O estranho caso do galego que não podia abrir a boca em Portugal
Chega o Verão e cresce a vontade de contar histórias. Pois a história que hoje trago parece mentira, mas não é. Ou melhor: se é verdade que os heterónimos de Pessoa que por aqui passeiam talvez não tenham existido (a doutrina divide-se), a Quinta dos Salgados é bem real: cheguei a brincar por lá quando era muito novo. O Mário que aparece no conto era meu bisavô (ele nunca o soube) e uma das crianças é o meu avô Manuel. O próprio galego que não podia abrir a boca também é bem real e a história da sua mudez voluntária é, em traços gerais, verdadeira. Aqui fica o relato, tal como o contei um dia no livro A Incrível História Secreta da Língua Portuguesa.
Numa tarde de Junho do final dos anos 30 do século XX, Ricardo Reis e Álvaro de Campos metem-se num carro para ir passear ao Baleal. Porquê ao Baleal? Porque tinham aprendido com Alberto Caeiro a gostar de coisas simples e belas.
A viagem demora, mas eles têm tempo e Ricardo Reis quer mesmo contar ao amigo o que lhe anda a acontecer: tem recebido a visita de dois fantasmas.
– Logo dois?
– Um é o nosso Fernando.
Seguem os dois em silêncio, a recordar o amigo morto, enquanto se afastam de Torres Vedras, na estrada que vai para a Lourinhã.
– E o outro?
– Diz que se chama Saramago, mas raramente fala. Diz que está só a tirar notas.
– Mas quem é esse Saramago?
– Parece que é um escritor do futuro. O Fernando até gosta dele.
Calaram-se. Álvaro sabia que o amigo não andava bem desde que voltara do Brasil. E andava apaixonado por uma tal de Lídia. Enfim: histórias complicadas. Agora ouvia vozes. Já não sabia o que pensar. Talvez as águas do Baleal ajudassem.
Dois poetas perto da praia
Ora, chegados os dois poetas a uma terra chamada Atouguia da Baleia, vão pela estrada de Peniche, a tentar chegar ao Baleal. Em certos pontos, já viam o mar – e as Berlengas.
Pois, não se sabe bem como – ninguém registou – e apesar de ser fácil chegar ao mar, perderam-se. Estavam com o calhambeque parado, a tentar olhar para o mapa que tinham na mão, quando vêem passar um homem de bicicleta, de jornal na mão, a assobiar.
Saem do carro e acenam-lhe. Querem perguntar como se vai ao Baleal.
O homem fica em pânico, faz vários sinais, não consegue falar.
– Ora, será que é mudo? – diz Ricardo, enquanto coça a cabeça.
O homem, muito novo, faz-lhes novos gestos e aponta para uma casa vermelha ao fundo dum caminho de árvores. Eles decidem ir nessa direcção – por lá haverá certamente alguém que lhes diga como se chega ao Baleal.
Um livro e um agricultor
Antes de continuar, olhe para uma cronologia da literatura portuguesa. Não sei se já leu O Ano da Morte de Ricardo Reis, de Saramago. Estamos em plena Guerra de Espanha. Pode agora dizer-me: então, mas Ricardo Reis não morreu em 1936? Ora, isso foram liberdades poéticas de Saramago. Na verdade, o poeta viveu até 1943. Digo-lhe eu.
Pois, na casa para onde o mudo os levou, os dois poetas encontraram muita gente: vivia lá uma das famílias alargadas que agora já poucas vezes encontramos. Um dos casais, uma senhora portuguesa casada com um homem galego, vivia o ano quase todo no Peral, uma terra ali ao pé da Serra de Montejunto, mas vinha para estas bandas marítimas durante o Verão. A irmã da senhora do Peral vivia naquela quinta (a Quinta dos Salgados) com Mário, o seu marido, dono daquelas terras. Por ali brincavam várias crianças. Mário diz-lhes:
– Sejam bem-vindos, sejam bem-vindos… Desculpem aqui o Domingos, meus senhores…
Álvaro fez um gesto como quem diz «ora essa».
– Diga-me só uma coisa, por que raios não fala o homem?
Mário olhou-o com atenção, tentando perceber alguma coisa antes de revelar um segredo.
Preferiu não dizer nada.
– É uma coisa lá dele… Enfim, sabem como são os jovens de hoje em dia.
– Mas consegue falar?
– Nunca lhe ouvi uma palavra de português.
Os poetas entreolharam-se.
Nesse dia, lancharam por ali. As crianças brincavam em algazarra, curiosas com aqueles visitantes. Domingos, o homem da bicicleta, assistia a tudo calado, mas com visível vontade de dizer qualquer coisa.
