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quinta-feira, 4 de julho de 2019

"Portugal tem uma nova geração louca por ter outra linguagem e que não acredita no discurso da glorificação da história colonial"


A artista interdisciplinar, escritora e teórica Grada Kilomba em entrevista à VISÃO


A voz suave e pausada com que Grada Kilomba serve, olhos nos olhos, mensagens poderosíssimas recorda-nos que as revoluções nem sempre se cumprem com estrépito. E não haja equívocos: é mesmo uma revolução o que esta portuguesa, nascida em 1968, com raízes em Angola e São Tomé e Príncipe, tem vindo a operar na última década e meia – ainda que, por desatenção difícil de explicar, por cá apenas nos tenhamos apercebido da sua existência e da sua relevância em 2017, quando vimos duas exposições suas (The Most Beautiful Language, take irónico sobre a língua lusa, e Secrets to Tell, reflexão sobre a herança colonial e pós-colonial). Mas não há rutura revolucionária sem manifesto: o seu chama-se Memórias da Plantação: Episódios de Racismo Quotidiano, livro resultante do doutoramento em Filosofia na Universidade Livre de Berlim (onde vive) – obtido após os estudos em Psicologia Clínica –, que chega a Portugal uma década após a edição original (com a marca da editora Orfeu Negro e uma capa-espelho).
Lá dentro, estão cenas quotidianas de discriminação racial (e de género), escritas sob a forma de ensaios e histórias psicanalíticas. Grada Kilomba não se coíbe de partilhar as suas experiências: a do “grande isolamento” de ter sido “a única estudante negra em todo o departamento de Psicologia Clínica e Psicanálise”; a de ser “confundida com a senhora da limpeza” nos hospitais onde trabalhou; a dos pacientes que, por vezes, “se recusavam a ser vistos” por ela; ou ainda essa história de, aos 12 ou 13 anos, numa consulta com um médico, branco, este lhe ter proposto o trabalho de “limpar a casa” da família dele em férias. Hoje, a artista e autora está presente tanto em bienais de arte como em universidades: em junho terá uma exposição na Pinacoteca de São Paulo e, em julho, participará na 17ª FLIP, em Paraty. Um percurso que é, também, um manifesto.
Façamos um exercício futurológico: o racismo vai ser erradicado?
Essa ideia, para mim, não faz sentido, porque é muito grande. Não estou preocupada com o erradicar do racismo, mas com o desmantelar, o desconstruir – que vem antes. E, muitas vezes, falamos de erradicar formas de opressão sem pensar que é um processo de desmantelamento. Feito por livros como Memórias da Plantação, exposições, trabalhos de muitos artistas... Essa questão de “como é que eu desconstruo os meus racismos, como é que eu desconstruo o que é patriarcal, o que é colonial” parece-me muito mais urgente, proeminente, efetiva e realista. É nesse lugar que eu me sento: não com o que vai acontecer depois, mas com o que vai acontecer durante o processo. Este livro fala sobre a importância da consciencialização como um processo, um desfolhar, um caminho que não é moral. E falar em “erradicar” tem algo de moralismo.
Diz que esse percurso de consciencialização coletiva começa com a negação. Como?
Começa com questões que são reprimidas e, depois, passam a ser negadas. Da negação passa-se à culpa, da culpa passa-se à vergonha, da vergonha passa-se ao reconhecimento, e daí chega-se à reparação: esse lugar onde as coisas estragadas, violentas, que fazem mal, são transformadas em algo que faça bem. E aí começa o erradicar do racismo. Primeiro, há todo um processo de consciencializar do público, com livros, com exposições, com currículos que façam essa passagem da negação – “eu não acredito, eu não sou racista, eu nada tenho que ver com isso” – para a culpa – “porque é que eu não sabia, porque é que eu nunca soube?” E depois vem a vergonha, que é um momento de reflexão interna: “Mas quem sou eu? Quem somos nós? Afinal, que História é esta? E como é que me foi contada? E como é que deveria ter-me sido contada?” E passa-se ao reconhecimento: “Ah, isso eu não sabia e agora sei.” Apercebemo-nos de que este é um processo de responsabilização, de ver o que nos está a ser dado. Não é um processo moral.
