Não dei por alguém se ter lembrado do primeiro aniversário da morte de António Dias Lourenço. Talvez tenha sido distracção minha, pois pouca importância dei aos jornais e televisões no passado domingo. Mas o esquecimento que pressinto não é algo que não antecipasse. Chegou a dizer-mo em conversas. Disse-me tantas coisas que hoje, perante um papel em branco, não é simples recordar um dos poucos heróis com quem privei.
Morreu com 95 anos e era a derradeira figura épica do Partido Comunista. Esteve 17 anos preso, protagonizou a mais espectacular fuga das prisões salazaristas, não cedeu a torturas que lhe brutalizaram o corpo e, mais importante do que tudo isso, jamais deixou de ser o mesmo homem. Generoso, tolerante à diferença, terno, disponível.
Falámos muitas vezes. E continuámos a fazê-lo quando assumi posições ferozes contra o seu partido. Nunca me confrontou com elas, nunca me disse que não podia ser, que eu estava errado e que o caminho certo era outro.
É claro que o pensava. Mas falávamos de outras coisas: das suas histórias, claro, do que arriscou, sofreu, construiu. Cada um de nós é uma pequena ilha, maior ou mais pequena. Mas ele mais parecia um continente.
Entrou para o Partido Comunista aos 16 anos pelas mãos de Diamantino Barros – um metalúrgico de Alverca.
Dez anos depois, em 1942, o conhecido Manuel Guedes sondou-o acerca da sua disponibilidade – e o jovem António respondeu-lhe que a sua vida pertencia ao partido.
Entregou-se à clandestinidade, tornou-se membro do Comité Central e nos anos 40 foi um dos principais responsáveis pela multiplicação do número de comunistas no Alentejo.
Conto-lhe um pouco dele, um pouco do que me passou…
A incrível fuga de Peniche já não tem segredos – pelo que passo por ela. E conto-lhe do seu pequeno filho, António como o pai, a quem foi diagnosticada uma leucemia fatal.
Lourenço estava preso e a PIDE, sabendo que a criança de 10 anos tinha pouco tempo de vida, permitiu uma última visita. Ao fim de cinco minutos, os guardas tiraram-lhe o filho dos braços. Ele pensou em atacá-los – mas teve consciência de que seria a última imagem que o pequeno levaria do seu pai. E conteve-se. No abraço de despedida, prometeu-lhe que falariam mais tarde e jurou-lhe eterno amor.
A direcção do PCP levou a criança a Moscovo, mas nada havia a fazer. Morreu na União Soviética e o corpo veio para Portugal embalsamado e com um sorriso. Após várias pressões, permitiram ao pai assistir ao funeral. Com a filha mais velha ao colo, Dias Lourenço aproximou-se do corpo do filho e para ela falou: «Estás a ver, querida? O mano António está a sorrir, está feliz».
Levantado do Chão, primeiro grande romance de José Saramago, conta a história de várias famílias alentejanas e da formação de uma cooperativa agrícola. O livro é inspirado por várias personagens – e a mais marcante de todas talvez tenha sido Dias Lourenço. Foi quem redigiu o manifesto de greve que é descrito no romance.
Ele adorava recordá-lo. Não tanto como a amizade com Soeiro Pereira Gomes e Alves Redol, padrinho da sua filha mais velha. Mas gostava de lembrar o Levantado do Chão como se nessa memória guardasse o essencial de si mesmo.
Dias Lourenço falava de literatura, emocionava-se com a memória do pequeno António e voltava sem sofrimento visível aos intermináveis dias de tortura. Nunca sentiu a dor física para não lhes dar o prazer de o ver sofrer. Mas depois. Bem, depois era pior.
Da primeira vez, um guarda do Aljube teve de o ajudar a subir as escadas. Chamava-se Manuel e todos o tratavam por Manuelzinho. Dias Lourenço subiu as escadas e, assim que chegou ao corredor dos presos políticos, bateu à porta de cada uma das celas com uma frase de ordem: «Malta, aqui ninguém fala. Os comunistas não falam».
Numa das celas ouviu um preso a chorar em voz alta. Guardou o nome para si, nunca mo disse.
Quando foi preso pela segunda vez, um conhecido pide de nome Tinoco gritou-lhe: «A gente já sabe que não fala do partido, mas tenho aqui um papel em que nos chama assassinos e está cá o meu nome. Tem que dizer quem escreveu isto».
