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terça-feira, 30 de julho de 2019

Petra, uma maravilhosa miragem no deserto

 Petra parece uma alucinação, uma miragem no deserto jordano. Encaixada entre escarpados e acessível através de um caminho estreito e sinuoso, deslumbra o visitante com as suas infinitas tonalidades, desde o rosa-pálido ao vermelho-sangue. E, claro, os seus fantásticos edifícios talhados no arenito são a jóia da coroa.
Texto Alec Forssmann   Fotografia  Jeremy Horner / Getty Images
Elementos nabateus e helenísticos combinam-se nos túmulos reais (na imagem, o túmulo da Urna), construídos no escarpado de Al-Khubtha. A sua grande dimensão e a riqueza da decoração das fachadas sugerem tratar-se de sepulturas de reis nabateus.
A arquitectura monumental desta cidade milenar integra-se na perfeição nas escarpas do terreno. As requintadas fachadas de corte helenístico e os capitéis de criação nabateia – com cabeças de elefante como volutas – evocam um passado próspero e uma época em que Petra controlava as rotas de caravanas que atravessavam a península arábica. A capital dos nabateus floresceu com o comércio de especiarias e, segundo o relato de Estrabão na sua “Geografia”, as caravanas de mercadores transitavam “com segurança e facilidade e com tal número de homens que em nada se distinguiam de um exército”. A cidade antiga de Petra, salpicada por túmulos majestosos e templos sagrados, transmite ainda o esplendor do reino nabateu, mas também desperta uma reflexão: como conseguiu esta cultura prosperar num ambiente tão árido e rochoso?
A cidade antiga de Petra, salpicada por túmulos majestosos e templos sagrados, transmite ainda o esplendor do reino nabateu
Petra foi, efectivamente, um oásis no deserto. Floresceu graças à incrível capacidade humana de transformar água em vida, disponibilizando o escasso e valioso elemento num formidável complexo de fontes, tanques, jardins e até numa piscina monumental com um pequeno templo no centro, segundo revelaram as últimas escavações arqueológicas. O seu engenhoso sistema hidráulico, formado por tubos, canais e cisternas, abastecia toda a população e enchia os bebedouros. 
A luz solar ilumina o monumento mais famoso de Petra, Al-Jazneh, ou “o Tesouro”. A sua função tem sido muito debatida, mas pensa-se actualmente que se trata de um túmulo real, talvez construído durante o reinado do rei nabateu Aretas IV (8 a.C.-40 d.C.).
Seminómada nas suas origens e de proveniência desconhecida (crê-se que tenha vindo de algum ponto da península arábica ou do golfo Pérsico), o povo nabateu transitou de uma sociedade nómada, que apenas precisava de pernoitar em tendas de pele de cabra, para outra, bem diferente, sedentária e dependente de habitações escavadas na rocha. Soube tirar partido do comércio caravaneiro porque, como experientes transumantes que eram, os nabateus conheciam o deserto como ninguém e sabiam aproveitar os seus escassos recursos.
O historiador grego Diodoro Sículo, do século I a.C., explica que os nabateus criavam depósitos subterrâneos impermeáveis que “enchiam com a água da chuva e fechavam as aberturas com esmero, nivelando a superfície para que mais ninguém os descobrisse, deixando sinais que apenas eles reconheciam e que mais ninguém compreendia”.
Petra alcançou o seu apogeu na época helenística e manteve o seu esplendor, embora não a sua independência, após a conquista romana. Naquela que se considera a primeira referência fidedigna à existência dos nabateus, Diodoro descreve a resistência deste povo às incursões do general macedónio Antígono I – que esteve ao serviço de Filipe II e Alexandre – no ano 312 a.C. O último século antes de Cristo e o primeiro da nossa era representam o auge cultural e económico da capital nabateia. Os seus habitantes, com língua e escrita próprias (uma variante do aramaico), cunharam moeda e veneraram os seus próprios deuses, entre os quais Al-Qaum, o deus nabateu da guerra e da noite e guardião das caravanas. A sua arquitectura conseguiu combinar de forma singular as tradições artísticas do Ocidente e do Próximo Oriente 
Ao fundo da via ladeada por colunas, uma grande porta com três vãos separava a zona pública da zona sagrada, ou temenos, e permitia o acesso ao templo de Qasr al-Bint, o mais importante da cidade, provavelmente consagrado a Duchara, a divindade principal do panteão nabateu.
