Sábado, 23 de fevereiro. São 4 da tarde, aproxima-se a hora da grande maré cidadã. Circulamos por Madrid, conduzidas por uma camarada da Izquierda Unida, que nos acompanhará até às Portas do Sol. Pelo caminho cruzamo-nos com uma coluna de manifestantes que se irá juntar a uma das 4 grandes colunas que mais tarde irão confluir na Praça Cibeles. São do bairro de Vallecas. Foi feito um apelo para que cada bairro da cidade se organizasse para participar na grande mobilização de protesto contra o golpe anti-democrático da Troika e dos mercados.
A nossa camarada estaciona no bairro de Lavapies e seguimos agora a pé pelas ruas em direção ao nosso ponto de encontro. Ao longe já se ouve o fervilhar da multidão. Perceber que pode ser uma multidão faz-nos sorrir.
Chegamos. O nosso ponto de encontro é uma imensa coluna já, da qual não se vê nem o princípio nem o fim,e que ainda vai confluir com outras antes de chegar à Praça Cibeles.
Está um sol radioso que faz brilhar as bandeiras e os cartazes e ilumina os rostos, apesar do frio imenso que teima em gelar-nos as mãos e as faces.
A data é bastante simbólica, passam 32 anos da tentativa de golpe militar de 23 de Fevereiro de 1981, durante o qual a Guardia Civil tentou tomar de assalto o Congresso dos Deputados.
Agora os espanhóis juntam-se novamente para lutar contra este novo golpe de Estado.
Vieram todos. Trabalhadores, desempregados, pensionistas, estudantes, velhos e crianças, os mineiros, as vítimas dos despejos, os que defendem a saúde pública, os que defendem a educação pública, os trabalhadores da rádio e televisão de Madrid (onde já foram despedidos 90% dos trabalhadores e que vai agora ser privatizada), as vítimas do franquismo, os do 15M. As várias marés, (verde, branca, vermelha, laranja) juntaram-se a mais de 300 associações sociais, a partidos políticos, como a Izquierda Unida, e a muitos milhares de cidadãos Vieram mostrar a sua indignação contra a austeridade e os cortes que lhes querem impor, contra a reforma laboral.
Desfilam agora pelas ruas, imunes ao frio gelado. Por todo lado vemos pequenos cartazes que dizem simplesmente “No” com o desenho de uma tesoura, simbolizando “no a los recortes” – não aos cortes. Um grupo que se auto-intitula de veteranos dos 15M, numa divertida alusão à sua idade, gritam que estão ali pelos jovens. Há imensas alusões a Rajoy. Muitos trazem consigo envelopes e mostram que os seus estão vazios. As frases que mais se ouvem serão, talvez, “si, se puede” (sim, é possível) e “no hay pan para tanto chorizo” (não há pão para tanto “ladrão”).
Ainda estamos a meio da Calle de Alcalá a caminho da Praça Cibeles e já se começa a andar bem devagar. Ao longe avista-se uma verdadeira maré de gente a confluir de Leste, Oeste, Norte e Sul. A coluna é cada vez mais compacta. Todos querem chegar perto da Câmara dos Deputados e do ponto final da manifestação – a praça Neptuno.
Chegamos ao ponto de confluência. Uma verdadeira enchente de pessoas que se agita como uma verdadeira maré. A marcha é cada vez mais lenta. Ainda não se vê o fim da coluna que integramos nem de qualquer das outras. Mas o espaço entre pessoas é cada vez menor. Um pouco mais à frente ouve-se um cântico. Um comentário perpassa pela multidão – são os mineiros! Há um misto de respeito e de admiração nessa afirmação. E todos começam a cantar com os mineiros “Santa Bárbara Bendita”. Furo pela multidão à procura do epicentro. Os mineiros estão sentados no chão, com os seus capacetes na cabeça e as luzes ligadas como faróis. Terminam o cântico e gritam: “arriba mineros!”. Levantam-se e a marcha prossegue. Pela multidão continua a ouvir-se a pergunta: “viste os mineiros?”.
Passa já das 6 da tarde, não estamos sequer a meio do percurso entre a praça Cibeles e a Praça Neptuno, mas já não é possível avançar mais. Os que conseguiram chegar à frente e regressam dizem-nos que não vai ser possível ir mais longe, que junto das barreiras que a polícia instalou em volta do Congresso dos Deputados, está tão compacto que não cabe uma mosca. Ao ponto de confluência continua a chegar um mar sem fim de gente.
Todos se questionam quanto aos números. As autoridades nem nos números abdicam da austeridade e falam em 80 mil. As organizações dizem que entre 400 e 500 mil pessoas. À nossa volta, arriscam que estão muito mais. Uns comparam com a manifestação de protesto contra a guerra que juntou 1 milhão. Outros comparam com os festejos da vitória da Espanha no Mundial que juntou 700 mil pessoas. Com excepção dos dados das autoridades que são manifestamente parcos, é difícil dizer quem terá razão. Devido aos constantes fluxos de pessoas será talvez difícil chegar ao número mais próximo da realidade, mas é certo que as marés não deixarão de voltar a correr pelas ruas em Madrid, porque quem lá esteve viu e sentiu a verdadeira dimensão da indignação.
Cláudia Oliveira
Fonte: BE Internacional
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