Para o que der e vier
A memória luminosa desses dias eles não nos conseguem tirá-la. Há qualquer coisa de sagrado nesse regresso: perdida a juventude, perdida a religião, emergia uma espécie de salvação individual em cada um. A liberdade contém algo de poderosamente indefinido, sobretudo para quem, como nós, que dela fôramos brutalmente privados. "Não quero morrer sem conhecer a cor da liberdade", cantou, melhor do que qualquer outro, o poeta Jorge de Sena. Ele conheceu essa cor, e disse-o, numa franja mágica de vida que ocultava o trágico da experiência. Mas os que alguma vez tiveram a felicidade de nela mergulhar percebem que têm de pagar um preço, por vezes triste, mareado de pequenos tormentos. O que aconteceu, a seguir aos dias resplandecentes, foi-nos dito ser a paga da nossa soberba e da nossa louca alegria. Coisa de remorsos mal emendados ou de punição por um júbilo quase perverso que nos envolveu.
Bebemos em excesso, vivemos apressadamente, deixámos a cólera de lado a fim de nos atirarmos para o vórtice dessa blasfémia de ser livres. A bebedeira dos sentimentos nascia da proibição dos sentidos a que tínhamos sido obrigados, e descobrimos, espantadíssimos, que a noite era um outro mundo. A noite, ah!, a noite, um outro mundo repleto de surpresas, couto de todos os sonhos. Pertenço a uma geração que partilhou a preocupação de não suprimir a ética das relações. Pertenço a uma grande geração que provou o tempo, e o bebeu quase até à última gota. Estes que tais não entendem o registo desses sentimentos, nem a grandeza secreta das nossas emoções e a dimensão da nossa história. Fomos educados para o medo e o ódio. E só havia uma resposta para este problema: lutar pela liberdade. Com que armas se o salazarismo tinha suprimido a mais elementar de todas elas: a liberdade de expressão.
Chegámos a este estado mas sabemos que não há verdades definitivas enquanto se esperam soluções provisórias. "Eles não sabem nem sonham / que o sonho comanda a vida" disse António Gedeão. E também não sabem que são aparentes vencedores. Ouvir para lá do que dizem as palavras. Perceber o que se oculta nas conversas, eis.
Aprendemos, com Abril, o que apenas pressentíamos. Nas tertúlias, nos cafés, os encontros constituíam um ponto para tomadas de consciência e de reflexão. A vida do espírito que promovia o espírito da vida através do conhecimento, da paixão da liberdade e da vontade de combater quem e o que se lhe opusesse. Ouço-os e penso: quem acredita nestes insignificantes, quem vai atrás desta gente que possui da verdade um conceito obscuro; quem?
Temos passado por uma violência sem nome, por uma tenaz que nos destrói e aos próprios laços sociais. Porém, como disse, um dia, o Manuel da Fonseca: cá estamos para o que der e vier.
Baptista Bastos
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