver uma declaração médica que garanta que não tem mais do que 30 dias de vida. Claro que nenhum médico poderia passar uma declaração destas…”, porque nunca se sabe qual é a verdadeira evolução do cancro em termos de tempo. Nem hoje, nem naquela época.
Alfredo voltou em novembro de 1965. Saiu do avião em cadeira de rodas, os pais estavam à espera dele… e foi detido pela PIDE para interrogatório. Morreu um mês depois, em dezembro desse ano.
A maioria dos portugueses não conhece a história de vida de Alfredo Noales. E também não conhece o papel de Belmira Cruz, Manuela Bernardino, Cândido Capilé, Gina Azevedo, Manuel Baridó e Olímpia Brás, e muitos mais, que Helena vai juntando no grupo fechado [por engano dela…] do Facebook “Fascismo nunca mais” e na página aberta “Antifascistas da Resistência” e no blogue com o mesmo nome, que conta com a ajuda informática de Eduardo Brissos. “Quis dar a conhecer a vida dos heróis anónimos, de pessoas com quem me cruzei, que me tocaram. Houve uma mulher que foi presa mais ou menos na mesma altura em que eu, uma operária corticeira, a Olívia, que enfrentou a ditadura com uma força extraordinária, e é quase desconhecida. Foi uma mulher que me ajudou muito…”, diz Helena, a ex-professora de Matemática que recorda nas redes sociais a história de pessoas que mal sabendo ler – ou não sabendo de todo – começaram a trabalhar por volta dos oito anos em troco de 10$00 [5 cêntimos] por mês “para pagar o pão que comiam”.
Autora de dois livros em que recorda a luta contra a ditadura, “Saudação, Flausinas, Moedas e Simones” e “Já uma estrela se levanta”, nunca gostou muito da ideia de existirem quotas na política, apesar de ter sido uma das fundadoras do Movimento Democrático das Mulheres, em 1969: “As mulheres têm de se afirmar pelas suas qualidades… e afirmam-se desde que lhes sejam dadas condições” para que isso aconteça.
Aos 77 anos, tem o projeto de “reescrever um romance guardado há anos. É um romance de amor, a história de um quadrado amoroso, e tenho uma certa má consciência de ter abandonado aquelas personagens de que gosto tanto à sua sorte. Só que também gostava de fazer um blogue que funcione ao contrário da maior parte dos blogues… e acho que a net vai ganhar (risos). Um blogue onde começaria por recordar histórias da minha infância e ia enchendo de histórias, reescrevendo algumas para não me andar a repetir, até à atualidade em que começaria a escrever crónicas” sobre o que se passa. “Já disse à minha filha que quando eu ainda for viva mas não for capaz de escrever… ela pode escrever o que lhe contei, e depois de eu morrer também”.
Quanto às biografias, tem dois tabus: “Não as publico em livro, já tive uma proposta mas está fora de questão; estas biografias estão bem para a função que cumprem de divulgar histórias de pessoas, mas não têm rigor” científico. “E nunca escreverei a minha própria biografia para colocar na página. Se alguém o fizer, vou lá e PUF!”. É assim Helena, a mulher que aos 28 anos observava a vida das formigas e o nascimento das florzinhas no muro da prisão de Caxias, para enganar o regime de isolamento a que fora condenada: “Não podia ir ao recreio, não me deram os livros que pedi, nem jornais, nem papel, nem linhas, lã, agulhas para fazer tricô, ou qualquer coisa para me ocupar”.
expresso.sapo.pt
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