O OUTRO LADO DO POEMA
Foi do outro lado do poema
que te falei do tapete puído das metáforas
e das mãos crispadas sobre o segredo das horas
estava lá tudo isso
e ainda o que nem eu poderia decifrar.
foste tu quem o não soube ver…
resmungas?
que culpa tenho eu se a inércia te prendeu
aos floreados da capa de papel de seda,
à estampa introdutória,
à tampa do baú dos sustos insuspeitos?
que culpa tenho
se por aqui ficaste embevecido, cego, enfeitiçado?
como se a magia da forma
desistisse ali mesmo,
onde termina a aparência do poema
e onde se determina que o poema é aparência!
os poemas, incauto,
redefinem os corpos a cada por do sol
e saúdam o luar dispersos em mil faces,
mil arestas, mil vértices como punhais
que às vezes arredondam
para não ferir a lua
pois só a ela pouparão o impacto perfurante
das verdades mais cruas e vorazes
isso deverias sabê-lo tu,
não eu que nada conheço da geometria do desejo
para além da elevação do sonho
ao cubo de si mesmo
e penso vir a morrer de uma anunciada indigestão
de puríssima ignorância
mas teria sido exactamente aí,
na face que te recusaste a ler
e das profundezas que não soubeste adivinhar,
que ele te teria falado até que não pudesses suportá-lo
e o reduzisses à forma inicial
caso ele se apiedasse da tua comoção
teria sido aí
que ele te mostraria
a inevitabilidade das coisas transmutadas
pelos olhos do leitor
até ao infinitamente absurdo
que é e será sempre
a causa primeira de todos os impensáveis gestos de um poema
agora,
agora sei lá quantas luas se passaram,
quantas arestas se multiplicaram,
quantos vértices se não arredondaram
e quantos olhos, que não teus,
o espalharam por aí, em estilhaços,
na órbita irregular de todos os acasos
e tu, incauto,
ainda não compreendeste
que um poema é um poço sem fundo,
um abismo aberto sob a vertigem dos sentidos,
uma montanha invertida por escalar
e uma faca apontada ao coração do conformismo?
Maria João Brito de Sousa – 15.09.2011
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