Candelária - o cemitério dos heróis esquecidos
Candelária, o cemitério dos heróis esquecidos da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, em Porto Velho (RO).
Cruz no Cemitério da Candelária, Porto Velho (RO), 2007. Foto: Nelson Townes - Revista Momento.
Por Nelson Townes. Matéria publicada na Revista Momento e disponibilizada no site: http://www.gentedeopiniao.com.br/ em 12/10/2007 - 07:53.
Eles ainda estão lá, esquecidos e perdidos há quase um século, no meio do bosque místico, sagrado e histórico em que se transformou o Cemitério da Candelária, a dois quilômetros do centro de Porto Velho. São os 1.593 trabalhadores que vieram de 22 países de todos os continentes para lutar contra a selva amazônica e morrerem durante a construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, e que ainda estão lá sepultados.
Talvez não haja cemitério igual no planeta. É uma espécie de ONU (Organização das Nacões Unidas) fúnebre, Lá estão enterrados espanhóis, antilhanos, portugueses, gregos, bolivianos, italianos, venezuelanos, colombianos, chineses, turcos, peruanos, barbadianos, alemães, franceses, ingleses, austríacos, árabes, russos, porto-riquenhos, japoneses e dinamarqueses que a Madeira-Mamoré Railway Company recrutou no mundo inteiro para trabalharem na construção ferrovia.
Eles foram sepultados entre 1907, quando o cemitério foi aberto, anexo ao Complexo Hospitalar da Candelária, criado para tratar de funcionários da ferrovia, e 1912, quando a ferrovia foi inaugurada. Era reservado só para os operários estrangeiros que morriam nas obras na grande ferrovia da floresta.
Eles foram sepultados entre 1907, quando o cemitério foi aberto, anexo ao Complexo Hospitalar da Candelária, criado para tratar de funcionários da ferrovia, e 1912, quando a ferrovia foi inaugurada. Era reservado só para os operários estrangeiros que morriam nas obras na grande ferrovia da floresta.
Quando a construção da estrada acabou, e a maioria dos estrangeiros voltou para suas terras de origem, os que morreram foram abandonados pelos compatriotas sobreviventes. Os 1.593 sepultamentos são confirmados por estatísticas necrológicas dos médicos do Complexo Hospitalar da Candelária. Não há registro de que algum deles tenha sido exumado para lugar algum. Heróis de uma das maiores obras da humanidade, nunca foram repatriados após a morte em terra estranha.
Seus nomes foram esquecidos. Seus túmulos começaram a ser violados após a desativação do cemitério em 1920. As lápides foram destruídas ou roubadas.
Seus nomes foram esquecidos. Seus túmulos começaram a ser violados após a desativação do cemitério em 1920. As lápides foram destruídas ou roubadas.
Ruína de túmulo no Cemitério da Candelária, Porto Velho (RO), 2007. Foto: Nelson Townes - Revista Momento.
As tumbas desapareceram - As que não foram violadas foram engolidas pela floresta que ressurgiu no local. Árvores gigantes se ergueram sobre os túmulos, penetrando-os com grossas raízes, envolvendo, triturando e misturando os ossos com a terra.
Uma ou outra tumba é hoje encontrada. Uma delas, posterior a 1912, já do tempo em que brasileiros também eram enterrados no Candelária, é de Carlos Augusto Serzedelo, nascido em julho de 1876 e falecido em agosto de 1917. Os túmulos que sobraram estão escondidas pela floresta que tomou conta do cemitério abandonado.
"Das 1.593 cruzes que com certeza existiam, as recuperadas ou que ainda são visíveis não chegam a 50." constatou o arquiteto Luis Leite, presidente da Associação dos Amigos da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, que visita freqüentemente o local.
Em 2005, Leite soube que haviam sido roubadas 11 cruzes do Candelária. Permaneceram desaparecidas durante um mês, até que a Polícia as entregou à Associação dos Amigos da Estrada de Ferro, sem dizer quem as tinha roubado.
Associação colocou-as novamente nos túmulos. O trabalho sob a coordenação de Luis Leite e Demetrius Lemos, demorou mais de quatro horas. Essas e outras relíquias do cemitério costumam ser roubadas sob encomenda até por gente ilustre de Porto Velho - para efeitos decorativos ou por misticismo.
A esperança dos amigos da Madeira-Mamoré é a de que os nomes de todas as 1.593 pessoas sepultadas no Candelária ainda estejam em algum livro de registros da ferrovia não queimado pelos militares da Ditadura que a destruíram a partir de 1972.
