François Hollande tramado pelo regresso da "esquerda caviar"
Daniel Ribeiro, correspondente em Paris
O caso até dá para rir, mas é aflitivo para François Hollande, recordista da impopularidade presidencial em França. Hoje, o chefe de Estado tinha programada uma visita tranquila a Clermont-Ferrand. Mas, na realidade andou nessa cidade quase literalmente a encher pneus. Numa fábrica da poderosa Michelin assistiu a demonstrações de inovadores pneumáticos que se consertam a si próprios em caso de furos, mas ninguém ligou ao que ele pretendia promover.
A visita foi um desastre para ele. Os jornalistas que o seguiam queriam era que ele falasse do "escândalo" Aquilino Morelle, seu conselheiro político, com "hábitos de marquês", que foi obrigado a demitir-se 24 horas depois do influente diário digital, "Mediapart", ter revelado que ele terá trabalhado "às escondidas" para laboratórios farmacêuticos, quando era inspetor geral dos assuntos sociais.
A acusação, desmentida pelo visado, teve o efeito de uma bomba e algumas vozes, sobretudo vindas de dirigentes socialistas, que estavam visivelmente à beira de uma crise de nervos, exigiram explicações ao assessor.
Morelle não teve alternativa: demitiu-se ao princípio da tarde desta sexta-feira para, disse, "melhor se defender das acusações", que contesta.
Vinhos e sapatos de luxo
Aquilino Morelle não era um assessor qualquer no Eliseu. Era o mais próximo conselheiro especial do Presidente. Com a pasta da Comunicação era ele, descendente de imigrantes espanhóis, amigo de François Hollande e também do primeiro-ministro, Manuel Valls, que escrevia os principais discursos de Hollande.
As revelações de "Mediapart" tiveram grande repercussão porque o siteespecializado em jornalismo de investigação revelou estranhos hábitos burgueses, muito chocantes para o eleitorado de esquerda, do assessor presidencial.
Morelle não hesitaria por exemplo em "privatizar" salões do "Hotel Marigny" - palácio localizado nas imediações do Eliseu onde geralmente a Presidência instala os mais ilustres chefes de Estado estrangeiros durante as suas visitas a França - para mandar engraxar os sapatos!
Segundo "Mediapart", o conselheiro de 51 anos terá mais de três dezenas de pares de sapatos de grande luxo e abusaria do consumo de vinhos de nomeada da cave do Palácio presidencial para acompanhar simples refeições de trabalho.
As acusações são graves e atingem profundamente François Hollande, o chefe de Estado que chegou ao Eliseu dizendo que queria ser um "Presidente normal e um homem normal". Hollande prometeu uma "Presidência exemplar", para se distinguir do seu antecessor, Nicolas Sarkozy, que era acusado de ser "bling-bling" por gostar em demasia da vida de luxos, de restaurantes caros, de passear em iates e de exibir relógios de ouro ao pulso.
Clima sombrio para o PS
Foi sobretudo a acusação de "conflito de interesses" que levou o conselheiro à demissão. Doutorado em medicina, Aquilino Morelle garante que nunca trabalhou "às escondidas" para laboratórios farmacêuticos. Mas, logo pela manhã, a direcção do PS exigiu-lhe explicações. "Se for verdade o que se diz, não vejo como ele pode continuar no Eliseu, se não é verdade, ele tem de se explicar", disse Jean-Cristophe Cambadélis, que é chefe do PS desde há uma semana.
Sobre a acusação de que Morelle faria engraxar os sapatos fabricados de encomenda por um "especialista" no "hotel Marigny", Cambadélis reagiu com os cabelos em pé. "Acho que isso, francamente, é algo inaceitável!", exclamou, furioso.
Depois da derrocada nas recentes eleições municipais, do "escândalo" à volta da ligação secreta do Presidente com uma actriz francesa e em plena campanha para as europeias, François Hollande não precisava mesmo nada da "ajuda" de mais este caso.
As revelações sobre os luxos do conselheiro, que também utilizaria motoristas e carros do Eliseu para resolver simples assuntos privados, lembram os desvios da "esquerda caviar", há cerca de 30 anos, durante a Presidência do falecido François Mitterrand, então cognominado "a esfínge".
Este caso ressuscita pesadelos que, no passado, destroçaram a esquerda durante vários anos e não vai, de certeza, beneficiar os socialistas nas próximas europeias. Algumas sondagens para esse escrutínio são muito negras para o PS - colocam-no em quarto lugar, atrás da direita, da ultradireita e dos ecologistas.
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