Com este artigo iniciamos uma série de quatro artigos que, juntos, compõem uma versão curta do relato do ano de 1917, seus antecedentes e os acontecimentos cruciais da revolução de Outubro. 1
Para entender a Revolução Russa em seu contexto de época é preciso que se leve em conta as condições históricas vigentes na Rússia envolvida na I Guerra Mundial, que levaram à eclosão de um processo revolucionário naquele país.
O ano de 1917 começara, na Rússia, com o pipocar de manifestações, greves, atos de insubordinação militar que conduziram, muito rapidamente, à implosão da ditadura do tzar Nicolau II – uma velha monarquia – em menos de uma semana, em fevereiro.
Naquele ano de 1917, com a Rússia em plena guerra de rapina, ao lado de potências europeias, no mês de fevereiro [março no calendário ocidental], as mulheres saíram às ruas em passeata de luta e de protesto; foi o estopim para que um incêndio social se multiplicasse no campo e nas cidades. Como parte desse processo de rebelião urbana e também rural contra o poder do imperador (tzar), formaram-se por toda a Rússia, a partir dali, assembleias de trabalhadores, soldados e camponeses que tomaram a forma organizada de sovietes (palavra russa para conselhos), isto é, organismos democráticos de representantes dos trabalhadores e soldados eleitos pela base, nas fábricas, unidades produtivas e batalhões.
A Rússia estava envolvida até o pescoço, na carnificina mundial que já durava mais de três anos.
Ela era, de longe o país mais devastado pela I Guerra: suas contradições sociais, seu impasses históricos eram mais agudos. As baixas de guerra, que se contavam aos milhões, eram as mais elevadas, e as deserções começavam a ocorrer em massa.
Na Rússia havia – ao contrário de outros países em guerra – um partido revolucionário, inserido na classe trabalhadora, contrário à guerra, a favor da imediata entrega de terras aos camponeses e, a partir da chegada de Lenin, em abril, a favor do “todo poder aos sovietes” e com estratégia e projeto para vencer; este foi o elemento que fez toda a diferença nos marcos daquela irrupção revolucionária de massas. Passa por aí a discussão sobre a Revolução de Outubro, e não pela explicação reducionista de certos autores que só querem levar em conta o atraso, a indigência nacional e a fraqueza política do imperador antes, ou do governo liberal de Kerenski depois.
Outros países – em diferentes momentos históricos - atravessaram crises políticas iguais ou piores naqueles tempos, com processos revolucionários, nos quais a burguesia terminou prevalecendo. Nos nossos dias também ocorreram fracassos como na Grécia de 2015, Portugal de 1974 ou o Chile de 1973.
Ali, no entanto, os sovietes, liderados pelo partido bolchevique, fizeram a diferença. E nos legaram a mais consciente experiência revolucionária de todos os tempos.
Os próximos artigos desta série tratarão dessa experiência histórica da Revolução Russa.
Os próximos artigos desta série tratarão dessa experiência histórica da Revolução Russa.
Vejamos um pouco do histórico da Rússia até a tomada do poder
Quem era a Rússia
A Europa era constituída por um punhado de países imperialistas cercados de nações relativamente atrasadas. A Rússia monárquica ficava no meio termo, uma vastidão de terras e uma população de camponeses sem fim, dominada (e focalmente industrializada) por capital estrangeiro, e cujo governo se aliara, na guerra, a um dos dois blocos imperialistas.
Dentre as condições históricas que tornaram as condições propícias à revolução, merecem destaque a decomposição da velha monarquia russa e suas classes dominantes (com todo o sistema estatal em crise caótica), o peso social do proletariado (proporcionalmente muito mais concentrado nas principais cidades que em outros países e enfrentando-se com uma burguesia politicamente débil) e a amplitude numérica esmagadora de um campesinato que, ao mesmo tempo em que uma parte morria na guerra, não viam solução para a crucial questão agrária, para privações e indigência agudas, sob o tacão dos grandes donos de terras. Camponeses eram armados e enviados, incessantemente, para o horror da guerra.
Este país que, como indica Broué, era o paraíso dos capitais europeus, também vivia a crise agrária (com seu caráter incendiário e revolucionário), e a questão nacional (com uma multiplicidade de nações oprimidas pelo tzarismo russo), ambos elementos particularmente explosivos.
Este país que, como indica Broué, era o paraíso dos capitais europeus, também vivia a crise agrária (com seu caráter incendiário e revolucionário), e a questão nacional (com uma multiplicidade de nações oprimidas pelo tzarismo russo), ambos elementos particularmente explosivos.