Ricardo Reis não resistiu. Virou-se para o rapaz e disse:
– Ó homem, desembuche!
Domingos aproximou-se de Mário e sussurrou-lhe qualquer coisa ao ouvido.
Ricardo Reis aproximou a boca do ouvido de Álvaro:
– Então, mas ao ouvido do outro já fala? Isto é que está aqui uma coisa bonita…
Domingos, depois do sussurro, afastou-se e desapareceu.
Pois, mais tarde, enquanto conversavam e o sol começava a descer, Ricardo Reis levantou-se e perguntou se podia dar uma volta pela quinta. Muito gostava ele de ver o espectáculo do mundo, os bois a recolher, o suave fim dum dia no campo.
Lá foi e encontrou, metros depois, sentado debaixo duma árvore, o tal Domingos, que lia, sem reparar no poeta.
Quando se chegou perto dele, percebeu que livro era: um pequeno livro de poemas de Rosalía de Castro.
– Ah, você não é mudo! É galego!
Domingos sorriu e emprestou-lhe o livro, que se chamava Follas Novas. Ricardo Reis abriu o pequeno volume e leu:
TAN SOYO
Os dous d’a terra lonxe
Andamos e sufrimos ¡ay de min!
Mais ti tan soyo te recordas d’ela,
Y eu, d’ela e mais de ti.
Ambos errantes po-lo mundo andamos
Y as nosas forzas acabando van,
Mas ¡ay! tí n’ela atoparás descanso
Y eu tan soyo n’a morte o ey d’atopar.
Andamos e sufrimos ¡ay de min!
Mais ti tan soyo te recordas d’ela,
Y eu, d’ela e mais de ti.
Ambos errantes po-lo mundo andamos
Y as nosas forzas acabando van,
Mas ¡ay! tí n’ela atoparás descanso
Y eu tan soyo n’a morte o ey d’atopar.
É perigoso falar galego
Domingos falou muito durante todo o resto do dia e os dois poetas riram-se com a sua maneira de falar galega – não estavam habituados e era, na cabeça deles, duma incongruência cómica ouvir uma língua que lhes soava a português do Norte com laivos de espanhol, uma língua campesina, na boca de quem perceberam ser um poeta – um ser sensível, inteligente, compenetrado, sábio das coisas do mundo e da guerra.
Ficaram a saber que era um refugiado da guerra, familiar do marido da senhora do Peral. Ficaram ainda a saber que ele já estava naquela casa havia umas semanas, mas só saíra uns três dias antes. Mário pedira ao homem da papelaria de Peniche de Cima para dar o jornal ao rapaz, que assim podia sair um pouco. Mas avisou Domingos para nunca abrir a boca junto a estranhos, antes que percebessem que era espanhol e houvesse problemas com a polícia: era um refugiado da guerra e, por isso, ilegal.
Repare: não podia falar, porque se notava que era espanhol. E, no entanto, ele falava galego. Neste momento da história da nossa língua, a impressão, aos ouvidos distraídos dos portugueses, era de que Domingos falava «espanhol».
Ainda há uns episódios [do livro A Incrível História Secreta da Língua Portuguesa] descrevi como a fronteira do rio Minho era, há uns séculos, pouco mais que nada no que toca à língua. Agora, já não é assim. O galego e o português viveram durante séculos com um muro no meio: a existência de Estados diferentes. A verdade é que, talvez até bem entrado o século XIX, esse muro pouco se notaria na vida do dia-a-dia. Mas o século XX contou-nos outra história… Diga-se, claro, que se o nosso galego estivesse escondido numa aldeia do interior português encostada à Galiza, talvez a situação fosse outra. Mas ali, perto de Peniche, um galego já não podia passar por português nos anos 30 do século passado. E, no entanto, galegos e portugueses falam qualquer coisa que vem da língua que se ouvia nas ruas na época de D. Afonso Henriques.
A mesma língua que Afonso Henriques falava ficou nas bocas do povo da Galiza. Por lá, depois dos jograis, deixou de ser usada na literatura ou nas chancelarias – e quando, no século XIX, alguns poetas se lembraram de usar esse velho falar, a sul do Minho já tínhamos uma língua de cultura, oficial, com uma longa tradição literária. Uma língua que se esquecera desse parente perdido nas bocas dos galegos. O som já era diferente, um galego já não podia passar por português cá tão a sul – mas o material antigo de que se fizera a nossa língua ainda ali estava: a começar no artigo definido, esses «o»/«os»/«a»/«as» que são tão portugueses – e tão galegos.
