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quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

A PIDE existiu. E torturou. Texto de Diana Andringa


Texto de Diana Andringa, Público, 16-04-1994


«Em 13 de Março de 1962, eu e mais alguns colegas meus fomos presos pela PIDE. Foi uma experiência muito amarga. Eu não imaginava, não sabia o que era uma prisão... Logo na primeira semana, estivemos cinco dias amarrados dentro da cela, sem alimentação, sem nada, só água... Depois foi a tortura física, da tortura moral passou à tortura física. Na minha idade, com 15 anos, não pouparam o meu físico, levei muita porrada para desvendar o nome de elementos do partido. Resisti.»
As palavras são de um guineense. O massacre de Pidjiquiti, três anos antes, despertara-o para a política ao PAIGC. A sua pouca idade fizera dele o elemento de ligação ideal. Mas essa pouca idade não impediu a tortura, o isolamento. Apenas que fosse, como outros foram, transferido para o Tarrafal: «Depois de um mês de interrogatórios, passei dois meses na cela de isolamento. Depois desses seis meses, eu e mais alguns colegas fomos transferidos para o famoso aquartelamento de Mansoa. Eu estive lá cinco meses, os outros foram transferidos para a Ilha das Galinhas, e depois para o Tarrafal.»
Foi a primeira de quatro prisões. A segunda ocorreu em Janeiro de 1964: «Havia momentos que, em cada dia, na cela, morriam cinco ou seis pessoas. E os presos ficavam lá com os cadáveres, 24, 48 horas. Na nossa cela, um homem teve um ataque, ficou paralisado de um lado. Passou um ano assim, esse homem, um lado morto, um lado vivo. Nós é que o assistíamos, lá na cela. Depois, quando morreu, chamámos. Ninguém foi lá. Ficou sábado, domingo, só na segunda é que tiraram o cadáver da cela.
«Depois construíram outra cela. Mas , era uma cela que ninguém podia lá viver, tinha um metro ë meio por dois e meio e uma janelinha, uma janelinha só com dez por dez, com rede. Tinha que se fazer, desculpem, as necessidades lá dentro. Eu passei lá isolado, sozinho, dois anos. Havia momentos em que falava sozinho, para ouvir a minha voz.»
Nestas condições, a transferência para a Ilha das Galinhas era quase uma libertação: «Quando a pessoa era transferida para a Ilha das Galinhas, sentia-se liberta, porque vivendo na cela uma pessoa não sabia que dia era, hoje ou amanhã, e podia, passado um minuto, ser levado e fuzilado, ou torturado outra vez, e a nossa única salvação era ser transferido para a Ilha das Galinhas. O trabalho era muito duro – nós levantávamo-nos às 5 da manhã e fazíamos o trabalho até às 4 da tarde, às 4 da tarde é que íamos comer para depois descansar – mas uma pessoa sentia-se mais liberta, podia-se contactar com os outros presos...»
Da Ilha das Galinhas sai, amnistiado por Spínola, depois de cinco anos de prisão. Mas, pouco tempo depois, é preso novamente: 30 dias de interrogatório mas, depois, a liberdade. Em 1971 é preso pela quarta vez: «Passei 60 dias de interrogatório e, quando cheguei à cela tinha tá um colega que olhou para mim e começou a chorar, porque eu sangrava por todos os lados, nariz, ouvido, boca, as palmas da mão, planta do pé, nádegas, costas. Ele pensou que eu ia morrer. Mas, felizmente, resisti. Depois houve 30 dias em que fui interrogado dia sim, dia não e levava porrada. Levava, e tinha que estar de joelhos, com pedras em baixo, com os braços abertos e ficava assim de manhã até às nove horas da noite, porque tinha havido rebentamentos em Bissau e eles queriam que eu dissesse quem tinha armas e explosivos... Resisti.»
«Passada uma semana, voltaram a interrogar-me. Disseram-me que eu só tinha dito mentiras e recomeçaram. Passei mais 60 dias de interrogatório. Foi terrível... terrível. Até que tive que fazer greve da fome. Passei seis dias sem comer – só bebia água. Quando me vieram buscar outra vez, eu não podia mesmo andar, tiveram de aguentar-me, levaram-me para a PIDE. Mandaram chamar um major médico. Então esse disse-lhes para não voltarem a bater. Eu já estava em último estado, bastava um pouco de tortura e eu podia morrer.»
Várias pessoas me tinham falado da história deste homem, das torturas que sofrera, antes de falar com ele. E enquanto o ouvia não podia deixar de pensar: «Como é que uma pessoa pode sofrer tudo o que este homem sofreu, ter assistido aos sofrimentos a que assistiu – e que eram, alguns, piores que os que tinha sofrido – e continuar vivo, e falar disso, e até sorrir?» (Até lembrar-me que houvera, também, da parte de portugueses, actos de gentileza, de quase cumplicidade, nem que fosse o cigarro colocado entre os lábios de um preso algemado por um furriel com os olhos cheios de lágrimas...)
Lembrei-me naturalmente dele quando ouvi na televisão algo que julgava nunca ter de ouvir (ao menos sem imediata e veemente contestação) fora das salas da António Maria Cardoso: um pide a explicar como os presos eram bem tratados, como até lhes eram oferecidas lautas iguarias, até a troçar de um ex-preso, dizendo-lho que, apesar da prisão e de todas as queixas sobre o que a PIDE fazia, o via com um óptimo aspecto, vinte anos depois...
Entendam: nada tenho, antes pelo contrário, contra que se entrevistem antigos elementos da PIDE/DGS. É urgente fazer a história dos tempos do fascismo, e eles foram protagonistas desse tempo. Mas tenho tudo contra a demissão dos entrevistadores, a inexistência de contradição, a leveza da pesquisa. E tenho, certamente tenho, contra que os jornalistas da democracia tratem com maior deferência um elemento de uma polícia política que foi um dos maiores sustentáculos da ditadura do que tratam uma vítima dessa mesma polícia, dessa mesma ditadura, uma pessoa que, independentemente do acerto ou desacerto das suas posições, se bateu pela democracia. Por essa democracia que permite que um torcionário tenha o mesmo direito à palavra que uma vítima...
Não conheço José Manuel Tengarrinha. Mas chocou-me vê-lo, vinte anos depois da abolição da PIDE/DGS pela pressão da população, humilhado de novo por um pide. Mesmo se penso que teve alguma responsabilidade, que não deveria nunca ter acedido a participar naquele pseudodebate, que nunca deveria ter aceitado discutir, de igual para igual (igualdade que, ainda para mais, nem sequer existiu, o pide tendo nitidamente estatuto de estrela convidada), com um agente da PIDE.
Chocou-me ouvir um jornalista dizer, quando Tengarrinha referiu as vítimas, «diga lá um ou dois nomes», como se fosse preciso ser Tengarrinha a dar os nomes, como se os jornalistas não soubessem também ao menos dois ou três de mortos pela PIDE, nem que fossem apenas Dias Coelho, Humberto Delgado, Ribeiro Santos...
Chocou-me ouvir de novo, sem contestação, a versão pidesca do assassínio de Delgado – em absoluto contraste com a confissão dos próprios pides envolvidos no assassinato... ou com a de outro inspector da PIDE, Pereira de Carvalho, nas declarações que me prestou para a Geração do 60. Numa carta ao director há dois dias publicada nosso jornal, Manuel de Brito, editor, dizia que o programa o tinha humilhado, 3ue as palavras do pide o tinham humilhado, porque o obrigou a recordar que, vinte anos antes, tinha medo dele – e ele não tinha agora medo de coisa nenhuma.
Foi outra coisa a que me humilhou: foi o sentir que todos éramos cúmplices do que ali se passava, porque, em nome de uma distância dita necessária à história, admitimos que se calasse, tempo de mais, a memória do passado. Porque não exigimos, suficientemente alto, que fossem preservados e transformados em museu a PIDE ou o Aljube. Porque deixámos praticamente abandonadas as campas dos mortos no Tarrafal.
Porque admitimos que Lisboa 94 recordasse tão pouco que festejávamos também os 20 anos do derrube da ditadura e, sobretudo, lembrasse tão pouco a ditadura. (E lembro-me de ouvir, em Weimar, que será capital europeia da cultura em 99, um responsável político dizer: «O programa da capital europeia da cultura não pode esquecer Buchenwald. Porque Weimar é a cidade de Goethe e de Schiller, mas é também a de Buchenwald. Buchenwald faz também parte da cultura alemã.») Porque permitimos que o 25 de Abril, em vez de memória do que existira antes, e do que fora a alegria de todo um povo, depois, se transformasse numa efeméride comemorada com alguns discursos.
Porque, calando-nos, permitimos que um pide possa insultar-nos, vinte anos depois.
 Diana Andringa, Público, 16-04-1994, p.21




