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sábado, 20 de agosto de 2011

Dias Lourenço e o filho que morreu com um sorriso

16 de Agosto, 2011por Luís Osório
Não dei por alguém se ter lembrado do primeiro aniversário da morte de António Dias Lourenço. Talvez tenha sido distracção minha, pois pouca importância dei aos jornais e televisões no passado domingo. Mas o esquecimento que pressinto não é algo que não antecipasse. Chegou a dizer-mo em conversas. Disse-me tantas coisas que hoje, perante um papel em branco, não é simples recordar um dos poucos heróis com quem privei.
Morreu com 95 anos e era a derradeira figura épica do Partido Comunista. Esteve 17 anos preso, protagonizou a mais espectacular fuga das prisões salazaristas, não cedeu a torturas que lhe brutalizaram o corpo e, mais importante do que tudo isso, jamais deixou de ser o mesmo homem. Generoso, tolerante à diferença, terno, disponível.
Falámos muitas vezes. E continuámos a fazê-lo quando assumi posições ferozes contra o seu partido. Nunca me confrontou com elas, nunca me disse que não podia ser, que eu estava errado e que o caminho certo era outro.
É claro que o pensava. Mas falávamos de outras coisas: das suas histórias, claro, do que arriscou, sofreu, construiu. Cada um de nós é uma pequena ilha, maior ou mais pequena. Mas ele mais parecia um continente.
Entrou para o Partido Comunista aos 16 anos pelas mãos de Diamantino Barros – um metalúrgico de Alverca.
Dez anos depois, em 1942, o conhecido Manuel Guedes sondou-o acerca da sua disponibilidade – e o jovem António respondeu-lhe que a sua vida pertencia ao partido.
Entregou-se à clandestinidade, tornou-se membro do Comité Central e nos anos 40 foi um dos principais responsáveis pela multiplicação do número de comunistas no Alentejo.
Conto-lhe um pouco dele, um pouco do que me passou…
A incrível fuga de Peniche já não tem segredos – pelo que passo por ela. E conto-lhe do seu pequeno filho, António como o pai, a quem foi diagnosticada uma leucemia fatal.
Lourenço estava preso e a PIDE, sabendo que a criança de 10 anos tinha pouco tempo de vida, permitiu uma última visita. Ao fim de cinco minutos, os guardas tiraram-lhe o filho dos braços. Ele pensou em atacá-los – mas teve consciência de que seria a última imagem que o pequeno levaria do seu pai. E conteve-se. No abraço de despedida, prometeu-lhe que falariam mais tarde e jurou-lhe eterno amor.
A direcção do PCP levou a criança a Moscovo, mas nada havia a fazer. Morreu na União Soviética e o corpo veio para Portugal embalsamado e com um sorriso. Após várias pressões, permitiram ao pai assistir ao funeral. Com a filha mais velha ao colo, Dias Lourenço aproximou-se do corpo do filho e para ela falou: «Estás a ver, querida? O mano António está a sorrir, está feliz».
Levantado do Chão, primeiro grande romance de José Saramago, conta a história de várias famílias alentejanas e da formação de uma cooperativa agrícola. O livro é inspirado por várias personagens – e a mais marcante de todas talvez tenha sido Dias Lourenço. Foi quem redigiu o manifesto de greve que é descrito no romance.
Ele adorava recordá-lo. Não tanto como a amizade com Soeiro Pereira Gomes e Alves Redol, padrinho da sua filha mais velha. Mas gostava de lembrar o Levantado do Chão como se nessa memória guardasse o essencial de si mesmo.
Dias Lourenço falava de literatura, emocionava-se com a memória do pequeno António e voltava sem sofrimento visível aos intermináveis dias de tortura. Nunca sentiu a dor física para não lhes dar o prazer de o ver sofrer. Mas depois. Bem, depois era pior.
Da primeira vez, um guarda do Aljube teve de o ajudar a subir as escadas. Chamava-se Manuel e todos o tratavam por Manuelzinho. Dias Lourenço subiu as escadas e, assim que chegou ao corredor dos presos políticos, bateu à porta de cada uma das celas com uma frase de ordem: «Malta, aqui ninguém fala. Os comunistas não falam».
Numa das celas ouviu um preso a chorar em voz alta. Guardou o nome para si, nunca mo disse.
Quando foi preso pela segunda vez, um conhecido pide de nome Tinoco gritou-lhe: «A gente já sabe que não fala do partido, mas tenho aqui um papel em que nos chama assassinos e está cá o meu nome. Tem que dizer quem escreveu isto».
António fez-lhe o sorriso da ordem. Algemaram-no com as mãos atrás das costas. Durante três dias e quatro noites espancaram-no e deram-lhe choques eléctricos. Na penúltima noite, Tinoco entrou na companhia de uma série de homens e voltou a falar do papel. Lourenço só conseguiu abanar a cabeça. Após mais um espancamento, abriram-lhe a boca, meteram-lhe o papel lá dentro e colocaram um adesivo. Toda a noite ficou assim – e o papel, por sorte, dissolveu-se.
Na manhã seguinte quatro agentes puseram-lhe a cabeça em cima de uma mesa, um deles apertou-lhe o nariz durante bastante tempo, outro tirou-lhe o adesivo e o terceiro fê-lo engolir um copo de água. Que lhe soube muito bem: «É verdade, Luís. Eu nunca falei, mas engoli muito papel».
Estava em casa de Bento Jesus Caraça no dia em que o matemático morreu, corria o ano de 1948. Relembrava-o por se irritar sempre que ouvia Mário Soares afirmar que não era comunista.
O partido enviara-o a casa de Bento para lhe dizer que, tendo em conta as dificuldades económicas por que passava, o ajudariam no que fosse preciso. Não o chegou a dizer. O professor Pulido Valente saiu do quarto a chorar e abraçou Manuel Mendes. Lourenço percebeu que nada mais poderia ser feito. E, como estava na clandestinidade, saiu o mais rapidamente que pôde.
De muitas mortes lhe falei. O curioso é que o fiz a propósito de alguém com verdadeira paixão pela vida. Um homem com estofo para aguentar o humor ácido de Ramalho Eanes, o que não é coisa pouca.
«Considero-o um amigo. E ainda como Presidente da República, numa cerimónia em Belém, como se nada fosse e com aquela cara que só ele tem, perguntou-me quantos anos estive preso. Respondi-lhe: ‘17’. Eanes, depois de uns segundos de silêncio, com um ar combalido, adiantou que eu devia ter devorado muitas criancinhas para estar tantos anos preso».
Para acabar, outra morte. A do pai, homem que Dias Lourenço admirava. Nos últimos instantes, o filho deu conta que uma luz na mesa-de-cabeceira encadeava os olhos ao pai. Perguntou-lhe se desejava que a apagasse. O velho pai escolheu então as suas últimas palavras: «Não, filho, o que eu preciso é de luz, muita luz. Não a apagues, por favor».
SOL

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