António fez-lhe o sorriso da ordem. Algemaram-no com as mãos atrás das costas. Durante três dias e quatro noites espancaram-no e deram-lhe choques eléctricos. Na penúltima noite, Tinoco entrou na companhia de uma série de homens e voltou a falar do papel. Lourenço só conseguiu abanar a cabeça. Após mais um espancamento, abriram-lhe a boca, meteram-lhe o papel lá dentro e colocaram um adesivo. Toda a noite ficou assim – e o papel, por sorte, dissolveu-se.
Na manhã seguinte quatro agentes puseram-lhe a cabeça em cima de uma mesa, um deles apertou-lhe o nariz durante bastante tempo, outro tirou-lhe o adesivo e o terceiro fê-lo engolir um copo de água. Que lhe soube muito bem: «É verdade, Luís. Eu nunca falei, mas engoli muito papel».
Estava em casa de Bento Jesus Caraça no dia em que o matemático morreu, corria o ano de 1948. Relembrava-o por se irritar sempre que ouvia Mário Soares afirmar que não era comunista.
O partido enviara-o a casa de Bento para lhe dizer que, tendo em conta as dificuldades económicas por que passava, o ajudariam no que fosse preciso. Não o chegou a dizer. O professor Pulido Valente saiu do quarto a chorar e abraçou Manuel Mendes. Lourenço percebeu que nada mais poderia ser feito. E, como estava na clandestinidade, saiu o mais rapidamente que pôde.
De muitas mortes lhe falei. O curioso é que o fiz a propósito de alguém com verdadeira paixão pela vida. Um homem com estofo para aguentar o humor ácido de Ramalho Eanes, o que não é coisa pouca.
«Considero-o um amigo. E ainda como Presidente da República, numa cerimónia em Belém, como se nada fosse e com aquela cara que só ele tem, perguntou-me quantos anos estive preso. Respondi-lhe: ‘17’. Eanes, depois de uns segundos de silêncio, com um ar combalido, adiantou que eu devia ter devorado muitas criancinhas para estar tantos anos preso».
Para acabar, outra morte. A do pai, homem que Dias Lourenço admirava. Nos últimos instantes, o filho deu conta que uma luz na mesa-de-cabeceira encadeava os olhos ao pai. Perguntou-lhe se desejava que a apagasse. O velho pai escolheu então as suas últimas palavras: «Não, filho, o que eu preciso é de luz, muita luz. Não a apagues, por favor».
Morreu com 95 anos e era a derradeira figura épica do Partido Comunista. Esteve 17 anos preso, protagonizou a mais espectacular fuga das prisões salazaristas, não cedeu a torturas que lhe brutalizaram o corpo e, mais importante do que tudo isso, jamais deixou de ser o mesmo homem. Generoso, tolerante à diferença, terno, disponível.
Falámos muitas vezes. E continuámos a fazê-lo quando assumi posições ferozes contra o seu partido. Nunca me confrontou com elas, nunca me disse que não podia ser, que eu estava errado e que o caminho certo era outro.
É claro que o pensava. Mas falávamos de outras coisas: das suas histórias, claro, do que arriscou, sofreu, construiu. Cada um de nós é uma pequena ilha, maior ou mais pequena. Mas ele mais parecia um continente.
Entrou para o Partido Comunista aos 16 anos pelas mãos de Diamantino Barros – um metalúrgico de Alverca.
Dez anos depois, em 1942, o conhecido Manuel Guedes sondou-o acerca da sua disponibilidade – e o jovem António respondeu-lhe que a sua vida pertencia ao partido.
Entregou-se à clandestinidade, tornou-se membro do Comité Central e nos anos 40 foi um dos principais responsáveis pela multiplicação do número de comunistas no Alentejo.
Conto-lhe um pouco dele, um pouco do que me passou…
A incrível fuga de Peniche já não tem segredos – pelo que passo por ela. E conto-lhe do seu pequeno filho, António como o pai, a quem foi diagnosticada uma leucemia fatal.
Lourenço estava preso e a PIDE, sabendo que a criança de 10 anos tinha pouco tempo de vida, permitiu uma última visita. Ao fim de cinco minutos, os guardas tiraram-lhe o filho dos braços. Ele pensou em atacá-los – mas teve consciência de que seria a última imagem que o pequeno levaria do seu pai. E conteve-se. No abraço de despedida, prometeu-lhe que falariam mais tarde e jurou-lhe eterno amor.