Muitos documentos escaparam do vandalismo militar, ainda não foram examinados e estão sendo estudados e recuperados por diferentes grupos de trabalho.
Lápide da sepultura de Carlos Augusto Serzedelo (1876-1917) no Cemitério da Candelária, Porto Velho (RO), 2007. Foto: Nelson Townes - Revista Momento.
História recuperada - A história desses primeiros tempos de Porto Velho também está sendo recuperada com base em documentos pertencentes ao acervo do Centro de Documentação Histórica do Tribunal de Justiça do estado de Rondônia.
Uma equipe chefiada pela historiadora Nilza Menezes examina processos judiciais, livros cartoriais de Imóveis e Registro Civil que que têm registros a partir da instalação da Comarca Santo Antonio do Rio Madeira no ano de 1912.
Enquanto o Candelária funcionou como cemitério só para estrangeiros, até 1912, apenas uma exceção foi feita para o sepultamento de uma pessoa não alienígena: uma jovem brasileira chamada Lydia Xavier, segundo o médico, antropólogo e historiador Ary Pinheiro, citado por Yêdda Pinheiro Borzacov em seu livro "Porto Velho, 100 anos de história."
Mesmo sendo exceção entre os dos estrangeiros, o túmulo da brasileira Lydia tem inscrição em inglês. Seu discreto enterro visou evitar um escândalo na sociedade de Porto Velho. A jovem era amante de um engenheiro norte-americano e o romance não podia ser revelado. Lydia, após uma briga o amante, suicidou-se se envenenando com um corrosivo.
O Cemitério da Candelária é também uma referência para os estudos sobre o povo judeu nos vales dos rios Madeira, Mamoré e Guaporé. Nele foi enterrado o judeu Isaac Benchimol, por volta de 1910. Segundo algumas fontes, a comunidade judaica não se organizou em Porto Velho pelo fato de os judeus que trabalhavam na Madeira-Mamoré serem enterrados em cemitérios não judeus – como o Candelária (e no de Abunã e anos mais tarde no Cemitério dos Inocentes, onde há outro judeu chamado Isaac Benchimol, homônimo do Benchimol do Candelária.)
O sepultamento de Isaac Benchimol no Candelária simbolizaria o início do abandono pelos judeus que trabalhavam na Estrada de Ferro Madeira-Mamoré de suas de tradições religiosas.
Há outros mistérios o Cemitério da Candelária que a história ainda não desvendou. Segundo o arquiteto Luis Leite, consta que, além dos estrangeiros sepultados até 1912, mais 4 mil pessoas (entre elas brasileiros) foram enterradas ali nos oito anos seguintes em que continuou funcionando até sua completa desativação em 1920 – e que foram igualmente esquecidas. Sem nomes, sem lápides, em túmulos escondidos pelo matagal. Quem eram? De onde vieram?
Se a informação de Luis Leite estiver correta, pelo menos cinco mil mortos estão enterrados no Cemitério da Candelária.
Uma solução para caracterizar bem o bosque-cemitério como um local sagrado e intocável seria a colocação de um grande mural no local, com os nomes dos 1.593 trabalhadores ali sepultados.
As bandeiras dos 22 países que eles representam poderiam ser desfraldadas junto ao mural, ressaltando a importância histórica do cemitério e transformando-o num ponto de referência histórica, cultural, e turística da memória da cidade - como outros cemitérios antigos são em outras cidades.
A Associação de Amigos da Madeira-Mamoré construiu uma cruz, de vinte metros de altura, com trilhos, para marcar o local do cemitério. Todos os anos, no mês de novembro, é realizada uma missa ecumênica em memória dos que estão ali sepultados e de todos os outros que perderam a vidas durante a construção da ferrovia.
A missa é celebrada também em memória dos que tiveram de ser enterrados na floresta, ao lado ou sob os trilhos, ao longo da ferrovia, e pelos que não conseguiram deixar a selva em duas tentativas anteriores de construir a Madeira-Mamoré, quando não havia o Hospital da Candelária nem o cemitério anexo (era separado do hospital por um pomar.)
Mas, o Cemitério da Candelária ainda é visto em Porto Velho como um matagal abandonado pela maioria da população, que mal conhece sua história. E está sempre na mira de empresários imobiliários que o vêem apenas como um terreno a ser loteado para construção de casas e prédios.
No resto do Brasil e em outros países, os cemitérios estão ligados à história das cidades onde se localizam, através de obras de arte como os mausoléus das famílias ilustres, das personalidades históricas e das épocas importantes que eles evocam.
Em Porto Velho, o próprio Cemitério dos Inocentes, está ligado à história com mausoléus que são monumentos sobre o passado aristocrático da cidade e os pioneiros da Capital.
