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quarta-feira, 28 de setembro de 2011




Ilha da Berlenga

A Berlenga é uma verdadeira ilha, orgulhosa e independente. Não é um pedaço de terra anexo ao continente, como as outras. É um território com vida própria, com as suas montanhas, os seus caminhos, as suas grutas e as suas praias. Ao contrário do que sucede no Pessegueiro, aqui é a terra que parece mais distante. Facilmente é levada pela neblina, apagada do horizonte para a ilha poder ficar sozinha.
Por vezes, o que se vê são apenas algumas das pequenas ilhas do arquipélago, as Estelas e os Farilhões, o que permite a ilusão de se estar na metrópole de um misterioso e altivo país perdido no mar.
Não é fácil chegar cá. A viagem demora uma hora que parece duas ou três. O mar é sempre tão agitado que, no barco do Cabo Avelar Pessoa (do nome de um herói lendário da Berlenga), um tripulante vem distribuir sacos para vomitar aos mais de 150 passageiros. Também isto faz aumentar a distância. Depois de dobrar o Cabo das Tormentas, a sensação é a de chegar a um outro mundo.
A Berlenga é isso, um mundo virado para si próprio. Uma vez cá, esquecemo-nos de onde vimos, declaramos a soberania. O tempo e o espaço deformam-se para nosso aconchego. A paisagem não tem semelhanças com nenhum lugar do continente. O mar é verde e a terra escura, recortada e íngreme. Por algum fenómeno relacionado com o talhe e a densidade da rocha, as vozes ficam sempre abafadas, embora produzam eco. Ouve-se melhor o que é dito ao longe do que a fala dos que estão ao nosso lado. Há uma sensação de irrealidade e suspensão, como se ninguém tivesse os pés assentes na terra. Excepto Marieta e o marido, Veríssimo, no Bairro dos Pescadores.
A ilha pode estar cheia de gente, como acontece nestes meses de Verão, mas nenhum som humano sobreleva o grito das gaivotas. Elas dominam a ilha, voando nas enseadas, ou pousadas aos milhares ao longo das encostas, como um exército a perder de vista. Aqui é impossível mandá-las calar. O seu triunfo é total. Nunca fogem. Parece até que grasnam mais alto quando um ser humano passa perto.
É um gralhar contínuo e variado, que ora faz lembrar gritos, ora latidos, mas a partir do momento em que nos ocorre a comparação com gargalhadas, não mais nos livramos dela. A partir daí, por onde quer que andemos, em toda a ilha da Berlenga, acompanha-nos o riso sarcástico das gaivotas.
Para percorrer a ilha há duas opções: vai-se de barco ou a pé, o que implica subir. Os barcos visitam as baías, as praias e as grutas, chegam até ao forte S. João Baptista, situado numa ilhota ligada à ilha-mãe por uma ponte. A pé passa-se pelo restaurante e o bar, sob as cerca de 30 casas do antigo Bairro do Pescadores, pelo parque de campismo, pelo farol, até ao forte.
O forte de S. João Baptista, uma construção do século XVII que foi inicialmente um convento, é agora uma espécie de lugar comunitário para amantes da Berlenga. Conta-se que foi aqui que um tal cabo Avelar Pessoa, em 1666, com os 26 soldados que constituíam a guarnição do forte, resistiu heroicamente ao ataque de uma armada espanhola de vinte barcos.
Hoje, quem aparentemente manda aqui é Rogério Leitão, um pescador de Peniche com 45 anos. É ele que coordena as actividades, embora toda a azáfama se desenrole sem complicações. As pessoas entram no forte, dirigem-se à cozinha e  desatam a assar sardinhas, ocupam as mesas dos pátios, reúnem-se em grupos à beira das ameias.
A Associação dos Amigos da Berlenga é quem gere, desde 1976, toda esta utilização do edifício, aberto a quem quiser aparecer. A manutenção é feita com os fundos provenientes do aluguer dos 22 quartos, disponíveis de Junho a Setembro e sempre esgotados.
“Antes do 25 de Abril isto era uma pousada de luxo”, conta Rogério. “Salazar vinha para cá com uns amigos, que gostavam de fazer caça submarina”. Em 1971, o exclusivo resort foi encerrado, e depois do 25 de Abril de 1974 ocupado pelo povo. O pescador Rui Gonçalves, pai de Rogério, foi o primeiro a vir organizar o novo uso comunitário das instalações. “Há pessoas que vêm para aqui todos os anos, há mais de 30”, diz o sucessor de Rui. Chegou a haver um bar montado, mas no ano passado a ASAE veio cá e fechou-o.