Histórias do século XX
Depois de acabada a guerra, Domingos ficou por Portugal – fundou uma loja de calçado em Lisboa e em breve já falava de maneira muito mais lisboeta. Diga-se que nunca teve de fazer o esforço de aprender uma língua nova – na cabeça, aprender português foi pouco mais do que adaptar a língua com que tinha nascido à sua nova terra. Domingos fez o mesmo que tantos fizeram nos primeiros séculos da nacionalidade: pegou na língua lá do Norte e trouxe-a cá para baixo, mudando-a pelo caminho.
À sua volta, ouvia muitos sotaques diferentes: ainda hoje podemos ouvir vestígios do português de diferentes bairros de Lisboa – mas só em certos falantes mais velhos. Se percorresse de novo o país até à fronteira que passou a salto, ouviria ainda as formas de falar próprias de cada terra.
Hoje, já será mais difícil. Durante o século XX, o português-padrão expandiu-se por todo o país, com a escola, a televisão, a rádio, a imprensa. As formas do Sul começaram a suplantar as outras formas, que subsistem, mas com menos força. O português começou a tornar-se mais homogéneo (e menos nortenho ou galego) – tudo isto já é a história que estamos a viver hoje mesmo, em que ouvimos com os nossos próprios ouvidos como os filhos de muitas famílias de fora de Lisboa falam um português um pouco mais padronizado do que o português dos avós. Claro que tudo depende da família, da pessoa, às vezes até da situação em que estamos…
Quanto aos galegos, só terão começado a sentir em força a invasão da sua língua pelo castelhano quando a escolaridade obrigatória apareceu no horizonte – e a televisão, os jornais, etc. Ou seja, embora o castelhano já seja a língua oficial há muito, para a maioria dos galegos a vida fez-se sempre em galego, sem grandes influências castelhanas, até bem entrado o século XX.
Apesar de tardia, a influência do espanhol sobre o galego é hoje avassaladora, claro está. Aliás, chamar-lhe influência será um eufemismo cruel. O espanhol não influenciou o galego: o espanhol está a substituir o galego. O Estado é o espanhol e defende, por actos se não por palavras, a primazia do castelhano. A escolaridade da população foi exclusivamente em castelhano até muito tarde. Durante os séculos XIX e XX, o galego levou uma coça de que ainda não se levantou, apesar de, desde os anos 70, o governo autónomo ter, oficialmente, uma política de defesa da língua.
Curiosamente, se o galego falado começou a levar uma coça nestes dois últimos séculos, foi também nestes séculos que a linguagem literária ressurgiu – embora muitos escritores galegos nem sequer soubessem que tinha havido gente como Martim Codax a escrever nessa língua muitos séculos antes. O galego era a fala das gentes do povo – não era língua de literatura. Agora, é língua de literatura, mas cada vez menos a fala das gentes na rua, perante o avanço do castelhano.
Alguns galegos vivem a sua língua como uma variedade da mesma língua que falam portugueses e brasileiros. Outros vivem o galego como uma entidade já definitivamente separada da língua que se fala a sul do Minho. Mas que o galego e o português ainda estão mais próximos do que imaginamos, isso é indesmentível: então quando começamos a olhar para o vocabulário popular, aquele que muitos desprezam injustamente, começamos a ver como falamos uma língua que não deixa de ser muito galega. É este um dos episódios mais secretos da história da nossa língua…
*
Antes de chegarmos ao último episódio desta nossa história, gostava que reparasse nisto: a língua está na cabeça de cada um, mas não existiria se estivesse apenas na cabeça de cada um. É qualquer coisa de estranho: profundamente individual e profundamente colectiva, que vai mudando segundo os ventos da nossa identidade social, regional, nacional. A língua é nossa – de cada um de nós, de cada um dos grupos em que nos inserimos e, por fim, de todos nós. Não é uma herança como as outras – não é dinheiro, não são genes, não são terras. É qualquer coisa de diferente, que pertence a quem a fala e passa de pessoa em pessoa através dos abraços, dos beijos, dos sussurros, das nossas conversas com as pessoas de quem gostamos. Faz parte de nós.
Mas se a língua é individual e também pertence à comunidade particular que a fala, a verdade é que todos os seres humanos falam uma língua – todas as línguas humanas são também um pouco nossas, nem que seja nessa perturbante capacidade que todos temos de aprender qualquer uma delas, haja tempo e vontade. A linguagem é universal – e ao mesmo tempo um dos maiores símbolos das divisões entre os seres humanos.
Haverá tema mais interessante do que este?
Este é o capítulo 9 do livro A Incrível História Secreta da Língua Portuguesa, publicado pela Guerra e Paz em 2017.
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