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quarta-feira, 28 de setembro de 2011

ILHA DO PESSEGUEIRO



fotos Sines.pt

Ilha do Pessegueiro

Vista da ilha, a terra parece mais próxima do que parece a ilha vista de terra. Isto faz pensar que uma ilha nunca quer ser ilha. A terra afasta-a. Ignora-a, como um amante negligente. Ou que teme a amada, ou ainda que a envolve de brumas e mitos, cobardemente, para amar nela os seus próprios sonhos. Vaidosas, as ilhas caem na armadilha. Dão-se ares. Prometem sempre mais do que têm para dar.
Na Ilha do Pessegueiro nunca houve pessegueiro nenhum. Nem o solo de areia endurecida o permitiria. O que diz a canção de Rui Veloso e Carlos Tê - “Havia um pessegueiro na ilha plantado por um vizir de Odemira, que dizem que por amor se matou novo… - não passa de uma lenda, mas ressuscitou a Ilha. Durante décadas, ou séculos, ninguém se lembrou dela. De repente, há 25 anos, com a canção Porto Côvo, foi como se tivesse emergido do mar. Porto Côvo tornou-se um estilo de vida, e a ilha 300 metros em frente uma espécie de símbolo de aventura e libertação.
Com mochilas e tendas, milhares de pessoas, na sua maioria vindas do Norte do país, começaram a descer a estas praias esquecidas. Músicos de rua e vendedores de artesanato vieram também, para garantir a especificidade do cenário. E a seguir a Porto Côvo foram as praias da Costa Vicentina. Vila Nova de Mil Fontes, Zambujeira do Mar, tudo levado na onda. Os festivais de Verão, do Sudoeste, depois o de Músicas do Mundo, em Sines. A onda de uma canção.
A Ilha do Pessegueiro tem ciclos de sono e vigília muito longos. Há vestígios de ocupação humana anteriores ao segundo século antes de Cristo, provavelmente por parte de navegadores de Cartago. Mas tornou-se importante, há provas concludentes disso, no período da ocupação romana, por alturas do Alto Império. Os comerciantes de Roma construíram aqui uma fábrica de salgar peixe, cujas ruínas estão bem visíveis.
“O peixe que pescavam, do Cabo de São Vicente para Norte, atum e sardinhas, precisava de ser salgado, usando o sal de Alcáçer do Sal. E construiram a fábrica aqui”, explica Joaquim Matias, o “dono” da Ilha do Pessegueiro. “Estas ruínas ficaram a descoberto após uma tempestade que houve aqui, em 1979. O peixe era colocado nestas placas de argamassa impermeável… esta zona é construída com pedra da ilha, que é areia consolidada, e esta de pedra impermeável, que traziam de terra… a cobertura era feita em telha de meia-cana, assim redonda porque era moldada por mulheres, que colocavam o barro sobre a coxa… Chiu! Caladas!” Por uns segundos, as gaivotas parecem obedecer ao amo, interrompendo o seu grito anelante e esganiçado. “Estes são os bancos onde se sentavam… havia canais à volta da sala, tudo barrado com argila virgem… uma lareira, um forno de cozer pão… sauna, depois o frigidarium… Por este buraco a água infiltrava-se na areia, porque a fábrica tinha de ser limpa todos os dias…”
Quando as gaivotas voltam a fazer muito barulho, como se estivessem a protestar, Joaquim repreende-as, com um ar zangado. “Chiu! Já disse! Estou a trabalhar!” E passa à atracção turística seguinte, o forte, seguido pelo pequeno grupo de portugueses e estrangeiros que trouxe no barco. “Durante onze séculos não houve quaisquer trabalhos nesta ilha. Até que no século XVI, durante o domínio filipino…”
Joaquim Matias, 62 anos, foi pescador em Porto Côvo desde os 12 anos de idade. Andou no barco do padrasto, o Esperança, desde 1960. Depois foi para a pesca do bacalhau, durante 12 anos. Embarcar para a Noruega num dos navios portugueses do bacalhau era uma alternativa ao serviço militar em África, que muitos pescadores aproveitavam. Regressou em 1974. A pesca foi entrando em decadência. Das dezenas de barcos que operavam, sobraram dois ou três. Foram tempos difíceis para Joaquim. Trabalhou nas obras do porto de Sines, juntou dinheiro para comprar um barco com que levava pescadores desportivos até à zona da ilha, que nos anos 90, graças à canção de Rui Veloso, se tornara num destino muito popular para pescadores, campistas selvagens e “hippies” nostálgicos da vida natural.