Num país com forte história católica, há confusão entre moral e responsabilidade?
A responsabilização tem que ver com um ato político, e a moralidade tem que ver com algo que divide, o bem e o mal. Não acho que o racismo seja questão de sermos boas ou más pessoas. Tem que ver com a politização de uma história colonial e a politização de uma história patriarcal, que criam uma normativa e uma normalidade que não são normais.
A língua é uma norma. Na introdução de Memórias da Plantação, assume as dificuldades da tradução de conceitos e termos (black, subject) que deveriam ser neutros…
O livro foi escrito em inglês, uma língua colonial, tal como o português, mas que teve um processo de descolonização. Pertence a toda uma comunidade negra e a vários movimentos: civil, anti-apartheid, pós-colonial, feminista. As terminologias não têm, aí, género, os termos são descolonizados. Quando recebi a primeira versão da tradução portuguesa, pensei: “Meu Deus, isto é muito complicado, vamos ter de rever tudo!” Porque as terminologias em português só existem no género masculino. Há esta questão de não poderes existir no género feminino, porque este termo não existe na tua língua. Não podes dizer “a feminisma negra vai ser apresentada…” Este é um erro ortográfico. E o que me preocupa é a normalidade com que a violência e o trauma colonial e patriarcal são reproduzidos na língua.
Evoca a psicanálise. Portugal é um mau paciente?
Portugal tem uma nova geração que está louca por ter uma outra linguagem, e que não acredita nas linguagens do passado: o discurso da glorificação da história colonial, a demonização do discurso feminino, a patologização da sexualidade… Uma geração que diz: “Esse discurso não me serve, não dá resposta às minhas questões. Eu preciso de um discurso descolonizador, que é feminista sem ser visto como algo mau. Eu tenho uma outra visão.” Nas últimas vezes que exibi o meu trabalho aqui, lembro-me de ver o movimento feminista negro, o movimento intersexual, grupos de estudos da branquitude à procura do discurso novo. Isso é tão fabuloso!
Memórias da Plantação, publicado há dez anos, chega agora a Portugal. E é difícil ignorar o soundbyte inicial: “Deixei Lisboa, a cidade onde eu nasci e cresci, com um imenso alívio”…
Eu senti alívio [em sair de Lisboa] porque precisava de estar num espaço onde pudesse reinventar a língua, ter uma linguagem em que pudesse ser eu. Memórias da Plantação foi o primeiro projeto onde me encontrei, onde me defino. Isso não era possível aqui. Por isso é que o livro chega dez anos depois, e bell hooks [nome, assim mesmo em minúsculas, de uma autora feminista e ativista social norte-americana] só foi publicada em Portugal no ano passado. Bell hooks escreveu o ensaio Não Serei Eu Mulher? há 30 anos! Nós temos um desfasamento de tempo. O trauma é uma intemporalidade, não tem tempo, é metafísico: o passado passa a coincidir com o presente, e, de repente, o presente é vivido como se fosse o passado. Essa é uma característica do racismo.
É uma autora híbrida: opera através da investigação teórica e da prática e da performance artísticas. Como faz essa passagem?
Sabe, o que eu acho bonito e importante… Quando o livro abriu o Festival Internacional de Literatura, em Berlim, eles disseram-me que não sabiam onde colocar o livro: se era académico, lírico, se era psicanálise... Eles estavam completamente confusos, mas isso foi fantástico: essa confusão faz parte da descolonização do conhecimento. Quando atravessamos as disciplinas clássicas e construímos uma nova linguagem, quando os museus já não sabem onde colocar as peças, para mim isso é descolonização. Essa é a beleza dos novos discursos: são híbridos, têm de o ser para desmantelar as narrativas do poder e criar uma linguagem diferente.