Síntese do artigo «A PIDE existiu. E torturou.»
POLÉMICA
 -          A 25 de Abril de 1994, comemoraram-se os 20 anos do derrube dos 48 anos de ditadura fascista em Portugal.
-          Como comemoração dessa data importante, levaram à televisão um ex-pide, para dar o seu testemunho.
-          Durante o debate o ex-pide defendeu-se tão naturalmente que encobriu todos os maus tratos executados pela PIDE, contradizendo, assim, a declaração de alguns indivíduos que noutras alturas tinham confirmado as terríveis torturas.
  
Este conjunto de declarações provocou grande polémica levando os constrangidos a manifestarem-se.
  

EXPERIÊNCIA DE UM GUINEENSE
 1ª  prisão – 13 de Março de 1962:
-        cinco dias amarrado dentro da cela, sem alimentação, só água – tortura física e psicológica;
-          um mês de interrogatório;
-          seis meses de isolamento no Tarrafal, prisão em Cabo Verde, transferência para a prisão da Ilha das Galinhas, de seguida, nova transferência para o Tarrafal.

2ª prisão – Janeiro de 1964:
-          assistia à morte de cinco a seis presos por dia;
-          exposição dos mortos nas celas durante vários dias;
-          isolado durante dois anos – más condições de sobrevivência – , transferência para a prisão da Ilha das Galinhas – fazia trabalho pesado;
-          sentimento de alegria por poder conviver com outros presos;
-          passados cinco anos, sai amnistiado por Spínola.

3ª prisão:
 -          30 dias de interrogatório.

4ª prisão – 1971:
-          60 dias de interrogatório;
-          muita tortura física durante 30 dias, dia sim, dia não: ponham-no de joelhos, em cima de pedras, com os braços abertos, de manhã à noite, mas ele nada revelou.
-          Passados dois meses de interrogatório, decide fazer greve de fome. A médica que o assiste aconselha os agentes dos serviços prisionais a não lhe baterem mais porque poderia morrer.
-          É  libertado.

Que pretendiam dele?
Que desvendasse os nomes dos elementos do partido PAIGC (Guiné) que tinham em seu poder armas e explosivos.