Sem qualquer actividade há mais de duzentos anos, a ilha não tinha quem tomasse conta dela. Ficou à mercê dos amantes da liberdade, transformou-se numa lixeira. E foi então que Joaquim teve a sua ideia. Escreveu um parecer, fez uma proposta às autoridades: ficaria com a concessão da ilha, em exclusivo. Comprometia-se a limpar o território, remover as aves mortas, manter os acessos, guardar e preservar as ruínas dos monumentos e impedir que pescadores, campistas ou qualquer pessoa não autorizada se aproximasse.
A direcção do Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina e a Capitania concordaram, e, em 1999, Joaquim ficou com a concessão. Mas só no ano passado com a exclusividade. Agora, é ele o único a ter acesso à ilha. Mal se chega, lê-se no pequeno embarcadouro flutuante: “Cais privado. Acesso exclusivo ao barco Novo Horizonte”.
Uma vida nova começou para o pescador. Comprou um barco, o Belo Horizonte, com capacidade para 12 passageiros, e pôs-se a estudar a geografia, geologia, biologia e História da Ilha do Pessegueiro. Ele, que só tem a 4ª classe, criou um programa de visitas guiadas, que realiza de 15 de Junho a 15 de Setembro. De Outubro a Maio, transporta grupos de pescadores desportivos.
Paga mil euros por ano pelo privilégio de ser o “dono” da ilha. Diariamente, percorre os 350 metros por 240 do pequeno território deserto, apanhando lixo e aves mortas. Certifica-se de que as plantas não foram danificadas, nenhum dos monumentos vandalizado. Em troca, cobra 10 euros a cada visitante que leva à ilha. Faz quatro viagens por dia.
Quando consegue lá chegar. Porque se o mar está alteroso, a viagem é demasiado perigosa, ou demasiado assustadora, pelo menos. Foi o que aconteceu durante a primeira metade deste Verão. Agora é preciso compensar.
Há uma certa emoção nos rostos dos turistas quando põem os pés na ilha deserta. Joaquim faz render o momento. Mostra-lhes um objecto esbranquiçado, com vários metros de comprimento, que parece um tronco. “Isto é o que resta do pessegueiro”, brinca ele. Na verdade, trata-se de meia maxila de um cachalote que uma tempestade em 2002 estraçalhou por toda a costa. Joaquim encontrou o osso na praia de Porto Côvo e achou logo que seria um bom adereço para a sua performance. Trouxe-o e é agora com ele que inicia a narrativa, para explicar que o nome Pessegueiro derivou de Piscis Secarum, ou Piscatorium. Avança pela ilha falando do forte, dos piratas e do porto artificial de Alexandre Massai, acrescentando aos factos elementos de erudição e contexto histórico. “Chiu! Calem-se, gaivotas!”, impõe-se ele. “Está ou não está impecável a minha ilha?”, orgulha-se. Vai pegando em pedras, telhas, objectos que dispôs em locais estratégicos para exemplificar as actividades dos antigos. “A 16 de Fevereiro o mar chegou aqui e desarrumou-me a mobília toda”.
Agora está tudo limpo e arrumado na Ilha do Pessegueiro. As coisas estão nos seus lugares, o que parece dar espaço à Natureza para se manifestar sem constrangimentos.