No ano passado, Pedro Calado, o alto-comissário para as Migrações, afirmou em entrevista que em Portugal “não somos genericamente racistas, temos alguns preconceitos”. Quer comentar?
Isso é um grande erro. É um mito. Racismo tem que ver com poder: o poder histórico, o poder político, o poder estrutural, o poder institucional. Racismo tem que ver com o poder de poder exercer o preconceito e de o tornar uma lei, uma regra, uma violência, uma separação, um choque. O racismo é a performance do preconceito, é o poder de poder exercitar o preconceito. Isso é a grande diferença. Por isso, bell hooks escreveu: “Racismo é supremacia branca.” É quem tem o poder histórico de exercer o preconceito e o privilégio de não ter de saber.
Alega que o racismo continua a ser determinante na “Fortaleza Europeia”. É um “efeito Trump” ou uma raiz da Europa?
É uma história europeia. Temos uma coreografia em que o ocidental cruza fronteiras e pode ir a todo o lado. Mas os que estão em todo o lado não podem estar aqui, nunca puderam. Há uma assimetria de poder muito forte. Esta “fortaleza europeia” é uma continuação dessa relação de poder, que começou com o projeto europeu de escravatura: vai-se, retira-se e explora-se aquilo de que se precisa. Continuou com o projeto de colonização: vai-se e apropria-se, “é meu”. Depois, chegamos a um momento pós-colonial em que as pessoas colonizadas vêm de volta, as naus regressam em movimento inverso. E, de repente, tal não é possível. Portanto, pode-se tirar mas não se pode dar: essa sempre foi a política colonial e continua a ser. Não podemos esquecer que a Europa é um continente que enriqueceu às custas do trabalho de africanos escravizados. E das coisas mais banais: café, açúcar, chocolate... De que ninguém precisa. Um continente inteiro foi escravizado, violentamente, sem ser pago, para enriquecer a Europa. Portanto, temos uma história complicada que não pode ser, de maneira nenhuma, glorificada. Tem de ser trabalhada e desmontada.
Apresenta, aqui, depoimentos de mulheres, como Alicia e Kathleen, sobre os racismos quotidianos: como o desse amante branco que faz uma piada sobre o Ku Klux Klan. Desmontar os gestos pequenos é mais importante do que combater a visão macro?
Geralmente, olhava-se para o racismo como algo macro, algo social e político. E ignorou-se o que o racismo, a opressão, faz com as pessoas, com a subjetividade. Isso era o que me interessava: escrever e encenar histórias e momentos em que nos apercebemos de que algo está a ser ferido: a humanidade.
Reclama essa luta ao usar os nomes Grada Kilomba…
Exato. São nomes das minhas avós, que, no tempo colonial, foram proibidos e desapareceram dos seus documentos, quando elas foram retiradas à força das suas terras para trabalhar nas plantações.
Fala, aqui, nas políticas de cabelo, tema abordado por muitas mulheres: Djaimilia Pereira de Almeida no livro Esse Cabelo (2015), a britânica Emma Dabiri em Don’t Touch My Hair, a cantora Solange na canção com o mesmo nome… É um elemento tão quotidiano que traduz bem o racismo?
Dentro do racismo, o cabelo era o elemento que tinha de ser tapado, cortado, porque era visto como algo que não se consegue controlar. Por isso, o movimento do cabelo tornou-se tão importante: eu reconheço o meu cabelo como um símbolo de beleza, de empoderamento. Eu tenho uma outra narrativa para mim. O cabelo foi um dos elementos mais violentados durante a escravatura. A violência e o legado colonial eram tais que, ainda hoje, em escolas de diferentes países como Brasil e África do Sul, há crianças proibidas de mostrar o seu cabelo natural. Essa é a vingança do colonialismo: o passado coincidir com o presente. E só podemos trazer as pessoas para o presente através da literatura, das artes, da escrita como ato político.


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