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(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 26/07/2019)
A crise da nossa democracia resulta de uma crise geral de todas as formas de intermediação, que incluem os partidos, os parlamentos, as igrejas tradicionais, os sindicatos, os órgãos de comunicação social.
Concentrar o debate exclusivamente na corrupção (que a democracia apenas torna mais visível), na desigualdade, na imigração, na globalização ou nas redes sociais dá-nos uma visão parcelar do problema.
Assumo que a globalização retirou ao poder político a capacidade de exercer a sua função reguladora e estratégica. Que essa globalização, associada ao desenvolvimento tecnológico, criou, através de novas plataformas de comunicação, novas comunidades eletivas que não coincidem com o universo territorial e afetivo indispensável ao exercício da democracia.
Que há uma crise geral de autoridade moral e intelectual, que se estende da política à ciência, destruindo uma “verdade” comum que a democracia precisa para ser exercida em nome de todos. E que as mudanças rápidas a que assistimos criam um sentimento de insegurança e precariedade que favorece discursos que prometam devolver ordem ao que está desordenado.
A melhor forma de travar a decadência da democracia não é insistir nessas causas. Retirar poder ao Estado, atirando competências políticas para estruturas ainda mais distantes, não contribuirá para aproximar os cidadãos do poder. Retirar a política da rua (seja nas campanhas ou no voto) para a passar a exercê-la no espaço virtual, desmaterializando a democracia, não aprofundará o sentimento de pertença.
Transformar a política numa proposta atomizada de modos de vida, que ignoram consensos científicos e civilizacionais, só aprofundará a ansiedade das pessoas. E tornar o sistema político cada vez mais instável apenas empurrará mais gente para uma nostalgia romanceada de um tempo de ordem e segurança.
As pessoas sentem que estão numa tempestade. É um porto seguro que procuram, não é uma jangada que vá com a maré. A questão é se esse porto seguro é uma fortaleza autoritária ou uma comunidade de interajuda solidária. Uma coisa é certa: não se combate a ansiedade fazendo da incerteza um discurso político.
Não tenho, como é evidente, nenhuma resposta milagrosa para este tempo difícil.
O máximo que tenho é algumas inclinações.
A mais forte é esta: a proximidade é a melhor resposta ao sentimento de ansiedade que domina as nossas comunidades, cria um profundo sentimento de descrença e desconfiança e está a minar todas as formas de autoridade moral e de intermediação social e política.
Não estou a usar uma palavra vazia.
Estou a falar de proximidade no sentido literal: o que está fisicamente perto. Porque tenho a convicção que parte do sentimento de desconfiança em relação à democracia e do deslaçamento das comunidades resulta de uma crise de empatia. Claro que a desigualdade social, que voltou a aumentar nas sociedades ocidentais, é um elemento central neste deslaçamento. Assim como o desmantelamento dos Estados Sociais, a perda de poder dos Estados face ao mercado ou a dispersão das formas de comunicação e de socialização. Mas, não tendo solução para nada disto, acredito que a proximidade física é o melhor instrumento para combater uma cultura que nos está a atomizar e a escravizar.
Como é que isto se traduz? Levando à letra a velha máxima de “pensar global e agir local”. Local mesmo. No bairro. E isso quer dizer que as organizações políticas, e sobretudo as partidárias, que quiserem recuperar o seu papel têm de ser elas próprias apostar neste regresso à base. Não se trata apenas de deixar de pôr todas as fichas nos media tradicionais, intermediários em crise, trata-se de não julgar que o seu substituto são as redes sociais.
Uns e outros continuarão a ser indispensáveis para a comunicação política, mas a regeneração da atividade política está onde se fez no passado: no porta a porta. É a melhor forma de voltar a criar laços de empatia, compromisso e confiança política. É até a melhor forma de renovar o pessoal político ou contrariar as fake news.
Isto não passa apenas pela comunicação política. A boa comunicação política está relacionada com a ação política.