Censura durante o Estado Novo em Portugal




            27 de Janeiro de 1970: Relato de uma prisão atípica

                        Depoimento de Diana Andringa | Caminhos da Memória, 2010-01-27

O que se segue é a narrativa de uma prisão atípica, a de uma das redactoras deste blogue, há exactamente quarenta anos. Diana Andringa entrava cedo num emprego distante de casa. Quando a PIDE a procurou, já tinha saído. Teve pois tempo de se preparar para a prisão. Foi uma primeira vantagem, mas não a única: histórias de amigos presos, visitas a Caxias, ajudavam a evitar-lhe o choque do desconhecido; a sua ligação, mais afectiva do que efectiva, a uma organização, encaixava mal no quadro mental dos inquiridores; mas, sobretudo, confiava em que – tendo o director da PIDE a filha em Cuba – as suas ligações familiares travariam eventuais excessos policiais. Não tendo que enfrentar as torturas bárbaras que tantos outros suportaram, pôde verificar algo que a tortura impedia de observar: que, privada dessa arma, a polícia política se tornava ineficaz e até, por vezes, caricata. O que, a seus olhos, torna ainda mais sórdida a utilização da tortura e mais dignos de respeito aqueles que a sofreram. | Joana Lopes


O carro, um Wolkswagen, passou do outro lado do largo onde esperava o autocarro. Contornou-o na direcção da rua onde morava. Pareceu-me reconhecer um dos homens no interior: o chefe de brigada Inácio Afonso. Avistara-o durante uma ida à PIDE, na António Maria Cardoso, requerer o direito de visitar o então meu namorado.
O autocarro que chegava ocultou-me da vista dos passageiros. Entrei, o coração a bater mais rápido que o habitual: há muito tempo que era notória a vigilância à nossa casa, dez dias antes fôra preso o Álvaro. Teria chegado a minha vez?
O trajecto até à agência de publicidade onde trabalhava levava cerca de uma hora. Fui passando em revista as possibilidades: ir trabalhar, como se nada se passasse, e aguardar o desenrolar dos acontecimentos? Apear-me a meio do percurso, ocultar-me durante algum tempo, deixar o país? Mas esconder-me onde, se aqueles que mais facilmente me acolheriam poderiam estar também vigiados e ser postos em perigo pelo meu aparecimento? E se a vigilância sobre nós durava há tanto tempo e era tão ostensiva, seria possível que os meus dados não estivessem já em todas as fronteiras? Talvez, no entanto, a PIDE fosse menos eficiente do que pensávamos… Mas se abandonasse o país e não pudesse mais voltar, seria isso mais útil do que arriscar a prisão, uma vez que não fazia parte de nenhuma organização e não tinha qualquer importância, nem informações que pudessem fazer perigar a segurança de outros? E se o carro tivesse passado ali por simples coincidência, ou reforço de vigilância, ou intimidação, fugir não iria piorar a situação dos que ficassem?
Ao fim de uma hora a pesar prós e contras, acabei por me apear na paragem do costume. Olhei em volta: não vi nada de inabitual. Entrei na agência. Estava há poucos minutos no gabinete quando o telefone tocou. Era a Nita: “A Zé foi presa. A mãe dela foi a tua casa avisar-te e a PIDE estava lá, prenderam também o Zé.”
As dúvidas voltavam: que fazer? Sabia que vários dos meus colegas, se não todos, estariam dispostos a ajudar-me, mas tinha o direito de os pôr em risco? Valeria a pena? Certamente a PIDE estaria já a vigiar o edifício…
Telefonei ao José Augusto Rocha: “A PIDE está em minha casa. Devo estar a ser presa. Posso deixar-te uma procuração?” Surpreendido, talvez ainda ensonado, o Zé Augusto explicou-me o que fazer. Escrevi a procuração e deixei-a à Maria, com o Bilhete de Identidade necessário ao reconhecimento da assinatura. Expliquei-lhe tudo e pedi-lhe que a entregasse depois à minha mãe, a quem deveria também confirmar a minha prisão. O Plínio, que dividia o gabinete comigo e era familiar de um dirigente da PIDE, abriu as suas gavetas aos papéis que, mesmo inócuos, a polícia poderia querer apreender-me. Desci as escadas e pedi à recepcionista que me avisasse quando os agentes entrassem à minha procura. Telefonei então à minha mãe, pedindo-lhe que aguardasse o telefonema de confirmação da Maria para me levar à sede da PIDE, na António Maria Cardoso, um pijama e uma escova de dentes. Liguei para o emprego do meu pai e pedi à secretária que lhe desse a notícia com cuidado, para evitar um possível problema cardíaco. Sem saber que mais fazer, arrumei a secretária. O telefone tocou e ouvi a voz soluçada da recepcionista: “Já entraram. Foram à Secção de Pessoal.”
Fui à casa de banho. Quando regressava, vi-os chegar: o homem do carro e uma mulher, a também chefe de brigada Madalena Oliveira. Traziam um mandado e tinham avisado a Secção de Pessoal. Ninguém meu conhecido fora preso com tamanha legalidade.
Pedindo desculpa pelo incómodo ao Plínio, passaram rapidamente busca à minha secretária, detendo-se a observar alguns exemplares do Le Monde diplomatique. A seguir pediram-me que os acompanhasse.
Quando saíamos, recolhi os olhares solidários dos colegas. Resolvi cumprir as regras e avisar o meu chefe, Artur Portela. Abri a porta do gabinete: “Lamento, mas vou ter de sair por um bocado. Estes senhores são da PIDE e vieram-me buscar…”
A recepcionista tinha lágrimas nos olhos quando desci. Já na rua, apercebi-me de que tinha poucos cigarros. Disse: “Antes de chegar à António Maria Cardoso preciso de comprar tabaco.” Acederam. Dei dinheiro a um dos agentes, que me trouxe dois maços de Paris.
Na primeira sala onde fui colocada na António Maria Cardoso travei conhecimento com o Inspector Tinoco. “Com que então, distribuição de propaganda subversiva em Luanda!”, disparou, ameaçador. Teve azar: revelou a fragilidade da informação policial. Eu nunca estivera mais do que alguns dias em Luanda, a última das quais com onze anos. “Não me lembro – e, se a fiz, o crime já deve ter prescrito”, respondi. Abandonou a sala.
Pouco depois, levaram-me a outro andar, onde fui identificada e fotografada. Junto à dactiloscopia, o desenho de um esqueleto com os dizeres: “Amigo, tenha calma, não se irrite, porque todos acabamos assim.” Desde então que me irrito sempre que o vejo numa qualquer repartição.
No regresso fecharam-me noutra sala, com uma agente que devia andar pela minha idade. Ficámos ali, uma de cada lado de uma pequena secretária, a ouvir uma gota caindo repetidamente do aquecimento, a um canto. Que, aliás, não aquecia. Um truque mais para criar mal-estar no preso?
Perguntou-me qual a razão da minha prisão. Respondi-lhe que não fazia a mínima ideia, presumia que se tratava de um erro e daí a pouco me libertariam. Lamentava, aliás, o tempo que estava a perder: no dia seguinte devia apresentar a um cliente uma proposta de campanha, devia estar a trabalhar. Era uma nova gabardina, de um tecido totalmente impermeável… “Tornado” parecer-lhe-ia um bom nome? E “ciclone”? Demasiado óbvio, talvez?