A UNESCO classificou este ano o arquipélago das Berlengas como Reserva Mundial da Biosfera, estatuto que pode atrair mais turistas, mas também mais recursos para preservar as plantas, peixes e aves selvagens deste habitat único. Hoje, para além do faroleiro, sempre na ilha, mas num regime de turnos, só um casal permanece todo o ano na Berlenga, para tomar conta de tudo - Marieta e Veríssimo Soares. São eles que fazem as limpezas, gerem o parque de campismo, controlam a electricidade, tratam dos sanitários e da distribuição da água potável.
Vivem na ilha há 26 anos. Antes, Veríssimo trabalhava num escritório e Marieta numa fábrica de filetes de peixe, que fechou. Vieram para cá por necessidade. Deixaram os cinco filhos sozinhos, os mais velhos tonando conta dos mais novos. Marieta, de 59 anos, ganha 500 euros. O marido, como Fiscal de Limpeza, um pouco mais. Ela limpa as casas de banho, as únicas da ilha, que no período do verão tem milhares de visitantes. Ele preocupa-se com ligar e desligar a luz, abrir e fechar as torneiras da água da cisterna e do mar. Nas torneiras do restaurante, bem como nas das casas do Bairro dos Pescadores (algumas das quais são privadas) corre água salgada. A casa do casal Soares é muito pequena. Tem um quarto e uma cozinha, com uma mesa de jantar e, na parede, um grande póster do cantor Beto.
“No Inverno tudo fecha”, diz Marieta, que tem ao peito um crachá com a imagem de um homem de olhos azuis e cabelo comprido, e as palavras “Beto para sempre”. “O barco acaba em Setembro. Não vem mais ninguém. Ficamos sozinhos. Só com as ondas, o vento. É lindo. Gosto muito de cá estar. Gosto do sossego”.
Ao princípio custou. Depois  habituou-se. Agora precisa da ilha, da interminável solidão do Inverno, para se sentir inteira. Nessa altura, não há muito que fazer. Gosta de ir à pesca, de apanhar lulas com uma tonera, de ficar em casa a ler as revistas e jornais que os turistas deixam durante o Verão. Com vagar,  esmiúça, linha a linha, todas as notícias da Caras e do Correio da Manhã, não importa que tenham meses de atraso. O tempo na ilha avança de forma descontínua, como o vai-vem das ondas. Aqui, o mundo é uma miniatura e por isso e tudo é imenso. “Ih ih ih ih”, gritam as gaivotas. “Iac iac iac iac”, riem elas, alucinadas.
Em Maio do ano passado, um barco da Polícia Marítima chegou à ilha para trazer uma notícia. Vinha a bordo um funcionário da Câmara de Peniche, um médico e mais uns homens que  não conhecia. Não se explicaram logo. Ficaram assim num silêncio embaraçoso, permitindo que o cenário se enchesse de escarpas negras, de gargalhadas sinistras e um cheiro enjoativo a gaivotas mortas.
Marieta levanta-se todos os dias às 6 da manhã para fazer a limpeza. Mas a ilha é muito grande para uma pessoa só. Por exemplo, ninguém recolhe as aves mortas que vão apodrecendo nos planaltos de vegetação rasteira. Os cadáveres estão por todo o lado, alguns já secos, outros inteiros, de asas abertas, de costas, como se tivessem morrido no ar e depois tombado, ou esmagados de frente, de bruços, na posição de quem tivesse perdido a noção das distâncias ou o controlo do voo, e simplesmente se despenhasse contra uma pedra.
Os homens do barco quiseram que o casal fosse com eles para terra. No meio do mar disseram que tinha havido um acidente com o Beto. Depois falaram de um AVC, e  pensou que daria ao filho uns chás e aquilo passava-lhe.
“O Beto chegou a gravar com a Rita Guerra”, diz a mãe. “Era muito famoso”. Um dos “maiores cantores românticos portugueses da sua geração”, segundo a respectiva entrada na Wikipedia. A prova de que o talento pode nascer entre cinco crianças criadas sozinhas enquanto os pais ganhavam o seu sustento isolados numa ilha a vida inteira.
Foi uma das filhas que acabou por dar a  a informação: “Mãe, o nosso Beto morreu, nas Caldas da Rainha”.
Desde que soube isto, a funcionária da limpeza da Berlenga ainda não passou nenhum Inverno na ilha. Tem muita confiança no próximo. “A ilha ajuda. Este Inverno vou conseguir ultrapassar o desgosto. Pelo menos assim o espero, embora com um bocadinho de medo”.

