(Artigo in Expresso
O senhor Football Leaks é português e vive incógnito, algures na Europa. O início desta fuga de informação começou na Alemanha.
No meio dos adeptos do modesto clube alemão Hamburgo SV, que assistem nas bancadas a mais uma derrota da sua equipa, John passa quase despercebido. A multidão canta em coro “Segunda divisão! Aí vai o Hamburgo!”, enquanto o português vai bebendo mais um gole do quinto copo de cerveja. Ainda se entusiasma com um jogo de futebol, apesar dos negócios escuros que têm vindo a manchar o desporto, e que ele começou a desvendar no final de 2015.
John, nome pelo qual ele prefere ser identificado, é o senhor Football Leaks e tem em mãos uma plataforma online que contém 18,6 milhões de documentos, com 1,9 terabytes de informação – equivalente a 500 mil Bíblias ou a oito disco rígidos portáteis – com documentação de negócios do futebol. Por outras palavras, é a maior fuga de informação da História do desporto.
O português, que é fluente em cinco línguas e vive incógnito algures na Europa, encontrou-se em Hamburgo, na primavera, com os jornalistas da revista alemã “Der Spiegel” para que avaliassem a veracidade da base de dados. Não pediu dinheiro em troca, apesar de alegar que vários agentes de jogadores lhe ofereceram 650 mil euros por ela. De onde vieram estes dados? Ele não responde.
Depois de uma análise exaustiva, a equipa de investigação da revista alemã confirmou que se tratava de informação verdadeira: contratos de jogadores, acordos de transferências secretos, esquemas com indícios de fuga ao fisco em offshores e todo o tipo de negócios menos claros entre agentes, intermediários e presidentes de clubes de futebol… E algumas das maiores estrelas mundiais, como Cristiano Ronaldo, José Mourinho e Mesut Ozil, estão lá mencionados.
Numa “sala segura” criada de propósito para este projeto, na redação da revista alemã, John veste umas calças de ganga rotas e tem os sapatos sujos. Não parece preocupar-se muito com a aparência. Está mais atento ao ecrã do computador a verificar os fluxos de dinheiro numa empresa fantasma de Malta.
Há computadores sem ligações à Internet e só é permitida a comunicação encriptada. As preocupações com a segurança têm razão de ser. Na base de dados é possível encontrar, por exemplo, ligações entre as máfias do Cazaquistão, da Turquia ou da Rússia ou com ditadores africanos.
John diz ter uma missão: limpar o futebol das suas impurezas
Um dos maiores inimigos de John é a Doyen, empresa de marketing desportivo gerida pelo empresário português Nélio Lucas, que apresentou uma queixa-crime contra o Football Leaks. E não terá ficado por aqui. Também terá contratado empresas para chegar até ao gestor da base de dados: de especialistas em tecnologias de informação até importantes escritórios de advogados e detetives privados.John diz ter uma missão: limpar o futebol das suas impurezas, corrupção e ilegalidades. Existe no entanto um lado negro no Football Leaks, que começou a 3 de outubro de 2015, cinco dias depois de as primeiras informações que constam na base de dados online terem sido tornadas públicas. Nesse dia, Nélio Lucas recebeu um email enviado por alguém que se apelidava Artem Lobuzov e dizia ter documentos comprometedores para a Doyen, incluindo fotografias, mensagens de chats e email: “Tudo isto e muito mais pode aparecer na Internet, e mais tarde na imprensa europeia. Não quer que isso aconteça, pois não? Mas podemos falar…”.
Encriptado
O jovem empresário é uma figura influente no mundo do futebol, principalmente depois de fechar negócios com estrelas como o brasileiro Neymar, o campeão espanhol Xavi e o avançado colombiano Radamel Falcao. Percebeu logo o que a Doyen enfrentava e, sentindo-se pressionado, arriscou e tentou fazer um acordo com Lobuzov.