Nunca a publicidade me terá sido tão útil… Entusiasmada, a agente entrou no jogo e foi discutindo comigo nomes e, até, pequenos scripts para um filme publicitário. Excelente modo de evitar pensar no que me podia esperar – ou, pior, no que poderia estar a acontecer aos Zés.
Ao almoço trazem-me caldo verde e um bife: “Vê? Dizem que tratamos mal os presos. Fomos buscar-lhe um bife à Brasileira!” Penso que, caso ponham drogas na comida, será mais fácil fazerem-no nos líquidos. Evito a sopa e afasto todo o molho do bife, o que provoca piadas diversas dos agentes que metem a cabeça pela porta entreaberta.
Estou prevenida: o Luís explicou-me que um dos maiores perigos para a resistência de um preso é a sensação de ridículo. Decidi, portanto, que nada do que qualquer agente da PIDE disser poderá tocar-me. Mais tarde poderei discutir os riscos éticos desse pressuposto (“Quando me apercebi de que não chorava quando um morto era do exército alemão, percebi que eu próprio poderia tornar-me um nazi”, disse-me, muitos anos depois, um dos judeus salvos por Sousa Mendes): neste momento, não lhes reconheço dignidade humana.
Depois do almoço, continuo a trabalhar no lançamento da gabardina. A intervalos, canto. A agente revela-se apreciadora de Paco Ibañez. Recito-lhe a versão do cantor de La poesia es una arma cargada de futuro, de Gabriel Celaya (1). A poesia vem dar-me novas forças: obrigada, Celaya, obrigada, Paco Ibañez, por me lembrarem que ali, naquela sala – e parafraseando um outro poeta – sou mais do que eu: sou um dos muitos que recusam lavar as mãos do que se passa em seu redor, dos que escolhem tomar o partido dos que sofrem.
Mas é demasiado para a polícia: a agente é retirada e substituída por outra, igualmente jovem, mais sofisticada, que mal se senta começa a fazer ruídos enervantes em minha intenção. “Um pouco cedo de mais”, penso, “dormi perfeitamente toda a noite.”
Em momento que já não recordo, regressou o inspector, acompanhado pelo agente Benedito Pereira André, que servia de escrivão. Travei então conhecimento com a estranha linguagem dos Autos de Perguntas – e, deduzi, com as razões que determinavam a minha prisão.
“ Aos vinte e sete dias do mês de Janeiro de mil novecentos e setenta, nesta cidade de Lisboa e Direcção de Serviços de Investigação e Contencioso da Direcção-Geral de Segurança, onde se encontra o Excelentíssimo Senhor Inspector Adelino da Silva Tinoco, comigo, Benedito Pereira André, agente servindo de escrivão, ambos da referida Direcção-Geral, compareceu Diana Marina Dias Andringa, casada, redactora de publicidade da firma “CIESA”, nascida a vinte e um de Agosto de mil novecentos e quarenta e sete, em Dundo-Chitato, Lunda-Angola, filha de —– e de ——, residente em ——, a fim de ser interrogada. ——————————————————————–
PERGUNTADA se já esteve presa mais alguma vez, onde quando e porquê, se foi julgada e condenada e, em caso afirmativo, se cumpriu a respectiva pena, respondeu: -Que, nunca esteve presa nem respondeu em Juízo. ——————————————–
À MATÉRIA DOS AUTOS e interrogada no sentido de explicar todas as actividades atentatórias da segurança do Estado que tem desenvolvido como “membro” da “organização” secreta, subversiva e terrorista que denominam por “frente de acção popular”, vulgarmente conhecida por “FAP” e do seu “organismo doutrinário” que é o chamado “comité marxista-leninista português”, em ligação com o “movimento popular de libertação de Angola” também conhecido por “MPLA”, responde: – Que, não pertence a nenhuma organização secreta, subversiva e terrorista, nem tem desenvolvido qualquer actividade atentatória da segurança do Estado.—————————————
E SENDO-LHE perguntado que ligações ou contactos de natureza partidária e subversiva vem mantendo com ———-, hoje detido na sua residência, onde pernoitou, respondeu: – Que, não tem quaisquer ligações ou contactos de natureza partidária e subversiva com o indivíduo referido na pergunta. ———————————————
E SENDO-LHE perguntado como obteve e a que fins destinava a diversa propaganda de natureza partidária e subversiva encontrada e apreendida na sua residência, nomeadamente o documento copiografado com o título “VIVA A LUTA DA CLASSE OPERÁRIA”, composto de duas folhas e editado pelo “comité de propaganda marxista-leninista”, e dois exemplares, um do número um, respeitante ao mês de Outubro, digo, um do número três, respeitante ao mês de Outubro e outro com os números quatro e cinco e respeitante aos meses de Novembro e Dezembro, todos de mil novecentos e sessenta e sete do panfleto clandestino e subversivo intitulado “o proletário”- “órgão do comité marxista-leninista português”, respondeu: – Que, os recebeu pelo correio, ignorando a sua procedência, e guardava-os a título de informação pessoal. —————
E SENDO-LHE  também perguntado que ligações ou contactos de ordem partidária e subversiva vem mantendo com um indivíduo que se julga chmar-se D.T., nome constante do remetente duma carta a si dirigida, manuscrita, igualmente encontrada e apreendida na sua residência, a qual se inicia “DIANA ANDRINGA – lá estarei as 21H, no canto…” e termina “abraço fraternalmente revolucionário”, devendo indicar quem é essa pessoa, respondeu: – Que, como atrás afirmou não mantém ligações ou contactos de ordem partidária e subversiva e nem nunca os teve com ninguém. Não se recorda da carta em referência e no tempo em que era jornalista recebia com frequência cartas de estudantes referindo problemas universitários, admitindo, por isso, que esta seja uma dessas.————————————————————————————–
E mais não respondeu. Lidas as perguntas que lhe foram feitas e as respostas por si dadas, as achou conformes, ratifica e vai assinar.———————————————–
Para constar se lavrou o presente auto, que vai ser também assinado pelo Excelentíssimo Inspector e por agente, que o dactilografei e revi.————————–”
A inquirição reforça a ideia de que é muito frágil a informação policial. A menos que se trate de um esquema preparado para me fazer ganhar confiança e depois me confrontar com uma acusação realmente séria?
Para o fim da tarde, nova substituição de agente. A que entra é mais velha e aparenta origem mais humilde. Diz-me, logo à chegada, não pertencer aos serviços de investigação, mas aos administrativos, tendo sido chamada por excesso de trabalho das agentes do sector. Será ela a acompanhar-me a Caxias. Tendo ouvido dizer que eu mal tocara no almoço e antevendo a possibilidade de chegarmos a Caxias já passada a hora de jantar, no Cais do Sodré manda parar a carrinha, sai e ao voltar estende-me um bolo de arroz. Será o velho truque do pide mau e do pide bom, ou contradições no seio da polícia? Recordo Álvaro de Campos e como o bolo, rejeitando a metafísica.
