Portugal está deprimido, aflito, perplexo com o que lhe está a acontecer. Nada do que o prof. Medina Carreira não tivesse prevenido, com a veemência que lhe custou um rol de inimigos cheios de azebre. O costume, para quem recusa a obediência cega e não cala a voz da razão. Anteontem, na SIC, a excelente Clara de Sousa apresentou uma reportagem inquietante, que prova a dissolução dos laços sociais, pondo em causa a nossa própria identidade. Os portugueses estão a vender tudo o que lhes parece acessório e a desfazer-se não só de objectos que lhes são queridos como de utensílios absolutamente necessários. Afogados em dívidas, relegam o que lhes resta de privado e de pessoal para a esfera pública. Os exemplos fornecidos explicam-nos a dimensão da miséria em que subsistimos e a grandeza das dificuldades com que nos enredaram.
Estamos cercados de prestamistas, os maiores do quais, acaso, aqueles da troika, sem esquecer ou minimizar os compradores de oiro, de artigos em segunda mão, de recheios de casas, os quais não ocultam que “o negócio vai bem.” A velha fórmula de Rockefeler: “Quando há sangue nas ruas, compra”, parece dar amplo resultado.
Os piedosos discursos, cujo conteúdo se baseia na perda de referências, na ausência de valores, na desagregação de princípios, não constituem novos pressupostos de autoridade moral. Palavras, palavras. Os seus autores, na generalidade, são grandes responsáveis pela desumanização desta sociedade visível. Quem acredita, seriamente, nos dirigentes políticos?, os quais têm tripudiado não só sobre a natureza da sua função, como nos próprios rituais públicos.
Há dias, ante uma plateia de jovens, Eduardo Catroga, emocionado, incitou esta geração a enviar para tribunal, porventura para a cadeia, Sócrates e seus apaniguados. Só estes?, pergunta a minha malvada curiosidade. Não será verdade que o ex-ministro simboliza, ele também, um parágrafo da história?
As regras da arte almejavam uma sociedade que deveria basear-se em associações com características afectivas e solidárias. Nada disso. A ganância, a febre do lucro pelo lucro, o individualismo mais atroz criaram a sobranceria e o desprezo pelo humano. Onde se situa a fronteira da compaixão? As pessoas que querem permanecer elas próprias não têm espaço nem possibilidades. Esta exigência de compromisso perde-se com o desaparecimento do altruísmo de proximidade. Não nos cruzamos nas ruas, nos bairros, nas cidades. Trespassamo-nos, numa distância prática, física e mental que nos isola cada vez mais uns dos outros.
In Diário de Notícias online
04/05/2011
por BAPTISTA-BASTOS
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