Os católicos na luta contra a ditadura (3) - Documentos de um desencontro já estão na net
25 de Abril, 40 anos
José Felicidade Alves fotografado em Lisboa,
junto do Mosteiro dos Jerónimos, em Janeiro de 1995;
foto Daniel Rocha/Público
Caso do padre Felicidade Alves abalou a Igreja e o Estado Novo; espólio está finalmente disponível na internet
Com isto começou a história – diz o apontamento escrito à mão. A nota, registada pelo padre Felicidade Alves na carta que recebera do cardeal Cerejeira, é uma outra forma de dizer “era uma vez”. Desta vez, sem final feliz: o padre que, na década de 1960, agitou a paróquia de Belém com as suas homilias contra a guerra colonial, acabaria demitido pelo cardeal Manuel Gonçalves Cerejeira.
As cartas trocadas entre o pároco de Belém e o seu bispo fazem parte do extenso espólio cuja disponibilização na internet, pela Fundação Mário Soares, foi apresentada publicamente no passado dia 11 de Março (e que pode ser consultado aqui). Através das cartas e documentos, pode ver-se como começou a história que abalou a Igreja Católica e o regime na segunda metade dos anos 60.
Em 1975, Felicidade Alves acabaria por aderir ao Partido Comunista Português. Em Junho de 1998, o patriarca D. José Policarpo conseguiu do Vaticano a dispensa canónica do exercício do ministério de padre e ele próprio presidiu ao casamento religioso de José Felicidade Alves. Trinta anos perdidos para a Igreja, desabafaria na ocasião o antigo prior. A 14 de Dezembro de 1998, o antigo pároco de Belém morreu, com 73 anos.
Datada de 29 de Janeiro de 1965, a primeira missiva do cardeal Cerejeira começa por reparar que “certos actos” do padre dos Jerónimos têm causado “reparo aos fiéis e desedificação aos colegas”. Felicidade Alves sublinhara a expressão “certos actos”.
O cardeal fala de desobediência na liturgia. Na segunda resposta do padre, percebe-se que Cerejeira fala do modo de os fiéis receberem a comunhão – de pé ou de joelhos. O patriarca avisa que não tolerará “qualquer alteração”. A desobediência de Felicidade Alves é “motivo de escândalo” e “ruína da disciplina eclesiástica”.
“Comunicarei que me foi urgido que a comunhão se faça de joelhos”, responde ele, a 12 de Fevereiro. “Tenho pena pelo desprestígio pastoral que uma tal solução lançará, no espírito dos fiéis, sobre V. Eminência. Mas salva-se a disciplina!”
“Os bispos são pequenos gafanhotos”
Na primeira carta, Cerejeira acusa ainda que o padre manifesta “desatenção para com os bispos”. O pároco contesta, sublinhando: “Nunca estarei na minha Igreja, quando houver cerimónias religiosas em contexto político.” E acrescenta: “Não poderei receber as autoridades nem os senhores bispos. (...) Não me resigno a prejudicar os deveres vitais de pastor em proveito dos deveres cerimoniais de protocolo.” Depois de contestar os pontos referidos pelo cardeal, o padre recorda a “amizade pessoal” que o une a Cerejeira, fala da “incompetência” dos colaboradores do patriarca e escreve: “Os bispos portugueses são pequenos gafanhotos. Ao pé de V. Eminência – não veja nisto adulação – são ridículos, pela incompetência, tacanhez de espírito, mentalidade reaccionária.”
A admiração de Felicidade Alves por Cerejeira, manifesta nas primeiras cartas, evoluiria até à ruptura total e à excomunhão do padre, quando este decidiu casar civilmente, sem a dispensa do ministério.
Na altura do funeral do antigo prior de Belém, o padre João Resina Rodrigues contava ao Público ter escrito ao então patriarca, alertando-o para as falsas acusações de que Felicidade Alves era alvo. “O padre Felicidade Alves era um homem totalmente dedicado a Cristo e à Igreja. Para ele, a Igreja era uma referência fundamental”, mas Belém era um “feudo da extrema-direita”. O patriarca ouviu as queixas e “disparatou”.
São os documentos desse desencontro que agora podem ser consultados na internet. Juntamente com textos produzidos pela meticulosidade do padre Felicidade: estudos sobre Lisboa e os seus monumentos (nos Livros Horizonte saíram já as suas monografias sobre São Vicente de Fora e os Jerónimos), textos sobre filosofia ou teologia e um roteiro de toda a produção literária portuguesa do século XVI.
No site da Universidade Católica, está entretanto disponível o catálogo dos cerca de 1800 títulos da biblioteca pessoal, doada à Biblioteca João Paulo II pela viúva de Felicidade Alves. Nela se incluem as obras completas de Lenine e de Lutero, bem como uma rara colecção de história dos concílios da Igreja e muitos títulos de Filosofia e Teologia.
(texto publicado no Público/P2, de 16 de Dezembro de 2008, antecipando a colocação do espólio de José Felicidade Alves na internet; foram actualizadas apenas as referências temporais alusivas à disponibilização do espólio)
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