Em 106 d.C., no reinado do imperador Trajano, o reino foi anexado a Roma, que ocupou o território e Petra converteu-se na capital da Arábia Pétrea, uma província romana fronteiriça a sul da Síria. O seu esplendor durou algum tempo, mas alterações nas rotas comerciais favoreceram a cidade vizinha de Palmira e marcaram o seu declínio. Durante o período bizantino, a região sofreu vários sismos devastadores. Debilitada pelo decréscimo das suas actividades comerciais, caiu finalmente no esquecimento até ser redescoberta em 1812 pelo explorador e orientalista suíço Johann Ludwig Burckhardt. Para não levantar suspeitas entre as tribos hostis da região, o investigador vestiu-se como um árabe e acedeu à cidade rosada sob o pretexto de sacrificar uma cabra em honra de Aarão, o irmão mais velho de Moisés.
No slideshow: Um monumento conquistado à rocha - Al-Jazneh é uma das construções mais surpreendentes da Antiguidade. Esculpida há dois mil anos na rocha viva, alia a engenharia à arquitectura com precisão matemática. O desafio logístico da sua edificação no deserto foi bem-sucedido graças a uma técnica revolucionária: a construção de cima para baixo e a abertura de plataformas na parede vertical, como se fossem andaimes. Ilustrações: Rise Studio Architectural Rendering





Nas suas “Viagens na Síria e na Terra Santa”, Burckhardt relata a descoberta da cidade lendária esculpida na rocha e perdida durante um milénio: “Após um passeio de 25 minutos entre as rochas, chegámos a um sítio onde o desfiladeiro abria e o leito de um ribeiro vindo de sul se unia ao Siq [o desfiladeiro, a entrada principal de Petra]. Do lado da rocha perpendicular, mesmo em frente do vale principal, apareceu um mausoléu escavado na rocha, cuja localização e beleza foram calculadas para causar uma impressão extraordinária no viajante, após quase meia hora passada num caminho escuro e quase subterrâneo.” 
Burckhardt relata a descoberta da cidade lendária esculpida na rocha e perdida durante um milénio.
Esta é, em traços gerais, a história de Petra, mas o seu DNA identitário forjou-se muito antes da presença humana no planeta. Há cerca de quinhentos milhões de anos, a Terra era um enorme mundo aquático e foi nesse tempo longínquo que se formou o arenito no qual viria a ser esculpida a cidade do deserto. Os depósitos de areia acumulados pelos rios largos que fluíam para norte, sem vegetação que os contivesse, converteram-se em rochas compactas com o passar dos milénios.
“Entrada em Petra, no dia 10 de Março de 1839”, gravura pertencente ao livro “Terra Santa”, de David Roberts (1796-1864), litografia de Louis Haghe, colecção privada. ImagemBridgeman Images/ACI.
 Abrigados sob a pedra
Vivos e mortos dividiam o espaço urbano da capital do reino nabateu. Edificada sobre um terreno árido e montanhoso, a cidade albergava grandes templos e recintos públicos situados de ambos os lados de uma grande avenida ladeada por colunas que a dividia ao meio. Os nabateus escavaram os seus túmulos na rocha e transformaram a cidade, protegida por montes e gargantas, numa urbe faustosa. Ilustração: Rise Studio Architectural Renderia.
1 Siq, desfiladeiro que atravessa o região de Al-Khubtha e entrada principal da cidade; 2  Al-Jazneh, ou o Tesouro; 3  Túmulo dos obeliscos; 4  Teatro principal; 5  Rua das fachadas; 6  Túmulos reais; 7  Túmulo-palácio; 8  Avenida com colunata; 9  Mercado superior; 10  Jardins com lago; 11  Grande templo do Sul; 12  Templo dos leões alados; 13  Templo de Qasr al-Bint Farun; 14  Canal hidráulico; 15 Ed-Deir, ou o Mosteiro; 16 Túmulo do soldado.
“Estes arenitos são mais antigos do que as primeiras plantas terrestres. Não havia árvores nem arbustos nas margens destes rios primitivos, explica David B. Loope, geólogo da Universidade do Nebrasca e explorador da National Geographic Society. David e a sua equipa estudam a morfologia da rocha de Petra e a forma como esta poderá ter influenciado uma arquitectura tão peculiar. Os grãos de areia que formam o arenito estavam cobertos por uma camada fina de óxido de ferro. Milhões de anos mais tarde, o gás natural e o dióxido de carbono circularam através da rocha porosa e retiraram os grãos de areia do óxido de ferro, branqueando a rocha. Este arenito branqueado é o que hoje se conhece por formação DISI. Grande parte do ferro deslocou-se para baixo e surgiu siderite na formação denominada Umm Ishrin, o famoso arenito de Petra. 