Chegamos a Caxias. Habituada a entrar para o parlatório, como visita, vou desta vez subir os dois andares até às celas de isolamento – e, também, ao pavilhão das mulheres.
Logo à entrada, sou saudada pelo chefe Palma. As primeiras palavras são surpreendentes: “Também está cá? E agora quem é que visita o Alexandre?” ”Terá de pôr a pergunta ao major Silva Pais”, respondo. Mas já a agente que me acompanha o insta a servir-me o jantar. A discussão que se estabelece insinua contradições entre a polícia política e os guardas prisionais, com o chefe Palma a sublinhar que na António Maria Cardoso conhecem os horários de Caxias e deviam, por isso, prestar mais atenção à hora de envio dos detidos. Mas a agente não desiste e deixa-me com uma garantia: “Esteja descansada que lhe vão servir o jantar.”
Subo finamente as escadas, acompanhada pelo chefe Palma e um guarda prisional. Deposito, numa mesa colocada no corredor, a mala de mão, o relógio, os óculos. No bloco que me estendem para anotar o meu espólio, vejo, em decalque, a letra e a assinatura da Zé. Alguém escreveu: “Quarto 62, 2º Dtº Frente”. A mim destinam-me o Quarto 60, 2º Dtº Frente. Óptimo, somos vizinhas, poderemos talvez comunicar. Levanto a voz, na esperança de que me oiça.
Entro na cela: do lado esquerdo, uma cama de ferro, uma mesa de pedra presa à parede, uma cadeira; do lado direito um armário e a casa de banho. Ao fundo, a janela, de grades duplas. Nada que se compare ao exíguo espaço dos curros do Aljube, onde passaram diversos amigos meus.
A guarda traz-me a roupa da cama, encardida e áspera. Aguardo que me deixe sózinha. Lembro-me de um texto de Manuel Alegre, na Praça da Canção, “Rosas Vermelhas” (2), em Maio de 1963, eu estava na cadeia, isto é, de certo modo, eu estava no meu posto – e , por um estranho momento, sinto-me em casa, como se estar ali fosse perfeitamente natural. Então aproximo-me das grades e, alto, desejo boa-noite a todos os presos que conheço e calculo estarem nessa noite em Caxias.
É nessa altura que chega o peixe. Um peixe de boca aberta e olhos que me fixam esbogalhadamente, equilibrado num prato de metal cheio de arroz argamassa, um peixe que irá manter-se longos anos nos meus pesadelos, como a aranha prensada transformada em mancha no lençol. Pouco como do jantar em que a agente tanto insistiu.
De novo só, bato na parede uma mensagem para a Zé – “uma pancada é a, duas pancadas b” – mas, talvez desconfiada, ela não responde.
Não há espelho na casa de banho – como é nua uma casa de banho que não nos devolve o rosto! – o pijama ainda não chegou, nem a escova de dentes, a roupa da cama não impede o frio, tremo sem parar (e talvez não apenas de frio, virei a ter febre todas as vezes que volto de interrogatórios, como se a tensão acumulada reclamasse o direito a libertar-se). Mas há um muro de palavras a proteger-me, Daniel Filipe (“Ó meu amor resiste/Resiste os olhos secos/Sem lágrimas Sem medo Só talhada/no sílex da ira” (3)), Roger Vailland, Jorge Semprun, Jacques Prévert, João Cabral de Melo Neto, Jorge de Sena, Herberto Helder.
Convoco os seus textos, adormeço a recitá-los. Mal sabe o pequeno inspector Tinoco que a literatura me inspirou muito mais do que a “diversa propaganda de natureza partidária e subversiva encontrada e apreendida na (minha) residência”.
Durante a noite, por mais de uma vez, o postigo abriu-se e houve uma lanterna apontada na minha direcção. A polícia não gosta que os seus presos se evadam pela via do suicídio.
Passei em Caxias os 20 meses seguintes. Se recordo muitos aspectos caricatos – graças aos conselhos do Luís, foi sempre no outro lado que encontrei o ridículo – e não sofri as torturas que tantos sofreram, houve naturalmente dias difíceis. Os de interrogatórios, desde logo, mas não só: todos os de nevoeiro, por exemplo, quando o Tejo desaparecia e a vista do exterior não ia além da guarita da GNR. A vez em que a minha mãe veio visitar-me e lhe recusaram a visita, com o pretexto de que eu deveria ir ao Hospital. Aquele em que chegou a primeira nota de culpa, pedindo para nós penas de vinte a vinte e quatro anos de prisão. (Tinha então 23 anos.) À Fernanda Tomás, à Zé, à minha família, ao Alexandre, ao meu advogado, devo ter conseguido resistir a esses dias.
No julgamento, catorze meses depois desse 27 de Janeiro, os juízes condenaram-me a 20 meses de prisão. Pena justificada assim no “douto” acórdão, proferido a 30 de Março de 1971 pelos juízes do Tribunal Plenário de Lisboa, Fernando António Morgado Florindo, Bernardino Rodrigues de Sousa e João de Sá Alves Cortês:
“A ré é simpatizante da linha política de acção violenta do MPLA, concordando com a formação de actuação do mesmo, cujos estatutos e programa aprova. Partidária da independência da província ultramarina de Angola, tem procurado doutrinar, quer por palavras quer por documentação panfletária, os indivíduos com quem tem contactado, sobretudo ultramarinos, e, para a consecução dos fins do MPLA, com plena consciência dos mesmos, promoveu o encontro entre os réus Álvaro e Maria José, nesta cidade, para que aquele fizesse seguir por esta, para o estrangeiro, uma carta-mensagem destinada ao comité-director do movimento, encontro efectuado depois de de 15 de Agosto de 1969.
Prestou ao réu Rui não só apoio mas colaboração e auxílio nas actividades a favor do MPLA, fornecendo-lhe algumas fotografias de líderes revolucionários e literatura de carácter revolucionário e acompanhando-o na escolha e compra de outra em diversas livrarias, tudo para a consecução dos fins do movimento.
Entregou ainda ao Rui uma caixa de folhas de papel stencyl que tinha em sua casa e fê-lo com pleno conhecimento de que o mesmo ia ser utilizado para policopiar  propaganda clandestina.”
Pareceu-me uma honra imerecida para tão pouca acção. Só muitos anos depois, em entrevistas a alguns dos que, do meu processo, foram deportados sem julgamento para o Tarrafal, vim a entender melhor essa pena, bem como a primeira nota de culpa, depois modificada, e algumas perguntas que então me pareceram completamente descabidas.
Envelheci muito nesses vinte meses. Mas nem tudo foi negativo. Como recordou, há alguns meses, um antigo preso político cabo-verdiano que passou três anos no Tarrafal, na cadeia aprendíamos a conhecer-nos e a conhecer melhor as razões da nossa luta. Ou, pedindo de novo ajuda às palavras de outros, a saber para sempre que os nossos cantares não podem ser sem pecado um adorno, e que lutar é apenas ter uma fiel dedicação à honra de estar vivo (4).