Insua

Há dois barcos que vão à Insua: o do restaurante e o de Mário. A ilha situa-se a 200 metros da costa, em frente à praia de Moledo e à Mata de Camarido, mas quem quiser lá ir tem de chegar até ao restaurante Insua, em Caminha. Ali, à beira rio, há um cais partilhado pelas duas concessões, a de Mário Gonçalves de Vasconcelos, 64 anos, antigo pescador, dono de um pequeno barco de madeira, e a de Pedro Machado, 33 anos, e Sebastião Nunes, 27, que exploram respectivamente a empresa Minha Aventura e o restaurante, e possuem uma lancha moderna.
As viagens para a ilha são monopolizadas por estes dois barcos, mas, ao contrário das outras ilhas continentais que visitámos, a Insua está de facto abandonada. Ninguém sabe quem toma conta dela, ou seja, ninguém toma. Percebe-se que os barqueiros têm um estatuto especial. Pelo simples facto de lhe terem acesso são vistos de facto como os donos da ilha. É assim desde sempre.
Nos finais do século XIV, alguns monges da Galiza e das Astúrias, zangados por Castela apoiar o papa de Avignon durante o Grande Cisma do Ocidente, fugiram para o Minho. Chefiados por Frei Diogo Arias, construíram o convento de Santa Maria da Ínsua.
No ano de 1462, aos dois pescadores que costumavam transportar os monges para a ilha foi concedido um estatuto de privilégio. E desde então o ter-se acesso de barco à Insua tornou-se quase um título nobiliárquico. Uma espécie de condes da Insua.
O uso militar da ilha começaria em 1580, o ano da perda da independência. Uma armada galega ocupou o convento, em demonstração de apoio à causa dos Filipes. No início do século XVII, a ilha foi objecto de vários ataques de piratas, muitos deles britânicos, cuja coroa estava em guerra com a espanhola. A insegurança era tal, que, em 1623 já só havia dois monges no convento.
Com a recuperação da independência nacional, e para que dali não adviessem mais perigos, a Ínsua foi definitivamente transformada em quartel. D. Diogo de Lima, Governador das Armas da província do Minho, presidiu à construção da fortaleza.
Monges e soldados passaram a habitar a ilha, num conturbado convívio. Em 1807, durante as Invasões Francesas, a Insua foi ocupada por uma força espanhola, que capitularia no ano seguinte perante os exércitos napoleónicos. Em 1834, os liberais extinguiram as ordens religiosas, e, desde então, tanto o forte como o convento ficaram abandonados.
O edifício, de grande complexidade arquitectónica, começou a degradar-se. A sua guarda, do Ministério da Defesa passou para o da Finanças, deste para o IPPAR e, por fim, para o Instituto Politéctico de Viana do Castelo. Todas as instituições devem estar orgulhosas do trabalho realizado: o forte está em ruínas.
Mário é pescador desde criança. Andou 14 anos no bacalhau, trabalhou por conta de outrem, em barcos grandes, depois sozinho. No navio Senhora das Candeias especializou-se em escalar o peixe. Chamavam-lhe o Faca Negra. Quando o Senhora das Candeias foi abatido, por imposição da CEE, Mário ficou a trabalhar no Clube da Insua, um clube chique de Moledo que possuía aqui um posto náutico.
Foi o edifício desse clube que seria adquirido por Sebastião Nunes e um irmão, para abrirem o restaurante Insua, especializado em polvo à lagareiro. Mário trabalha agora por conta própria. Faz passeios à ilha e pelo Rio Minho, em concorrência com a parceria de Sebastião e a Minha Aventura, que alugam bicicletas e barcos, organizam passeios de observação de pássaros, fazem viagens à ilha e promovem percursos de canoa ao luar.
À volta da ilha, o mar é azul escuro e agitado. Um pequeno barco de borracha vermelha anda à pesca nas ondas, perigosamente, junto aos rochedos que marcam a foz. A ilha tem praia de um lado e rochas do outro. Alguns banhistas apanham o barco e vêm para aqui fazer praia. Deixam um rasto de garrafas e embalagens de plástico. O forte está ocupado por um grupo de velhos radioamadores que obtiveram autorização para aqui montarem as antenas durante duas semanas. Mostram-se indignados com a presença dos repórteres. “Isto é uma zona militar”, dizem, e telefonam à Polícia.
“Então os senhores pensam que é só chegar aí à ilha, assim, sem mais nem menos”, diz-nos o polícia, pelo telefone do radioamador. “É preciso uma autorização”.
Brilhando semi-enterrada na areia, uma garrafa fechada parece ter sido deixada por um náufrago que não conseguiu enviar a sua mensagem. A Insua, a única ilha abandonada de Portugal, pede socorro.
(PÚBLICO)

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