Os oficiais que não se conheciam
Escutas telefónicas num tempo em que não havia fax, nem sequer fotocopiadora
O ponteiro do relógio ainda não chegou às nove da noite do dia 24 de Abril quando um automóvel pára à porta de armas do Regimento de Engenharia 1 e o (então) major do Estado-Maior do Exército Sanches Osório toca à campainha. Entra fardado no quartel da Pontinha, dirige-se ao gabinete do oficial de dia e explica ao alferes Dionísio que está em curso um golpe de Estado. Não lhe deixa grandes opções: ou adere ou é preso imediatamente.
Na hora seguinte, vão chegando ali os outros elementos que irão comandar as operações, mas ninguém sabe que foi este companheiro de estágio de Vítor Alves no Estado-Maior, em Santa Apolónia, o escolhido para ir levar o comunicado do MFA, escrito por Mariz Fernandes. Sem perder tempo, Sanches Osório, o oficial de serviço e o sargento de dia começam a tirar cópias do stencil, que as fotocópias, como lembra Garcia dos Santos, «aparecem muito posteriormente».
Otelo, que passara pelo Bairro Alto para informar um capitão pára-quedista que devia avisar Spínola das senhas na rádio (E depois do Adeus e Grândola, Vila Morena), chegou à Pontinha antes das dez. Quando sobe para o primeiro andar, onde se vai fardar, cruza-se na escada com Sanches Osório, que lhe diz: «Olha! Trago aqui os comunicados que o Vítor Alves me disse para te trazer.» Toma assim conhecimento de que é aquele o oficial que Vítor Alves lhe enviaria.
O autor do plano sabe que vão estar naquela unidade os seus camaradas da Academia Militar, Lopes Pires e o seu parente Garcia dos Santos (os únicos a quem deu conhecimento da ordem de operações), além de Hugo dos Santos, que só chegará à uma da manhã, sem farda, pois é segundo- comandante de um batalhão mobilizado para a Guiné, em instrução em Tomar. Entretanto, por volta das dez e um quarto, aparece Lopes Pires, que tinha proposto aquele regimento, logo secundado pelo capitão Luís Macedo, que garantira o apoio da unidade ao MFA e tinha montado o posto de comando no prefabricado que era a biblioteca dos praças - tapando as janelas com cobertores militares e instalando ali mesas para telefones e aparelhos de rádio -, além das tendas exteriores para os operadores de rádio, sem esquecer sequer a camarata para os presos que viessem a ser feitos no decorrer da operação.
Garcia dos Santos, o autor do anexo de transmissões, que será um factor fundamental para o êxito da operação, passara a tarde a instalar a bateria de telefones e a montar as antenas de rádio, foi jantar e voltou por volta das dez da noite.
Falta o sexto elemento, em representação da Marinha. O chefe da comissão militar do MFA da Armada, Vítor Crespo, de farda branca, aparece pelas dez e meia, e apenas reconhece Otelo. Habituado a frequentar centros de operações da NATO, com imensas cartas militares e inúmeros meios, onde nunca havia menos de 50 pessoas, depara-se com outros quatro oficiais (Hugo dos Santos ainda não chegara), um dispositivo mínimo e... um mapa do Automóvel Clube de Portugal afixado numa prancheta.
Comunicações. Garcia dos Santos montou o sistema de transmissões e escutas, numa época em que não havia fax nem telemóvel. «Na parte rádio, tínhamos emissores-receptores iguais àqueles que eram utilizados nas unidades cá e em África, que era o que nós tínhamos de mais moderno nas transmissões militares de campanha», os RACAL DR 28. Relativamente pequenos, «eram utilizados nas ligações entre as unidades, quer destacadas, quer em movimento, quer estacionadas.»
«Por via telefónica, era a rede normal militar. Portanto, uma central automática à civil, no Batalhão de Telegrafistas [onde se controlavam as linhas do Governo e as dos militares], e com telefones normais automáticos ou manuais.» Mas era «necessário, também, ter um apoio muito grande de todo o pessoal que estava de serviço no Batalhão de Telegrafistas, particularmente de serviço à Central Telefónica Automática, porque aí nós tínhamos possibilidade de entrar e fazer - o que hoje tanto se fala - as escutas telefónicas.
E que se fizeram.» Embora tivessem também linhas que permitiam chamadas civis, nunca entraram nessa rede? «Não.»
Vítor Crespo tinha uma linha directa para o Centro de Comunicações da Armada, cujo chefe era Almada Contreiras, também do MFA. Aquele centro de comunicações «ligava (em rádio, em telex, em fonia e em telefone, nos sítios fixos) para todas as unidades de serviço da Armada, incluindo navios a navegar e todas as unidades no Ultramar».
