Por: Erick Morais
Nunca vivemos uma época de tantos excessos. Nada parece ser suficiente para satisfazer-nos. Sempre deve haver “algo a mais” e, quando, tem-se esse algo a mais, este já não basta e precisamos (leia-se queremos) de um fato novo, a fim de que possamos saciar nossas vontades. Entretanto, viver desse modo não implica a saciedade dos desejos, mas antes, a escravidão perante eles, impedindo que concretizemos de fato os nossos desejos e, assim, possamos ser felizes.
Essa falta de moderação, de comedimento em relação aos nossos desejos, relaciona-se a falta da virtude da temperança. A temperança é o que permite ao indivíduo desfrutar dos seus apetites, sem que estes o torne dependente, de tal maneira que tenha a vida voltada para a realização desses apetites, como um alcoólatra, por exemplo. É o que Comte-Sponville explica ser uma virtude fundamental à liberdade de gozar dos prazeres.
“A temperança é essa moderação pela qual permanecemos senhores de nossos prazeres, em vez de seus escravos. É o desfrutar livre, e que, por isso, desfruta melhor ainda, pois desfruta também sua própria liberdade. ”
No caso supracitado, o indivíduo que é dependente do álcool, isto é, que não consegue ter o prazer do álcool de forma comedida, apreciando um bom vinho, por exemplo, deixa de sentir real prazer, uma vez que já não delibera sobre a ingestão do álcool, apenas o faz de forma incontrolável. Sendo assim, a intemperança acaba por produzir insatisfação e infelicidade e nunca o contrário, como muito se prega na cultura atual.
A respeito disso, vivemos em um período de imensa insatisfação e infelicidade, muito embora, sejamos bombardeados com as fórmulas da felicidade propostas pelo mercado. Mesmo com o desenvolvimento tecnológico, o qual inegavelmente proporciona uma vida mais confortável que outrora, vivemos constantemente insatisfeitos, já que o mercado cria necessidades ilimitadas e inexistentes no ser humano e este como bom servo as aceita e as internaliza, tendo como única meta de existência a busca pelas novas necessidades que prometem felicidade, mas que contrariamente os deixam mais insatisfeitos e infelizes.
“Não é o corpo que é insaciável. A ilimitação dos desejos, que nos condena à falta, à insatisfação ou à infelicidade, nada mais é que uma doença da imaginação. ”
Desse modo, a publicidade utiliza-se de todos os meios possíveis para através da imaginação criar necessidades inexistentes nas pessoas e, assim, criar um círculo vicioso de consumo, em que o indivíduo agindo de forma incontrolável, intemperante, consome sem raciocinar sobre a ação praticada e, tampouco, sobre a sua liberdade nessa ação. A falta de temperança, na nossa sociedade, torna o indivíduo não somente escravo dos seus desejos, mas também, daqueles que criam esses desejos e os vendem como maravilhas.
Sendo escravo é impossível ser feliz. A escravidão é condição própria para a insatisfação. Assim, sendo intemperantes e, portanto, escravos, somos insatisfeitos, de modo que se torna insustentável a felicidade.
“Como seríamos felizes uma vez que somos insatisfeitos? E como seríamos satisfeitos uma vez que nossos desejos não têm limites? ”
A ilimitação dos desejos, como já foi dito, é uma
criação da imaginação, a qual na sociedade de consumo é determinada por aqueles de detêm o monopólio da força. Não se trata de desconsiderar os desejos, mas de não se tornar escravo deles e, dessa forma, perder o prazer que a realização deles proporciona. Vivemos o hedonismo da sociedade de consumo, como se toda fonte de prazer viesse do poder de consumo e da rotatividade, claro. Entretanto, se consumir fosse tão benéfico, a sociedade estaria em um estágio muito melhor do que o que se encontra e as pessoas estariam radiantes de alegria.
As pessoas são diferentes e isso é ótimo. Assim sendo, alguns terão mais desejos que outros, uns terão desejos diferentes de outros e a realização dos desejos é fundamental para uma vida feliz. No entanto, sem temperança, nem mesmo coisas grandiloquentes são capazes de produzir felicidade. O cerne da questão gira em torno do contentamento, não no sentido de estagnação, mas de ter uma visão contemplativa do mundo, de modo que se perceba felicidade também em “pequenos” prazeres como um almoço em família ou ler um livro.
Sem temperança o indivíduo torna-se um terrível monstro de fome insaciável que não se contenta com nada. Torna-se presa fácil para a publicidade, que tratará de aumentar ainda mais a sua insaciável fome. A temperança, portanto, acima de tudo, proporciona a independência do indivíduo em relação a amarras e correntes, sejam produzidas por si mesmo, sejam produzidas pelo mercado, diga-se de passagem, a maior parte. A felicidade é algo totalmente subjetivo, todavia, certamente não se é feliz sem estar contente consigo e isso, sem dúvida alguma, só é possível sendo livre.
“A temperança é um meio para a independência, assim como esta é um meio para a felicidade. Ser temperante é poder contentar-se com pouco; mas não é o pouco que importa: é o poder, e é o contentamento. ”
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