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(1)
Cuando ya nada se espera personalmente/ exaltante/, más se palpita y se sigue más acá de la consciencia,/ fieramente existiendo, ciegamente afirmando,/ como un pulso que golpea las tinieblas,/ que golpea las tinieblas.// Cuando se miran de frente / los vertiginosos ojos claros de la muerte,/se dicen las verdades;/las bárbaras, terribles, amorosas crueldades,/ amorosas crueldades.// Poesía para el pobre, poesía necesaria / como el pan de cada día,/ como el aire que exigimos trece veces por minuto/ para ser y tanto somos, dar un sí que glorifica,/ dar un sí que glorifica.// Porque vivimos a golpes, porque apenas si nos dejan/ decir que somos quien somos,/ nuestros cantares no pueden ser sin pecado un adorno, / Estamos tocando el fondo,/ estamos tocando el fondo.// Maldigo la poesía concebida como un lujo/ cultural para los neutrales / que lavándose las manos, se desentienden y evaden./ Maldigo la poesía de quien no toma partido,/ partido hasta mancharse. // Hago mías las faltas. Siento en mi a cuantos sufren/ y canto respirando./ Canto y canto y cantando más allá de mis penas/ de mis penas personales,/ me ensancho, me ensancho. // Quiero dar vos vida, provocar nuevos actos,/ y calculo por eso, con técnica que puedo./ Me siento un ingeniero del verso y un obrero/ que trabaja con otros a España, / a España a sus aceros. // No es una poesía gota a gota pensada,/ No es un bello producto. No es un fruto/ perfecto,/ es lo más necesario: lo que no tiene nombre. /Son gritos en el cielo, y en la tierra son actos.
Gabriel CelayaLa poesia es una arma cargada de futuro (Versão de Paco Ibañez)
  