A sorte favorece os audazes. A partir do momento em que se decidiu onde seria o PC, como Garcia dos Santos sabia que estava a ser aumentada a capacidade do cabo telefónico que ia para o Colégio Militar, «claro que me ocorreu logo a ideia» de prolongar esse cabo. «Em dois ou três dias» foi «pendurado por todos os lados possíveis e imaginários» até chegar à Pontinha.
Na hora seguinte, vão chegando ali os outros elementos que irão comandar as operações, mas ninguém sabe que foi este companheiro de estágio de Vítor Alves no Estado-Maior, em Santa Apolónia, o escolhido para ir levar o comunicado do MFA, escrito por Mariz Fernandes. Sem perder tempo, Sanches Osório, o oficial de serviço e o sargento de dia começam a tirar cópias do stencil, que as fotocópias, como lembra Garcia dos Santos, «aparecem muito posteriormente».
Otelo, que passara pelo Bairro Alto para informar um capitão pára-quedista que devia avisar Spínola das senhas na rádio (E depois do Adeus e Grândola, Vila Morena), chegou à Pontinha antes das dez. Quando sobe para o primeiro andar, onde se vai fardar, cruza-se na escada com Sanches Osório, que lhe diz: «Olha! Trago aqui os comunicados que o Vítor Alves me disse para te trazer.» Toma assim conhecimento de que é aquele o oficial que Vítor Alves lhe enviaria.
O autor do plano sabe que vão estar naquela unidade os seus camaradas da Academia Militar, Lopes Pires e o seu parente Garcia dos Santos (os únicos a quem deu conhecimento da ordem de operações), além de Hugo dos Santos, que só chegará à uma da manhã, sem farda, pois é segundo- comandante de um batalhão mobilizado para a Guiné, em instrução em Tomar. Entretanto, por volta das dez e um quarto, aparece Lopes Pires, que tinha proposto aquele regimento, logo secundado pelo capitão Luís Macedo, que garantira o apoio da unidade ao MFA e tinha montado o posto de comando no prefabricado que era a biblioteca dos praças - tapando as janelas com cobertores militares e instalando ali mesas para telefones e aparelhos de rádio -, além das tendas exteriores para os operadores de rádio, sem esquecer sequer a camarata para os presos que viessem a ser feitos no decorrer da operação.
Garcia dos Santos, o autor do anexo de transmissões, que será um factor fundamental para o êxito da operação, passara a tarde a instalar a bateria de telefones e a montar as antenas de rádio, foi jantar e voltou por volta das dez da noite.
Falta o sexto elemento, em representação da Marinha. O chefe da comissão militar do MFA da Armada, Vítor Crespo, de farda branca, aparece pelas dez e meia, e apenas reconhece Otelo. Habituado a frequentar centros de operações da NATO, com imensas cartas militares e inúmeros meios, onde nunca havia menos de 50 pessoas, depara-se com outros quatro oficiais (Hugo dos Santos ainda não chegara), um dispositivo mínimo e... um mapa do Automóvel Clube de Portugal afixado numa prancheta.
Comunicações. Garcia dos Santos montou o sistema de transmissões e escutas, numa época em que não havia fax nem telemóvel. «Na parte rádio, tínhamos emissores-receptores iguais àqueles que eram utilizados nas unidades cá e em África, que era o que nós tínhamos de mais moderno nas transmissões militares de campanha», os RACAL DR 28. Relativamente pequenos, «eram utilizados nas ligações entre as unidades, quer destacadas, quer em movimento, quer estacionadas.»
«Por via telefónica, era a rede normal militar. Portanto, uma central automática à civil, no Batalhão de Telegrafistas [onde se controlavam as linhas do Governo e as dos militares], e com telefones normais automáticos ou manuais.» Mas era «necessário, também, ter um apoio muito grande de todo o pessoal que estava de serviço no Batalhão de Telegrafistas, particularmente de serviço à Central Telefónica Automática, porque aí nós tínhamos possibilidade de entrar e fazer - o que hoje tanto se fala - as escutas telefónicas.
E que se fizeram.» Embora tivessem também linhas que permitiam chamadas civis, nunca entraram nessa rede? «Não.»
Vítor Crespo tinha uma linha directa para o Centro de Comunicações da Armada, cujo chefe era Almada Contreiras, também do MFA. Aquele centro de comunicações «ligava (em rádio, em telex, em fonia e em telefone, nos sítios fixos) para todas as unidades de serviço da Armada, incluindo navios a navegar e todas as unidades no Ultramar».
A sorte favorece os audazes. A partir do momento em que se decidiu onde seria o PC, como Garcia dos Santos sabia que estava a ser aumentada a capacidade do cabo telefónico que ia para o Colégio Militar, «claro que me ocorreu logo a ideia» de prolongar esse cabo. «Em dois ou três dias» foi «pendurado por todos os lados possíveis e imaginários» até chegar à Pontinha.