O porta a porta não serve de nada se não se relacionar com a vida daquelas pessoas. Quem lhes bate à porta tem de ser um dos seus. Têm de ser as pessoas que elas viram a lutar pela resolução concreta de problemas concretos. Claro que nada disto dispensa a ação nacional, europeia e internacional. Não estou a falar de um novo sistema político, estou a falar de uma estratégia para recuperar a ação política e democrática.
Numa entrevista à última edição da revista “Manifesto”, o sociólogo económico alemão Wolfgang Streeck afirmou que pode ser que esteja nas “pequenas unidades políticas, como os distritos e as cidades, onde o declínio da infraestrutura pública durante a era do neoliberalismo forçou os cidadãos e os governos locais a responderem a necessidades coletivas de cuidados à infância, transporte, policiamento e saúde” a última bolsa de resistência à destruição do Estado Social.
Já são as estruturas locais do Estado, muitíssimo mais sujeitas à pressão democrática, que estão a assumir funções que os Estados Nacionais abandonaram e que estruturas supranacionais, distantes das populações, nunca assumirão. Se assim é, este é o espaço ideal para recuperar a democracia.
Não estou a defender um novo basismo, que nunca me entusiasmou. Acho que ação política continua a depender de experiência política. E de pensamento político estruturado. E que as organizações políticas não devem corresponder a uma mera soma de causas sem cimento ideológico que as torne coerentes, inteligíveis e com propósito.
Mas as coisas têm de voltar cá abaixo. A ação política tem de voltar à cidade. Ao que está perto. Onde se consegue responder à vida das pessoas com eficácia visível e em tempo que a memória abarque. Isso não resolverá os nossos problemas essenciais, mas permitirá aos agentes políticos mais ativos recuperar a confiança popular.
Concentrar o debate exclusivamente na corrupção (que a democracia apenas torna mais visível), na desigualdade, na imigração, na globalização ou nas redes sociais dá-nos uma visão parcelar do problema.
Assumo que a globalização retirou ao poder político a capacidade de exercer a sua função reguladora e estratégica. Que essa globalização, associada ao desenvolvimento tecnológico, criou, através de novas plataformas de comunicação, novas comunidades eletivas que não coincidem com o universo territorial e afetivo indispensável ao exercício da democracia.
Que há uma crise geral de autoridade moral e intelectual, que se estende da política à ciência, destruindo uma “verdade” comum que a democracia precisa para ser exercida em nome de todos. E que as mudanças rápidas a que assistimos criam um sentimento de insegurança e precariedade que favorece discursos que prometam devolver ordem ao que está desordenado.
A melhor forma de travar a decadência da democracia não é insistir nessas causas. Retirar poder ao Estado, atirando competências políticas para estruturas ainda mais distantes, não contribuirá para aproximar os cidadãos do poder. Retirar a política da rua (seja nas campanhas ou no voto) para a passar a exercê-la no espaço virtual, desmaterializando a democracia, não aprofundará o sentimento de pertença.
Transformar a política numa proposta atomizada de modos de vida, que ignoram consensos científicos e civilizacionais, só aprofundará a ansiedade das pessoas. E tornar o sistema político cada vez mais instável apenas empurrará mais gente para uma nostalgia romanceada de um tempo de ordem e segurança.
As pessoas sentem que estão numa tempestade. É um porto seguro que procuram, não é uma jangada que vá com a maré. A questão é se esse porto seguro é uma fortaleza autoritária ou uma comunidade de interajuda solidária. Uma coisa é certa: não se combate a ansiedade fazendo da incerteza um discurso político.
Não tenho, como é evidente, nenhuma resposta milagrosa para este tempo difícil.
O máximo que tenho é algumas inclinações.
A mais forte é esta: a proximidade é a melhor resposta ao sentimento de ansiedade que domina as nossas comunidades, cria um profundo sentimento de descrença e desconfiança e está a minar todas as formas de autoridade moral e de intermediação social e política.