Ao contar, também, com antecedentes políticos revolucionários recentes (o “ensaio geral” da revolução de 1905 como dizia Lenin) e, finalmente estar sendo tragado e devastado mais que os outros pela Guerra Mundial que arrastou, armou e dizimou milhões de camponeses naquela longa carnificina inter-imperialista, a Rússia tornara-se o elo mais fraco do capitalismo, em seu desenvolvimento desigual e combinado.¹ [A história da Revolução Russa, de Trotski, é a grande referência para explicar esse processo].
Em tais condições, acumuladas as tensões e contradições ao paroxismo, em determinado momento as massas do campo e da cidade invadiram a cena histórica, entraram em massa na luta política, mergulharam em uma dinâmica revolucionária, um processo que, em poucos meses, concentrou décadas de aprendizado.
Outros antecedentes: a industrialização e a vida social na Rússia
Na segunda metade do século XIX, a Rússia começara seu processo de industrialização, no seio da velha monarquia e com investimentos de fora. O sistema político dominante era a autocracia tzarista apoiada na nobreza rural (principal proprietária das terras e que se nutria de relações de trabalho praticamente medievais no campo), no clero mais atrasado (Ortodoxo) e organicamente vinculado à nobreza. Esta também fornecia, além dos altos membros do clero, o corpo de oficias militares do exército tzarista e nutria a uma vasta burocracia parasitária e corrupta.
A burguesia, profundamente dependente do capital imperialista (francês, sobretudo), historicamente tardia e sem raízes populares, fazia a mais débil oposição liberal ao regime. Não existia uma verdadeira burguesia russa. Em compensação, havia um forte proletariado, concentradíssimo em poucas cidades, embora em minoria absoluta em relação à população do campo.
Aqui não é demasiado lembrar que Petrogrado, capital da Rússia, que concentrou o movimento revolucionário tanto em 1905 como em 1917, era uma cidade essencialmente operária e, como foi assinalado antes, de grandes plantas industriais. Operária era metade da população daquela cidade, assim como em outras poucas cidades, também havia importante presença do proletariado industrial.
Mais da metade do proletariado urbano concentrava-se em fábricas com mais de 500 operários: apesar da indústria ser dez vezes menos robusta que a norte-americana de então, o jovem proletariado russo era bem mais concentrado que o dos Estados Unidos, as plantas industriais gigantescas, e os 3 milhões de operários russos, por sua vez, eram estreitamente ligados ao campo.
A Rússia era constituída de umas poucas cidades rodeadas por uma maré multinacional de camponeses: em 1912, dos mais de 160 milhões de russos, 87 % viviam no campo, sendo 80 % deles analfabetos.
Apesar da vastidão do Império Russo, seu espaço cultivável era tão exíguo quanto o da Europa. A concentração da terra, em poucas mãos era, por sua vez, colossal. Às vésperas da Revolução de Outubro, quando as ocupações de terra se multiplicavam, a aristocracia rural detinha mais de 40 % do solo, mais de 100 milhões de camponeses viviam em estado de miséria e sem acesso direto à terra. Em geral não contavam sequer com a força de tração animal. Morriam de fome enquanto o tzar exportava cereais para os europeus.
A vida no campo e nas fábricas era de extrema penúria. Ao mesmo tempo, as menores mobilizações operárias se chocavam com o aparelho de Estado autocrático. Enquanto isso a abertura da Rússia ao Ocidente trazia novas ideias, na verdade as mais avançadas ideias – através da intelectualidade marxista russa – ideias que começam a chegar ao jovem e concentrado proletariado de Petrogrado, Moscou e outras cidades, em plena ditadura, em meio à falta de liberdades políticas.
O antecedente russo dos sovietes
E aqui existe um elemento histórico que deve ser destacado. Que é a tendência que passou a marcar todo o século XX – século do imperialismo e, portanto, de crises, guerras e revoluções – ao surgimento, em cada eclosão revolucionária importante, de órgãos de democracia de base, de combate e de frente única de massas, especialmente ali onde estava presente a classe trabalhadora.
A Rússia, inaugurou esta tendência da forma mais completa e profunda até aquele momento. Não é possível entender a Revolução russa sem considerar o que foram os sovietes. Os sovietes ou conselhos de trabalhadores, órgãos de democracia direta baseada no proletariado, surgiram pela primeira vez na explosão revolucionária da Rússia em 1905. Depois de alguns combates e de seus poucos meses de vida, foram esmagados pela repressão policial do tzar.