Perguntas&Respostas
Ninguém imaginava o Posto de Comando numa unidade de Engenharia
Porquê a Pontinha? Lopes Pires sugeriu o regimento, de que tinha sido segundo-comandante até Fevereiro, por vários motivos. «Estava fora de Lisboa e isso, do ponto de vista operacional, pareceu-me extremamente conveniente, porque era uma zona onde havia liberdade de movimentos», sem congestionamentos, «nem possíveis cercos à unidade». Mas, sobretudo, como, entre os militares, os de engenharia são considerados uns «paisanões», «não passaria pela cabeça de ninguém que fosse, precisamente, numa unidade de Engenharia que estivesse instalado o posto de comando».
Operações de noite? Otelo sabia que a Força Aérea «era gente com quem não podíamos contar ou, se contássemos, era como adversários ou inimigos». E dá a explicação para a pergunta que a maioria das pessoas lhe foi fazendo, ao longo dos anos: mas porquê tomar os objectivos às três da manhã? «Exactamente por isso. Porque às três da manhã não é possível fazer bombardeamentos, na cidade de Lisboa, de qualquer avião. Não há aviões. Aquilo que foi o ataque ao Ralis, no 11 de Março de 75, isso aí já é possível, porque é dia. Agora, à noite?!...»
Partidos sabiam? Vítor Crespo já tornou público que entrara «em contacto com partidos políticos, nomeadamente o Partido Socialista e o Partido Comunista, no sentido de lhes dizer que se preparava um golpe de Estado e qual era o sentido político», pelo que «creio que o Sousa Tavares sabia, perfeitamente, o que é que estava a fazer no Carmo», quando falou à multidão de megafone. Otelo acrescenta: «O Vítor contacta, de facto, com elementos do PS e do PC. Agora, nem seria necessário, porque eles já sabiam.
O António Reis, fundador do PS, foi alferes da coluna de Administração Militar que tomou a televisão, no Lumiar. O Luís Pessoa, que era militante avançado do Partido Comunista, comandou as companhias que vieram de Santa Maria e ocupou a Casa da Moeda ou coisa do género.»
Um regime cercado
Porquê a Pontinha? Lopes Pires sugeriu o regimento, de que tinha sido segundo-comandante até Fevereiro, por vários motivos. «Estava fora de Lisboa e isso, do ponto de vista operacional, pareceu-me extremamente conveniente, porque era uma zona onde havia liberdade de movimentos», sem congestionamentos, «nem possíveis cercos à unidade». Mas, sobretudo, como, entre os militares, os de engenharia são considerados uns «paisanões», «não passaria pela cabeça de ninguém que fosse, precisamente, numa unidade de Engenharia que estivesse instalado o posto de comando».
Operações de noite? Otelo sabia que a Força Aérea «era gente com quem não podíamos contar ou, se contássemos, era como adversários ou inimigos». E dá a explicação para a pergunta que a maioria das pessoas lhe foi fazendo, ao longo dos anos: mas porquê tomar os objectivos às três da manhã? «Exactamente por isso. Porque às três da manhã não é possível fazer bombardeamentos, na cidade de Lisboa, de qualquer avião. Não há aviões. Aquilo que foi o ataque ao Ralis, no 11 de Março de 75, isso aí já é possível, porque é dia. Agora, à noite?!...»
Partidos sabiam? Vítor Crespo já tornou público que entrara «em contacto com partidos políticos, nomeadamente o Partido Socialista e o Partido Comunista, no sentido de lhes dizer que se preparava um golpe de Estado e qual era o sentido político», pelo que «creio que o Sousa Tavares sabia, perfeitamente, o que é que estava a fazer no Carmo», quando falou à multidão de megafone. Otelo acrescenta: «O Vítor contacta, de facto, com elementos do PS e do PC. Agora, nem seria necessário, porque eles já sabiam.
O António Reis, fundador do PS, foi alferes da coluna de Administração Militar que tomou a televisão, no Lumiar. O Luís Pessoa, que era militante avançado do Partido Comunista, comandou as companhias que vieram de Santa Maria e ocupou a Casa da Moeda ou coisa do género.»
Um regime cercado
Um golpe resolvido nas ruas e no Largo do Carmo
Após um primeiro compasso de tensão junto ao Terreiro do Paço, logo pela manhã, entre forças fiéis ao regime e do MFA, a acção do golpe passa para o Quartel do Carmo, onde estava refugiado Marcelo Caetano. A rendição só ocorreu à tarde, após horas de cerco e de nervosismo. Milhares de pessoas não arredaram pé do Carmo. Até ao fim do regime.
por FERNANDO MADAÍL24 abril 2004
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