Não estou a usar uma palavra vazia.
Estou a falar de proximidade no sentido literal: o que está fisicamente perto. Porque tenho a convicção que parte do sentimento de desconfiança em relação à democracia e do deslaçamento das comunidades resulta de uma crise de empatia. Claro que a desigualdade social, que voltou a aumentar nas sociedades ocidentais, é um elemento central neste deslaçamento. Assim como o desmantelamento dos Estados Sociais, a perda de poder dos Estados face ao mercado ou a dispersão das formas de comunicação e de socialização. Mas, não tendo solução para nada disto, acredito que a proximidade física é o melhor instrumento para combater uma cultura que nos está a atomizar e a escravizar.
Como é que isto se traduz? Levando à letra a velha máxima de “pensar global e agir local”. Local mesmo. No bairro. E isso quer dizer que as organizações políticas, e sobretudo as partidárias, que quiserem recuperar o seu papel têm de ser elas próprias apostar neste regresso à base. Não se trata apenas de deixar de pôr todas as fichas nos media tradicionais, intermediários em crise, trata-se de não julgar que o seu substituto são as redes sociais.
Uns e outros continuarão a ser indispensáveis para a comunicação política, mas a regeneração da atividade política está onde se fez no passado: no porta a porta. É a melhor forma de voltar a criar laços de empatia, compromisso e confiança política. É até a melhor forma de renovar o pessoal político ou contrariar as fake news.
Isto não passa apenas pela comunicação política. A boa comunicação política está relacionada com a ação política.
O porta a porta não serve de nada se não se relacionar com a vida daquelas pessoas. Quem lhes bate à porta tem de ser um dos seus. Têm de ser as pessoas que elas viram a lutar pela resolução concreta de problemas concretos. Claro que nada disto dispensa a ação nacional, europeia e internacional. Não estou a falar de um novo sistema político, estou a falar de uma estratégia para recuperar a ação política e democrática.
Numa entrevista à última edição da revista “Manifesto”, o sociólogo económico alemão Wolfgang Streeck afirmou que pode ser que esteja nas “pequenas unidades políticas, como os distritos e as cidades, onde o declínio da infraestrutura pública durante a era do neoliberalismo forçou os cidadãos e os governos locais a responderem a necessidades coletivas de cuidados à infância, transporte, policiamento e saúde” a última bolsa de resistência à destruição do Estado Social.
Já são as estruturas locais do Estado, muitíssimo mais sujeitas à pressão democrática, que estão a assumir funções que os Estados Nacionais abandonaram e que estruturas supranacionais, distantes das populações, nunca assumirão. Se assim é, este é o espaço ideal para recuperar a democracia.
Não estou a defender um novo basismo, que nunca me entusiasmou. Acho que ação política continua a depender de experiência política. E de pensamento político estruturado. E que as organizações políticas não devem corresponder a uma mera soma de causas sem cimento ideológico que as torne coerentes, inteligíveis e com propósito.
Mas as coisas têm de voltar cá abaixo. A ação política tem de voltar à cidade. Ao que está perto. Onde se consegue responder à vida das pessoas com eficácia visível e em tempo que a memória abarque. Isso não resolverá os nossos problemas essenciais, mas permitirá aos agentes políticos mais ativos recuperar a confiança popular.
Se a regeneração da democracia depende da proximidade que devolva empatia à política, ela renascerá na ação local. Os partidos políticos que se queiram reinventar têm de voltar ao bairro, fazer aí combate político e cidadão e restaurar os laços de confiança que se perderam. Porta a porta, corpo a corpo. Porque as redes sociais são as televisões do futuro: um cemitério de emoções. E porque é no local que está a última trincheira de todos os combates globais. Se as grandes narrativas já não resultam, que se transformem em lutas locais que as traduzam.
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