Na madrugada do dia 1 de Janeiro de 1962, um grupo de miltares e civis ousou enfrentar o regime fascista de Salazar promovendo uma revolta armada que tinha como objectivo inicial tomar o quartel de Infantaria 3 de Beja e, por esse motivo, acabou por ficar para a História como "assalto ao quartel de Beja". Ação gizada pelo general Humberto Delgado, a tentativa de golpe falhou, mas, não só fez estremecer o regime ditatorial, como serviu de rastilho para outras acções que lhe sucederam.
A ideia de uma sublevação geral do País a partir de Beja radicou na forte adesão do povo português em torno da candidatura de Humberto Delgado nas eleições presidenciais de 1958. "Romanticamente", como adjectiva João Varela Gomes, hoje coronel reformado, na altura capitão do Exército e comandante militar da revolta armada de Beja, o "general sem medo" acreditava que, ganhando primeiro a adesão das populações do Alentejo, conseguiria que todo o País se revoltasse contra o regime fascista.
Varela Gomes diz que "Beja foi bem escolhido" sob o ponto de vista do estado de espírito das populações, porém, a revolta tinha muitas fragilidades. "Desde logo, o facto de se ter perdido o contacto com Humberto Delgado que chegou a Portugal e ficou clandestinamente alojado numa pensão em Lisboa e só chegou a Beja já a acção se tinha gorado e a coluna civil não compareceu ao encontro marcado para antes da tomada do quartel. O desastre absoluto da rede de comunicações foi a causa do fracasso", recorda o agora coronel na reforma.
Embora tenha ficado para a História com a designação de "assalto", o então comandante militar da sublevação contesta que se tenha tratado de um assalto. E a razão é simples: "tínhamos a chave do quartel, dado que o oficial mais graduado, o Francisco Pestana, filho de um ministro da I República, estava connosco". Assim, os revoltosos entraram no quartel, prenderam os militares que ali se encontravam e "tudo correu bem" até então, sem qualquer troca de tiros. Porém, a tentativa de golpe acabou por não terminar bem para Varela Gomes, nem para o subsecretário de Estado do Exército - Salazar era na altura também ministro da Defesa -, Jaime da Fonseca que, sabedor da intenção, decidiu partir para Beja e morreu após ter caminhado sozinho para o quartel, quando este já estava tomado pela GNR.
Por sua vez, João Varela Gomes foi ferido com gravidade. "A certa altura, recebemos a informação de que se encontrava no quartel um oficial superior. Isso sucedeu porque naturalmente estavam avisados da acção. O oficial era o Calapez que também era o comandante da Legião Portuguesa em Beja. Ofereci-me para o ir buscar e quando abro a porta da sala em que se encontrava e dou um passo, o Calapez dispara dois tiros à queima-roupa que me atingem perto do coração e na perna, junto à jugular. Não chegou a haver conversa ou qualquer troca de palavras".
O fracasso da revolta armada de Beja resultou em dezenas de prisões, entre as quais a de João Varela Gomes que - "arbitrariedade de Salazar" - foi demitido do Exército e entregue à polícia política (PIDE), tendo passado seis anos nos cárceres fascistas.
Resgatar a memória
A acção revolucionária de Beja fracassou. Porém, antecedeu outras importantes iniciativas contra o regime fascista como a revolta estudantil de Março de 1962, as comemorações do 1.º de Maio desse mesmo ano e a revolta do Couço. Provou igualmente a importância de combater e denunciar o regime e é um exemplo da resistência anti-fascista.
Na última semana de 2011, para assinalar o 50.º aniversário do acto revolucionário de Beja os sobreviventes desta reuniram-se e divulgaram um documento para resgatar a "memória apagada" do acontecimento.
"O combate e a resistência contra a ditadura e o fascismo em Portugal constituíram um processo contínuo ao longo de metade do século XX. Nesse processo insere-se a Revolta de Beja... porque aconteceu e ficou selada com sangue e morte. A sua importância e significado são-lhe conferidos pelo fluxo histórico no seu todo. Não foi um episódio isolado, fora do contexto da luta comum do povo português pela libertação de um regime ditatorial. Com efeito, no caso da Revolta de Beja é fácil estabelecer a sua ligação orgânica com o grandioso movimento de massas/levantamento popular provocado pelas eleições presidenciais de 1958; vindo a ser exactamente o general Humberto Delgado o impulsionador da Revolta de Beja e, como tal, figurando em primeiro lugar na lista dos 87 incriminados pronunciados para julgamento no tribunal plenário fascista".
Acusando a ideologia dominante de pretender apagar da memória colectiva a acção revolucionária de Beja, os sobreviventes desta afirmam que "não serão certamente a contrafação histórica ou a posição negacionista, até hoje dominante, que conseguirão alterar o significado patriótico/cívico/ético" da tentativa de derrube do regime fascista e dizem-se "felizes" por "poderem afirmar que a Revolta de Beja insere-se, com honra, no processo histórico de luta e resistência do povo português contra a ditadura e o fascismo".
Subscreveram o documento Airolde Casal Simões, Alexandre Hipólito dos Santos, Alfredo da Conceição Guaparrão Santos, António da Graça Miranda, António Pombo Miguel, António Ricardo Barbado, António Vieira Franco, Artur dos Santos Tavares, Edmundo Pedro, Eugénio Filipe de Oliveira, Fernando Rôxo da Gama, Francisco Brissos de Carvalho, Francisco Leonel Rodrigues Lobo, João Varela Gomes, José Galo, José Hipólito dos Santos, Manuel da Costa, Manuel Joaquim Peralta Bação, Raul Zagalo, Venceslau Luís Lopes de Almeida e Victor Manuel Quintão Caldeira. Homens que, na madrugada de 1 de Janeiro de 1962, empreenderam com coragem e determinação, uma tentativa de derrube do regime fascista.
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