(2)
Nasci em Maio, o mês das rosas, diz-se. Talvez por isso eu fiz da rosa a minha flor, um símbolo, uma espécie de bandeira para mim mesmo.
E todos os anos, quando chegava o mês de Maio, ou mais exactamente, no dia 12 de Maio, às dez e um quarto da manhã (que foi a hora em que eu nasci), a minha mãe abria a porta do meu quarto, acordava-me com um beijo e colocava numa jarra um ramo de rosas vermelhas, sem palavras. Só as suas mãos, compondo as rosas, oficiavam nesse estranho silêncio cheio de ritos e ternura.
Nesse tempo o Sol nascia exactamente no meu quarto. Eu abria a janela. Em frente era o largo, a velha árvore do largo dos ciganos. Quando chegava o mês de Maio, eu abria a janela e ficava bêbado desse cheiro a fogueiras, carroças e ciganos. E respirava o ar de todas as viagens, da minha janela, capital do mundo, debruçado sobre o largo onde começavam todos os caminhos.
E tudo estava certo, nesse tempo, ou, pelo menos, nada tinha o sabor do irremediável. Nem mesmo a morte da minha tia. Por muito tempo ela ficou nos retratos e no jardim, bordando à sombra das magnólias, andando pela casa nos pequenos ruídos do dia-a-dia, até que, pouco a pouco, se foi confundindo com as muitas ausências que vinham sentar-se na cadeira, onde, dantes, minha tia se sentava.
E eu dormia poisado sobre a eternidade, como se tudo estivesse certo para sempre, eu dormia com muitos olhos, muitos gestos vigilantes sobre o meu sono. Por vezes tinha pesadelos, acordava, inquieto, a meio da noite, qualquer coisa parecia querer despedaçar-se e então exclamava:
- Mãe!
E logo essa voz, tão calma, entrava dentro de mim, mandava embora os fantasmas, e era de novo o meu quarto, a doce quentura da minha casa no cimo da ternura.
Não havia polícia nesse tempo. Ninguém roubaria a tranquilidade do meu sono, ninguém viria a meio da noite para me levar, porque bastava eu chamar:
- Mãe!
E logo uma voz, tão calma, mandava embora os fantasmas. E era a paz, nesse tempo, em que todos os anos, quando chegava o mês de Maio, ou mais exactamente, o dia 12 de Maio, às dez e um quarto da manhã, a minha mãe abria a porta do meu quarto e colocava, religiosamente, um ramo de rosas vermelhas sobre a minha vida, nesse tempo, em que dormir, acordar, nascer, crescer, viver, morrer, eram um rito no rito das estações.
Em Maio de 1963 eu estava na cadeia. Por vezes, a meio da noite, um grito abalava as traves da minha cabeça, direi mesmo da minha vida, e eu acordava suado, dolorido, como se um rato (talvez o medo?) me roesse o estômago. E era inútil chamar. Onde ficara essa voz que dantes vinha repor o sono no seu lugar, repondo a paz dentro de mim? E as manhãs penduradas no mês de Maio, onde acordar era uma festa? Onde ficara a ternura? Onde ficara a minha vida?
Em Maio de 1963 eu estava na cadeia. Dormia – como direi? – acordado sobre cada minuto. Tinha aprendido o irremediável. Alguma coisa, dentro de mim, se despedaçara para sempre (para sempre? Que quer dizer para sempre?). Era inútil chamar. Tinha aprendido, fisicamente, a solidão. Embora na cela do lado, alguém, batendo com os dedos na parede, me dissesse, como se fosse a voz longínqua do meu povo:
- Coragem!
Eu estava, pela primeira vez, fisicamente só, dentro do meu sono povoado por esse grito que estalava por vezes as traves da minha cabeça (onde essa voz que mandava embora os fantasmas?).
E era terrível essa manhã sem manhã, essa realidade branca e gelada, toda feita de paredes, grades, perguntas, gritos. Mesmo que na cela do lado, alguém, batendo com os dedos na parede, me dissesse:
- Bom dia!
era terrível acordar nessa estreita paisagem com sete passos de comprimento por sete de largura, tão hostil, tão dolorosa como as regiões dos pesadelos. Porque acordar era ter a certeza de que a realidade não desmentiria o pesadelo.
Mesmo que os meus dedos batendo na parede transmitissem notícias dum homem que podia responder:
- Bom dia!
de cabeça erguida era terrível acordar no mês de Maio, com a certeza de que no dia 12 a minha mãe não entraria pelo meu quarto, deixando-me na fronte um beijo, e rosas vermelhas sobre os meus vinte e sete anos.
Talvez seja preciso renunciar à felicidade para conquistar a felicidade. Eu estava na cadeia em Maio de 1963. Tinha aprendido a solidão. Tinha aprendido que se pode gritar com todas as nossas forças quando se acorda a meio da noite com um grito na cabeça e um rato (talvez o medo?), roendo-nos o estômago, que ninguém, ninguém virá repor a paz dentro de nós. E, então, é a altura de saber se as traves mestras dum homem resistirão. Pois só a tua voz, amigo, responderá ao teu apelo torturado na noite. E, nessa hora (a mais solitária das horas), se conseguires cerrar os dentes, dar um murro na parede, acender um cigarro, se conseguires vencer esse encontro com a solidão no mais fundo de ti próprio, com que alegria, com que estranha alegria, na manhã seguinte, tu responderás:
- Bom dia!,
mesmo que seja terrível acordar no mês de Maio, nessa estreita paisagem, gelada e branca, com sete passos de comprimento por sete de largura.
É certo que se podem escolher outros caminhos. Mas poderia eu ter escolhido outro caminho? Acaso poderia dormir descansado, onde quer que estivesse, sabendo que algures, na noite, há homens que batem, há homens que gritam?
Os fantasmas tinham entrado no meu sono, invadiram a minha casa no cimo da ternura; os fantasmas eram donos do País. E se eles viessem de repente, a meio da noite, e eu chamasse:
- Mãe!
A voz (tão calma) de minha mãe já nada poderia contra eles. Era um trabalho para mim, uma tarefa para todos aqueles que não podem suportar a sujeição. Eu nunca pude suportar a sujeição. Acaso poderia ter escolhido outro caminho?
Por isso, em Maio de 1963, eu estava na cadeia, isto é, de certo modo, eu estava no meu posto. No dia 12 não acordei com o beijo de minha mãe.
Porém, nessa manhã (não posso dizer ao certo porque não tinha relógio, mas talvez – quem sabe? – às dez e um quarto, que foi a hora em que eu nasci), o carcereiro abriu a porta e entregou-me, já aberta, uma carta de minha mãe. E ao desdobrar as folhas que vinham dentro do sobrescrito violado, a pétala vermelha, duma rosa vermelha, caiu, como uma lágrima de sangue, no chão da minha cela.
Manuel AlegreRosas Vermelhas (in Praça da Canção)
 