Um dos fundadores da psicologia de massas, Gustave Le Bon, explica o significado dos monumentos nos cemitérios: "Não são os fatos em si que ferem a imaginação coletiva, mas sim o modo pelo qual se lhes apresentam. Os monumentos e as comemorações são, sem dúvida, os meios mais proveitosos, práticos e seguros, para gravar no espírito do povo as proezas de um herói, a grandeza de um nome ou a importância e o significado de um acontecimento."
Honra e bravura - O Cemitério da Candelária não tem monumentos materiais, O bosque que se formou sobre ele tornou-se um monumento natural, puramente espiritual. É um campo de honra consagrado à bravura e ao sofrimento físico e moral dos que enfrentaram a selva.
A floresta que os matou agora os abriga. É o local de descanso dos que deixaram suas famílias em países distantes, pensando que logo voltariam, mas foram enganados quanto às condições de trabalho e os perigos mortais que sofreriam, como anotam os historiadores.
A maioria morreu não somente de doenças da região, como a malária, mas também de outras moléstias, e após sofrimentos tão terríveis que impressionaram "indelevelmente" o sanitarista Oswaldo Cruz, que esteve em Porto Velho em 1910, estudar as causas das doenças que matavam os trabalhadores.
O Cemitério da Candelária está localizado perto da linha férrea, no trajeto em direção à antiga e extinta Vila de Santo Antonio. Tem aos fundos o Conjunto Residencial Cujubim e fica próximo do clube dos sub-tenentes e sargentos do 5º Batalháo de Engenharia de Construção do Exército. No outro extremo fica próximo das residências do bairrdo Triângulo, também na beira da ferrovia.
O perímetro urbano pertence à ferrovia desde o decreto presidencial de 8.776 de 7 de junho de 1911, assinado pelo então presidente da República, Hermes da Fonseca, que definiu as propriedades da ferrovia, na faixa de 150 metros para cada lado do eixo da linha da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, correspondentes a uma área em quadro, de 5.000 metros de lado.
Mas, como se observa, é ocupado de forma desordenada, com pouca infra-estrutura básica e agressões sobre os elementos históricos do espaço como a linha férrea e o Cemitério da Candelária além das áreas de mata preservada e de proteção de mananciais.
Quando a cidade de Porto Velho nasceu, em 1907, a partir das oficinas e galpões da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, o patrimônio imobiliário do município criado 7 anos depois correspondia tão somente às áreas de influência da construção e instalação da estrada de ferro, "sem deter qualquer outro patrimônio imobiliário” - conforme reconhece até hoje a prefeitura de Porto Velho.
Cruz no Cemitério da Candelária, Porto Velho (RO), 2007. Foto: Nelson Townes - Revista Momento.
Conjunto histórico -O Conjunto Histórico, Arquitetônico e Paisagístico da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré (EFMM), formado pelo Pátio Ferroviário, os oito quilômetros de estrada de ferro que vai da Estação Central até a Estação de Santo Antônio, as três Caixas d'água e o Cemitério da Candelária, foram tombados como monumentos integrantes do Patrimônio Cultural Brasileiro, “em razão de possuírem um excepcional valor cultural” pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), através da portaria 231, de 13 de julho de 2007.
Além do valor histórico para a cidade de Porto Velho, o Cemitério da Candelária, inspira misticismo em muita gente. Moradores do bairro do Triângulo costumam contar - reservadamente - histórias sobrenaturais sobre o bosque místico onde jazem os trabalhadores da ferrovia.
Uma dona de casa, que pediu para não ser identificada, moradora a poucos metros da linha férrea, perto do cemitério, conta que, em mais de uma noite, acordou com um clarão iluminando a rua e ouvindo o ruído de um trem andando nos trilhos.
Ela diz que nessas ocasiões abre a janela e vê que o clarão é o do farol de um trem da Madeira-Mamoré se aproximando. Nesse momento, diz ela, alguns homens caminham do cemitério da Candelária para perto dos trilhos.
“Eles se vestem como os antigos trabalhadores da ferrovia, com camisas de mangas compridas abotoadas até o pescoço e junto aos punhos, para evitar picadas de mosquitos”- acrescenta a mulher.
“Os homens fazem sinais para o trem parar, mas o trem passa direto e desaparece”. “Então os homens caminham de volta ao cemitério cabisbaixos, e somem na escuridão.”
Para essa dona de casa, que diz rezar sempre pelas almas dos mortos da EFMM, eram fantasmas dos operários tentando embarcar no trem com a passagem comprada pela própria vida.
Cometerium
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