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quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013




    A história secreta da renúncia de Bento XVI

    Mais do que querelas teológicas, são o dinheiro e as contas sujas do banco
    do Vaticano os elementos que parecem compor a trama da inédita renúncia do
    papa. Um ninho de corvos pedófilos, articuladores de complôs reacionários e
    ladrões sedentos de poder, imunes e capazes de tudo para defender sua
    facção. A hierarquia católica deixou uma imagem terrível de seu processo de
    decomposição moral. O artigo é de Eduardo Febbro, direto de Paris.

    Eduardo Febbro

    Paris - Os especialistas em assuntos do Vaticano afirmam que o Papa Bento
    XVI decidiu renunciar em março passado, depois de regressar de sua viagem ao
    México e a Cuba.

    Naquele momento, o papa, que encarna o que o diretor da École Pratique des
    Hautes Études de Paris (Sorbonne), Philippe Portier, chama “uma continuidade
    pesada” de seu predecessor, João Paulo II, descobriu em um informe elaborado
    por um grupo de cardeais os abismos nada espirituais nos quais a igreja
    havia caído: corrupção, finanças obscuras, guerras fratricidas pelo poder,
    roubo massivo de documentos secretos, luta entre facções, lavagem de
    dinheiro.

    O Vaticano era um ninho de hienas enlouquecidas, um pugilato sem limites nem
    moral alguma onde a cúria faminta de poder fomentava delações, traições,
    artimanhas e operações de inteligência para manter suas prerrogativas e
    privilégios a frente das instituições religiosas.

    Muito longe do céu e muito perto dos pecados terrestres, sob o mandato de
    Bento XVI o Vaticano foi um dos Estados mais obscuros do planeta. Joseph
    Ratzinger teve o mérito de expor o imenso buraco negro dos padres pedófilos,
    mas não o de modernizar a igreja ou as práticas vaticanas.

    Bento XVI foi, como assinala Philippe Portier, um continuador da obra de
    João Paulo II: “desde 1981 seguiu o reino de seu predecessor acompanhando
    vários textos importantes que redigiu: a condenação das teologias da
    libertação dos anos 1984-1986; o Evangelium vitae de 1995 a propósito da
    doutrina da igreja sobre os temas da vida; o Splendor veritas, um texto
    fundamental redigido a quatro mãos com Wojtyla”. Esses dois textos citados
    pelo especialista francês são um compêndio prático da visão reacionária da
    igreja sobre as questões políticas, sociais e científicas do mundo moderno.

    O Monsenhor Georg Gänsweins, fiel secretário pessoal do papa desde 2003, tem
    em sua página web um lema muito paradoxal: junto ao escudo de um dragão que
    simboliza a lealdade o lema diz “dar testemunho da verdade”. Mas a verdade,
    no Vaticano, não é uma moeda corrente.

    Depois do escândalo provocado pelo vazamento da correspondência secreta do
    papa e das obscuras finanças do Vaticano, a cúria romana agiu como faria
    qualquer Estado. Buscou mudar sua imagem com métodos modernos. Para isso
    contratou o jornalista estadunidense Greg Burke, membro da Opus Dei e
    ex-integrante da agência Reuters, da revista Time e da cadeia Fox. Burke
    tinha por missão melhorar a deteriorada imagem da igreja. “Minha ideia é
    trazer luz”, disse Burke ao assumir o posto. Muito tarde. Não há nada de
    claro na cúpula da igreja católica.

    A divulgação dos documentos secretos do Vaticano orquestrada pelo mordomo do
    papa, Paolo Gabriele, e muitas outras mãos invisíveis, foi uma operação
    sabiamente montada cujos detalhes seguem sendo misteriosos: operação contra
    o poderoso secretário de Estado, Tarcisio Bertone, conspiração para empurrar
    Bento XVI à renúncia e colocar em seu lugar um italiano na tentativa de
    frear a luta interna em curso e a avalanche de segredos, os vatileaks
    fizeram afundar a tarefa de limpeza confiada a Greg Burke. Um inferno de
    paredes pintadas com anjos não é fácil de redesenhar.

    Bento XVI acabou enrolado pelas contradições que ele mesmo suscitou. Estas
    são tais que, uma vez tornada pública sua renúncia, os tradicionalistas da
    Fraternidade de São Pio X, fundada pelo Monsenhor Lefebvre, saudaram a
    figura do Papa.

    Não é para menos: uma das primeiras missões que Ratzinger empreendeu
    consistiu em suprimir as sanções canônicas adotadas contra os partidários
    fascistóides e ultrarreacionários do Mosenhor Levebvre e, por conseguinte,
    legitimar no seio da igreja essa corrente retrógada que, de Pinochet a
    Videla, apoiou quase todas as ditaduras de ultradireita do mundo.