O mensageiro anónimo pareceu recetivo e respondeu dois dias depois, insinuando que um valor entre 500 mil euros e um milhão de euros significaria que a informação “poderia ser eliminada”. E propôs: “Podemos resolver isto facilmente no maior segredo, preferencialmente entre advogados”.
No final desse mês, numa estação de serviço em Oeiras (arredores de Lisboa), dá-se um encontro entre três homens: Nélio Lucas, o seu advogado e Aníbal Pinto, advogado contactado por Lobuzov para intermediá-lo num possível acordo.
Um dirigente da Doeyen garante que Nélio Lucas terá avançado com uma quantia concreta – 300 mil euros – para que Lobuzov não publicasse nada sobre ele e a empresa.
A Doyen reagiu intempestivamente às perguntas enviadas pelo “Der Spiegel” sobre o encontro em Oeiras. Um porta voz da empresa garante que “a informação é completamente falsa e manipulada”, ameaçando uma ação legal contra a revista no caso de publicar qualquer tipo de notícia sobre o caso. Mas não especificou que tipo de informações eram falsas.
A reunião em Oeiras teve sequelas. “Soube posteriormente que a conversa foi gravada pela Polícia Judiciária”
O advogado Aníbal Pinto garante que não ajudou Lobuzov a fazer chantagem sobre Nélio Lucas e que apenas foi contactado “para intermediar, como advogado, com um colega advogado, um acordo”, sobre o qual não pode comentar por estar sujeito a segredo profissional. Mas decidiu abortar essa negociação. “Logo que me apercebi que o acordo, ou mesmo a tentativa desse acordo, poderia consubstanciar um crime, nomeadamente de extorsão, abandonei as conversações, dando nota disso ao meu colega e aconselhei o meu cliente, como sempre faço, a não prosseguir com qualquer atividade que possa ser considerada ilícita”, explica.
A reunião em Oeiras teve sequelas. “Soube posteriormente que a conversa foi gravada pela Polícia Judiciária”, acusa Aníbal Pinto, que diz ter recebido vários emails, que considera difamatórios “e com ameaças da parte de Nélio Lucas”, tendo apresentado queixa-crime contra o empresário no Ministério Público. “Porque considero, também, que o meu colega foi desleal e violou os mais elementares princípios deontológicos, participei disciplinarmente à Ordem dos Advogados, que abriu um processo disciplinar que está a correr”.
Depois do episódio na estação de serviço, Aníbal Pinto nunca mais foi contactado por Lobuzov, que não respondeu às perguntas enviadas por email.
Algumas das pessoas e empresas mencionadas no Football Leaks que foram contactadas pelo “Der Spiegel” garantem que muitos dos seus documentos foram alvo de hacking. A exemplo da Doyen, uma firma de advogados espanhola fez uma queixa-crime contra os autores do Football Leaks. Mas até ao momento não está provado que algum dos documentos que se encontram na base de dados tenha sido alvo de manipulação ou falsificação.
Quem é afinal Lobuzov? Trabalha em conjunto com John? Ou serão eles a mesma pessoa? É John um hacker? E se John é Lobuzov, quão credível é ele como fonte? “Nós nunca fizemos hacking a ninguém e, como sempre o dissemos, não somos hackers. Temos sim uma boa rede de fontes”, responde John, que se recusa a fazer mais comentários sobre o assunto.
Uma coisa parece certa: o facto de a chantagem por parte de Artem Lobuzov – o anónimo que acenou com documentos considerados desconfortáveis para Nélio Lucas – não ter sido bem-sucedida foi mais um argumento para a equipa de jornalistas avançar com a publicação deste material.
As conversas entre Lobuzov e Nélio Lucas terminaram num tom ainda mais azedo do que tinham começado: “Fica com o teu dinheiro, vais precisar dele”, escreveu o primeiro. Nélio Lucas reagiu: “Bandidos da tecnologia! Não te estou a ameaçar com pancada, que é o que tu merecias, mas nós não somos bandidos. Somos pessoas de princípios e carácter. A tua lição será outra e irá doer mais!!!”.
*European Investigative Collaborations
estatuadesal.com
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