A direcção do PCP levou a criança a Moscovo, mas nada havia a fazer. Morreu na União Soviética e o corpo veio para Portugal embalsamado e com um sorriso. Após várias pressões, permitiram ao pai assistir ao funeral. Com a filha mais velha ao colo, Dias Lourenço aproximou-se do corpo do filho e para ela falou: «Estás a ver, querida? O mano António está a sorrir, está feliz».
Levantado do Chão, primeiro grande romance de José Saramago, conta a história de várias famílias alentejanas e da formação de uma cooperativa agrícola. O livro é inspirado por várias personagens – e a mais marcante de todas talvez tenha sido Dias Lourenço. Foi quem redigiu o manifesto de greve que é descrito no romance.
Ele adorava recordá-lo. Não tanto como a amizade com Soeiro Pereira Gomes e Alves Redol, padrinho da sua filha mais velha. Mas gostava de lembrar o Levantado do Chão como se nessa memória guardasse o essencial de si mesmo.
Dias Lourenço falava de literatura, emocionava-se com a memória do pequeno António e voltava sem sofrimento visível aos intermináveis dias de tortura. Nunca sentiu a dor física para não lhes dar o prazer de o ver sofrer. Mas depois. Bem, depois era pior.
Da primeira vez, um guarda do Aljube teve de o ajudar a subir as escadas. Chamava-se Manuel e todos o tratavam por Manuelzinho. Dias Lourenço subiu as escadas e, assim que chegou ao corredor dos presos políticos, bateu à porta de cada uma das celas com uma frase de ordem: «Malta, aqui ninguém fala. Os comunistas não falam».
Numa das celas ouviu um preso a chorar em voz alta. Guardou o nome para si, nunca mo disse.
Quando foi preso pela segunda vez, um conhecido pide de nome Tinoco gritou-lhe: «A gente já sabe que não fala do partido, mas tenho aqui um papel em que nos chama assassinos e está cá o meu nome. Tem que dizer quem escreveu isto».
António fez-lhe o sorriso da ordem. Algemaram-no com as mãos atrás das costas. Durante três dias e quatro noites espancaram-no e deram-lhe choques eléctricos. Na penúltima noite, Tinoco entrou na companhia de uma série de homens e voltou a falar do papel. Lourenço só conseguiu abanar a cabeça. Após mais um espancamento, abriram-lhe a boca, meteram-lhe o papel lá dentro e colocaram um adesivo. Toda a noite ficou assim – e o papel, por sorte, dissolveu-se.
Na manhã seguinte quatro agentes puseram-lhe a cabeça em cima de uma mesa, um deles apertou-lhe o nariz durante bastante tempo, outro tirou-lhe o adesivo e o terceiro fê-lo engolir um copo de água. Que lhe soube muito bem: «É verdade, Luís. Eu nunca falei, mas engoli muito papel».
Estava em casa de Bento Jesus Caraça no dia em que o matemático morreu, corria o ano de 1948. Relembrava-o por se irritar sempre que ouvia Mário Soares afirmar que não era comunista.
O partido enviara-o a casa de Bento para lhe dizer que, tendo em conta as dificuldades económicas por que passava, o ajudariam no que fosse preciso. Não o chegou a dizer. O professor Pulido Valente saiu do quarto a chorar e abraçou Manuel Mendes. Lourenço percebeu que nada mais poderia ser feito. E, como estava na clandestinidade, saiu o mais rapidamente que pôde.
De muitas mortes lhe falei. O curioso é que o fiz a propósito de alguém com verdadeira paixão pela vida. Um homem com estofo para aguentar o humor ácido de Ramalho Eanes, o que não é coisa pouca.
«Considero-o um amigo. E ainda como Presidente da República, numa cerimónia em Belém, como se nada fosse e com aquela cara que só ele tem, perguntou-me quantos anos estive preso. Respondi-lhe: ‘17’. Eanes, depois de uns segundos de silêncio, com um ar combalido, adiantou que eu devia ter devorado muitas criancinhas para estar tantos anos preso».
Para acabar, outra morte. A do pai, homem que Dias Lourenço admirava. Nos últimos instantes, o filho deu conta que uma luz na mesa-de-cabeceira encadeava os olhos ao pai. Perguntou-lhe se desejava que a apagasse. O velho pai escolheu então as suas últimas palavras: «Não, filho, o que eu preciso é de luz, muita luz. Não a apagues, por favor».
Sem comentários:
Enviar um comentário