    Bento XVI não foi o sumo pontífice da luz que seus retratistas se empenham
    em pintar, mas sim o contrário. Philippe Portier assinala a respeito que o
    papa “se deixou engolir pela opacidade que se instalou sob seu reinado”. E a
    primeira delas não é doutrinária, mas sim financeira.

    O Vaticano é um tenebroso gestor de dinheiro e muitas das querelas que
    surgiram no último ano têm a ver com as finanças, as contas maquiadas e o
    dinheiro dissimulado. Esta é a herança financeira deixada por João Paulo II,
    que, para muitos especialistas, explica a crise atual.

    Em setembro de 2009, Ratzinger nomeou o banqueiro Ettore Gotti Tedeschi para
    o posto de presidente do Instituto para as Obras de Religião (IOR), o banco
    do Vaticano. Próximo à Opus Deis, representante do Banco Santander na Itália
    desde 1992, Gotti Tedeschi participou da preparação da encíclica social e
    econômica Caritas in veritate, publicada pelo papa Bento XVI em julho
    passado. A encíclica exige mais justiça social e propõe regras mais
    transparentes para o sistema financeiro mundial. Tedeschi teve como objetivo
    ordenar as turvas águas das finanças do Vaticano.

    As contas da Santa Sé são um labirinto de corrupção e lavagem de dinheiro
    cujas origens mais conhecidas remontam ao final dos anos 80, quando a
    justiça italiana emitiu uma ordem de prisão contra o arcebispo
    norteamericano Paul Marcinkus, o chamado “banqueiro de Deus”, presidente do
    IOR e máximo responsável pelos investimentos do Vaticano na época.

    João Paulo II usou o argumento da soberania territorial do Vaticano para
    evitar a prisão e salvá-lo da cadeia. Não é de se estranhar, pois devia
    muito a ele. Nos anos 70, Marcinkus havia passado dinheiro “não
    contabilizado” do IOR para as contas do sindicato polonês Solidariedade,
    algo que Karol Wojtyla não esqueceu jamais.

    Marcinkus terminou seus dias jogando golfe em Phoenix, em meio a um
    gigantesco buraco negro de perdas e investimentos mafiosos, além de vários
    cadáveres.

    No dia 18 de junho de 1982 apareceu um cadáver enforcado na ponte de
    Blackfriars, em Londres. O corpo era de Roberto Calvi, presidente do Banco
    Ambrosiano. Seu aparente suicídio expôs uma imensa trama de corrupção que
    incluía, além do Banco Ambrosiano, a loja maçônica Propaganda 2 (mais
    conhecida como P-2), dirigida por Licio Gelli e o próprio IOR de Marcinkus.

    Ettore Gotti Tedeschi recebeu uma missão quase impossível e só permaneceu
    três anos a frente do IOR. Ele foi demitido de forma fulminante em 2012 por
    supostas “irregularidades” em sua gestão.

    Tedeschi saiu do banco poucas horas depois da detenção do mordomo do Papa,
    justamente no momento em que o Vaticano estava sendo investigado por suposta
    violação das normas contra a lavagem de dinheiro.

    Na verdade, a expulsão de Tedeschi constitui outro episódio da guerra entre
    facções no Vaticano. Quando assumiu seu posto, Tedeschi começou a elaborar
    um informe secreto onde registrou o que foi descobrindo: contas secretas
    onde se escondia dinheiro sujo de “políticos, intermediários, construtores e
    altos funcionários do Estado”. Até Matteo Messina Dernaro, o novo chefe da
    Cosa Nostra, tinha seu dinheiro depositado no IOR por meio de laranjas.

    Aí começou o infortúnio de Tedeschi. Quem conhece bem o Vaticano diz que o
    banqueiro amigo do papa foi vítima de um complô armado por conselheiros do
    banco com o respaldo do secretário de Estado, Monsenhor Bertone, um inimigo
    pessoal de Tedeschi e responsável pela comissão de cardeais que fiscaliza o
    funcionamento do banco. Sua destituição veio acompanhada pela difusão de um
    “documento” que o vinculava ao vazamento de documentos roubados do papa.

    Mais do que querelas teológicas, são o dinheiro e as contas sujas do banco
    do Vaticano os elementos que parecem compor a trama da inédita renúncia do
    papa. Um ninho de corvos pedófilos, articuladores de complôs reacionários e
    ladrões sedentos de poder, imunes e capazes de tudo para defender sua
    facção.

    A hierarquia católica deixou uma imagem terrível de seu processo de
    decomposição moral. Nada muito diferente do mundo no qual vivemos:
    corrupção, capitalismo suicida, proteção de privilegiados, circuitos de
    poder que se autoalimentam, o Vaticano não é mais do que um reflexo pontual
    e decadente da própria decadência do sistema.

    Tradução: Katarina Peixoto

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