Veios de tonalidades diferentes formam os peculiares remoinhos de óxido de ferro no arenito sobre o qual foi talhada a cidade de Petra. David B. Loope realizou estudos geológicos sobre os processos que criaram estes padrões nas rochas.
O episódio geológico seguinte ocorreu há cerca de 70 milhões de anos, quando as rochas com siderite da formação Umm Ishrin se elevaram devido ao movimento das placas litosféricas.
“As águas subterrâneas, que continham oxigénio, alcançaram a siderite, e os micróbios começaram a ‘alimentar-se’ dela: as cores vivas são, na verdade, o resíduo do óxido de ferro que as comunidades microbianas deixaram para trás. Os remoinhos e franjas que dão cor às rochas fornecem pistas sobre a direcção do fluxo das águas subterrâneas antigas”, prossegue Loope.
A paisagem actual, um terreno montanhoso com gargantas estreitas e outros elementos criados pela acção da água, “corresponde a um episódio de levantamento tectónico relativamente recente que começou há cerca de 15 milhões de anos, causado pelo movimento da placa arábica ao longo da zona da falha do mar Morto”.
A paisagem actual, um terreno montanhoso com gargantas estreitas e outros elementos criados pela acção da água.
Antigamente, um rio corria pelo meio de Petra. A cidade situava-se num vale profundo e, como conta Plínio, o Velho, encontrava-se “rodeada de montanhas íngremes, com um rio correndo entre elas”. Esse rio era Wadi Musa, actualmente seco durante a maior parte do ano, cujo nome faz referência ao vale de Moisés, onde, segundo a tradição, o profeta golpeou a pedra com a sua vara até a água brotar de forma milagrosa, dando de beber ao povo e aos seus animais.
A água foi o sustento de Petra e os romanos, sempre pragmáticos, cercaram a capital nabateia, cortando-lhe o abastecimento até a cidade se render.
O cheiro a incenso, mirra e especiarias já não inunda os recantos de Petra e não existem vestígios dos seus mercados animados, mas os impressionantes edifícios esculpidos no arenito cor-de-rosa, com as suas geometrias quebradas pelo tempo, mostram quão “grande deveria ser a opulência da cidade, que podia criar semelhantes monumentos em memória dos seus governantes”, escreveu Burckhardt. 
Desde 1982, Talal Akasheh, especialista da Universidade Hachemita da Jordânia, cataloga o sítio de Petra com vista à sua conservação. O projecto inclui uma base de dados com informação geográfica e documentação 3D. 
Ao longo dos seus 2.500 anos de história, esta cidade erigida num soberbo anfiteatro natural resistiu a invasões, sismos, deslizamentos de terras e até repentinas e catastróficas cheias, além de um prolongado abandono. Hoje, o turismo descontrolado, somado às inclemências do tempo, está a degradar os seus monumentos e maravilhas naturais. 
Hoje, o turismo descontrolado, somado às inclemências do tempo, está a degradar os seus monumentos e maravilhas naturais. 
“Não conseguia contemplar tanta beleza sem dizer a mim próprio como poderia contribuir para que não caísse de novo no esquecimento”, recorda Talal Akasheh, professor de Físico-Química na Universidade Hachemita da Jordânia. Talal visitou Petra, terra dos seus antepassados, em 1982 e, desde então, dedica todos os seus esforços a inventariar o sítio arqueológico e o conjunto monumental com vista à sua conservação futura. O projecto, premiado pela Rolex em 2008, inclui um Sistema de Informação Geográfica (SIG) do local, que funciona como uma base de dados, além de um método de documentação 3D e de um estudo não-invasivo para averiguar o teor de sal na rocha dos monumentos erodidos. No fundo, com escalas e métodos diferentes, as duas investigações, a de Loope e a de Akasheh, complementam-se perfeitamente. 
“Petra possui mundialmente o maior número de monumentos esculpidos na rocha. Além da extraordinária arte e arquitectura de origem humana, a natureza também utilizou as suas ferramentas para esculpir formações geológicas assombrosas”, resume Talal. “O homem e a natureza colaboraram na criação deste sítio fantástico, cujas riquezas visuais e artísticas são hoje apreciadas pelos turistas. É também um exemplo perfeito de como o homem antigo foi capaz de trabalhar em harmonia com o mundo natural, aproveitando os seus recursos e a escassez de água num desenvolvimento sustentável. Não me surpreende que Petra tenha sido eleita uma das novas sete maravilhas do mundo.


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