59. Um dia diferente dos outros
É sempre assim todas as manhãs. Enquanto ainda está estremunhado, esfrega os olhos, levanta a cabeça para olhar o mostrador digital do despertador, solta um palavrão porque é sempre mais tarde do que pensa ser, levanta-se num ápice, dirige-se à cozinha para ligar a máquina do café, espreita o estado do tempo pela janela semi-aberta e vai à casa de banho. Como ainda não acordou, lava a cara com água fria, muitas e muitas vezes seguidas e depois conversa um pouco com o espelho. Escanhoa-se sempre de gilette - há muito que abandonou a máquina de barbear cujo zumbido era como que uma canção de nanar – normalmente prolongando por mais uns minutos a conversa com a sua imagem, coloca o dentífrico na escova, molha a escova na torneira, o dentífrico cai na bacia (porque é que ele repete um gesto que ele próprio considera estúpido e que tem tantas vezes a mesma consequência, não o sabe explicar), repete a operação, lava os dentes, desta vez sem olhar o espelho, pudera, não quer ser criticado. Volta à cozinha, prepara a bica matinal, come uma bolacha de cereais integrais sem açúcar, mastiga devagar apesar de se ter levantado tarde, liga o computador com a chávena do café na mão, bebe-o devagar, saboreando-o enquanto o Windows se inicia. Abre as primeiras páginas dos jornais, principalmente os desportivos, quer ver o que é o que dizem do seu Benfica. Vai ver se os gatos gastaram as munições todas durante a noite, nutre-os e põe-lhes água fresca nos bebedouros. Toma um banho de água tépida, limpa-se cuidadosamente, veste uma camisa branca sem gravata e as suas melhores calças jeans, sapatos de ténis azuis, come uma maçã descascada e um iogurte, coloca um boné de basebol, verifica se desligou o esquentador, a máquina de café, o computador, as luzes e se fechou as torneiras. Volta à cozinha de onde pega no saco plástico preto que tinha preparado previamente, sai e dá quatro voltas à chave. Dirige-se à paragem do autocarro que deve estar a chegar. Faz sinal de paragem com uma mão enquanto a outra segura o saco de plástico preto, mostra o passe e senta-se. Tira do bolso um pequeno rádio transístor com um auscultador mono que enfia no ouvido esquerdo e bate com o pé direito no chão como que a marcar o compasso. Sai na paragem mais próxima do jardim para onde se encaminha ainda de transístor ligado. Quando os primeiros pássaros se aproximam desliga o rádio, tira do saco o pão desfeito e o milho partido. Aos poucos, sente-se rodeado por dezenas de pombos, pardais, patos, gansos, cisnes e outras espécies que ele saberia nomear. Quando se lhe acabou a ração, pediu desculpa às aves porque essa tarde não poderia voltar ao jardim. Era o dia do seu aniversário. Nessa tarde iria à pastelaria, comeria um bolo com muito creme e beberia um copo de café com leite e nem pensaria no colesterol. Se sobrassem migalhas trá-las-ia no dia seguinte.
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