Aqueles primeiros sovietes, em 1905, surgiram no seio das paralisações operárias e da convulsão social que se seguiu à derrota da Rússia na guerra contra os japoneses e apareceram na condição de comitês de greve, articulando fábrica com fábrica, fábricas com bairros, e com o movimento de outras cidades.
Os primeiros sovietes, nasceram em 13 de outubro de 1905, na forma de um comitê de 40 representantes eleitos em fábricas e bairros operários. Meses depois, e no calor das greves, já representavam 147 fábricas, 34 oficinas e 16 sindicatos, ao todo 200 mil operários. Naquele momento, Trotski, agitador de massa em Petrogrado e excelente orador, fazia parte de uma pequena organização não-bolchevique e tornou-se uma figura popular, sendo eleito presidente daquele que era o maior e mais decisivo soviete da Rússia².
O soviete chegou a impor medidas sociais, liberdade de imprensa (publicando seus jornais), criou corpos de segurança, milícias operárias, funcionou como árbitro de inúmeros conflitos sociais; por um tempo controlou ferrovias, correios, enfrentou a monarquia. Ao final de 1905, veio a repressão. O movimento revolucionário foi derrotado. Dissolvido o soviete (3 de dezembro) pela polícia da monarquia, a tentativa de insurreição fracassou, resultando em mil mortos. Os partidos operários foram reprimidos, suas lideranças presas, exiladas. Instalou-se um período de reação política. Trotski foi desterrado para a Sibéria.
Passaram-se doze anos.
Começa a Revolução Russa de 1917
Neste período Lenin e os bolcheviques continuaram construindo o partido, discutindo, divergindo, estudando, levando luta de frações e, politicamente, se forjando para o próximo surto revolucionário, já que no entendimento marxista básico uma crise capitalista apenas prepara o terreno para a seguinte: alternam-se fases de equilíbrio e recomposição econômica com os momentos de crises agudas. E surtos revolucionários.
A virada para o ano de 1917 trouxe uma destas crises, só que agora em marcos muito mais profundos, como parte de um processo de graves contradições que o envolvimento da Rússia na I Guerra ampliava e tornava agudas.
Uma nova onda revolucionária, em fevereiro, conduziu, em apenas uma semana, à derrubada do monarca e implantação de um Governo Provisório, lado a lado com a volta dos sovietes.
Uma nova onda revolucionária, em fevereiro, conduziu, em apenas uma semana, à derrubada do monarca e implantação de um Governo Provisório, lado a lado com a volta dos sovietes.
Portanto, o primeiro dado histórico é que não é possível entender a Revolução Russa sem acompanhar os sovietes e, como veremos ao longo de 1917, o partido bolchevique: seu papel simplesmente crucial para a vitória da Revolução Russa em outubro. Se for necessário resumir Outubro em apenas duas ideias elas passam por: partido bolchevique – partido proletário com estratégia para vencer, sem política de conciliação de classe - e democracia operária de base, auto-organização da classe trabalhadora e povo pobre do campo e da cidade.
Os sovietes, seja os de 1905 e mais ainda os de 1917, funcionavam como uma espécie de amplo “parlamento popular” ou assembleia democrática regida pelo voto direto; eram órgãos de luta e de frente única de soldados, operários, camponeses e que uniam em um único espaço, a deliberação e a execução das decisões ali tomadas. Não havia divisão de poderes.
Voltemos a fevereiro de 1917.
Quando vieram as manifestações de fevereiro de 1917, o tzar resistiu (dissolveu o semi-Parlamento ou Duma) e reprimiu com novos assassinatos. Mas a pressão de massa, de soldados e operários, alcançou níveis elevados, fez renascer o soviete de Petrogrado.
Foi justamente sob o decisivo ímpeto daquele movimento de operários e soldados, que o núcleo de deputados liberais se lançou a formar um governo alternativo ao tzar, o Governo Provisório.
Era a revolução democrático-burguesa em marcha. Impotente por um lado e por outro tendo presente a originalidade dos sovietes, estes pesando decisivamente e estabelecendo um duplo poder no país.
A burguesia liberal mostrou-se incapaz de enfrentar os latifundiários de um lado e era refém dos investidores externos – imperialistas – de outro. Formou aquele governo, liberal, que ficou à sua sombra e, portanto, sem qualquer condição de se desprender da política mais funcional ao poder do latifúndio e do imperialismo.
Pode lhe interessar este vídeo sobre a Revolução de Fevereiro na Rússia de 1917:
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