A rocha áspera e branca, refulgindo como marfim, esventrada pelo mar que lhe explode nas concavidades, e a desfaz em areia, instável e cristalina. As plataformas duras e claras, cheias de crateras, como a Lua. As crias de garça, tufos de algodão ralo e trémulo depositados negligentemente nas reentrâncias da pedra, entre os arbustos. Chilreiam com os seus bicos vermelhos e aduncos como narizes de bêbado, a céu aberto, totalmente desprotegidas, cheias de confiança na sua ilha,  o seu mundo. “São fofas, mas feias”, diz uma das turistas. “Estão mortas”, diz outra. “Estão todas cagadas”, observa uma terceira. “Que nojo”, murmura a última rapariga a passar pelos ninhos.
E as plantas misteriosas, de folhas verdes cobertas de sal, que nascem e morrem no Verão, apenas do lado leste da ilha, mais horas exposto ao sol e ao calor. Os seus caules brotam da rocha e as folhas brilham com os cristais de sal de que talvez se nutram. Ninguém sabe. Os biólogos só agora começaram a estudar o estranho vegetal, e ainda não chegaram a conclusões. Ao que parece, a espécie não existe em mais nenhum lugar do mundo. Às primeiras chuvas, desaparece por completo, talvez porque, sob o efeito da água doce, o sal se lhe dissolva das pétalas, e assim não consiga viver. Ou porque encontre, nos reversos desconhecidos da ilha, outras formas de vida. É uma teoria. Os caules podem não nascer ali, mas serem um apêndice aventureiro de alguma alga que habite as profundezas do oceano e, atraída pelo sol, perfure a rocha porosa para ensaiar uma dupla personalidade na atmosfera da ilha deserta.
Conduzindo o grupo pelos trilhos do Pessegueiro, Joaquim vai divagando pelos anais da intriga política dos tempos de D. Sebastião, de Alcácer Quibir e do advento dos Felipes, para explicar a construção do forte e os colossais blocos de pedra à beira da água.
Vê-se que adora a nova profissão. Hoje em dia, Joaquim dedica-se em exclusivo às suas três paixões. Uma antiga - o mar - outras recente - a dança e a História. Com a amiga Maria do Céu, 48 anos, Joaquim inscreveu-se num curso de danças de salão. As suas especialidade são a valsa e o bolero. “É um excelente bailarino”, jura Maria do Céu. E vê-se que é isto que os faz felizes. Para Joaquim, a ilha é um amor infeliz, que o afastou de muitos dos antigos colegas pescadores. Aproximou-o mais dos arqueólogos e professores, com quem está sempre a aprender, e menos dos companheiros, que não lhe perdoam ter arranjado maneira de ser o único a ganhar dinheiro com a ilha. “O Pessegueiro desperta muita cobiça”.
Joaquim prossegue o seu relato aos turistas, que com o respeito que inspiram os homens que reemergiram na vida, nem se lembram de lhe regatear o rigor científico.
A chegada da dinastia castelhana ao trono português atraiu a inimizade dos ingleses, envolvidos na Guerra dos 80 anos contra a Espanha. Para que corsários britânicos não usassem a ilha para atacar os navios, Felipe II mandou construir o forte de Santo Alberto. A obra seria entregue ao arquitecto napolitano Alexandre Massai, que viria também a tomar em mãos a construção de um porto de características inéditas e porventura demasiado ambiciosas.
Massai imaginou ligar a ilha ao conjunto de rochedos chamados Penedos do Cavalo, e estes ao próprio continente. Usando escravos oriundos do norte de África, mandou cortar enormes pedaços da ilha, que seriam lançados ao mar e arrastados com alavancas, criando um molhe artificial até aos Penedos do Cavalo.
Mas Massai não calculou que, em contacto com a água, os cubos de 1200 toneladas de rijo arenito se começariam a desfazer. As dificuldades tornaram-se incomportáveis, e o projecto seria abandonado, em 1598. O tsunami de 1755 deixaria as estruturas irremediavelmente destruídas. Mais tarde, o forte foi abandonado, e a ilha voltou a mergulhar no seu profundo torpor. Até que, dois séculos depois, alguém cantasse o seu nome.
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