(3)
Como lobos de súbito
irrompem na planície citadina
carregados de morte
Seu nome é violência
Trazem nas mãos mortíferos sinais
e de órbitas vazias
caminham em silêncio
envoltos na terrível solidão
do crime encomendado
Marginam as esquinas
escondem o rosto sob aço liso
dos negros capacetes
e anónimos ocultos
pela espessa cortina de ódio e névoa
como robots avançam
A morte engatilhada
espera o momento de partir Agora
Cumpra-se o ritual
Uma voz grita Viva
a liberdade O coro lhe responde
pontuados de tiros
Canalhas Temos fome
Arranquemos as pedras da calçada
Ó meu amor resiste
Resiste os olhos secos
Sem lágrimas Sem medo Só talhada
no sílex da ira
Pronta a dar corpo ao sonho
e entanto testemunha do martírio
companheira e amante
De mãos dadas cantando
abrimos flores às balas assassinas
merecemos a vida
Daniel FilipeComo lobos de súbito ( In Pátria Lugar de Exílio)
   

(4)
Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso.
É possível, porque tudo é possível, que ele seja
aquele que eu desejo para vós. Um simples mundo,
onde tudo tenha apenas a dificuldade que advém
de nada haver que não seja simples e natural.
Um mundo em que tudo seja permitido,
conforme o vosso gosto, o vosso anseio, o vosso prazer,
o vosso respeito pelos outros, o respeito dos outros por vós.
E é possível que não seja isto, nem seja sequer isto
o que vos interesse para viver. Tudo é possível,
ainda quando lutemos, como devemos lutar,
por quanto nos pareça a liberdade e a justiça,
ou mais que qualquer delas uma fiel
dedicação à honra de estar vivo.
Um dia sabereis que mais que a humanidade
não tem conta o número dos que pensaram assim,
amaram o seu semelhante no que ele tinha de único,
de insólito, de livre, de diferente,
e foram sacrificados, torturados, espancados,
e entregues hipocritamente â secular justiça,
para que os liquidasse «com suma piedade e sem efusão de sangue.»
Por serem fiéis a um deus, a um pensamento,
a uma pátria, uma esperança, ou muito apenas
à fome irrespondível que lhes roía as entranhas,
foram estripados, esfolados, queimados, gaseados,
e os seus corpos amontoados tão anonimamente quanto haviam vivido,
ou suas cinzas dispersas para que delas não restasse memória.
Às vezes, por serem de uma raça, outras
por serem de urna classe, expiaram todos
os erros que não tinham cometido ou não tinham consciência
de haver cometido. Mas também aconteceu
e acontece que não foram mortos.
Houve sempre infinitas maneiras de prevalecer,
aniquilando mansamente, delicadamente,
por ínvios caminhos quais se diz que são ínvios os de Deus.
Estes fuzilamentos, este heroísmo, este horror,
foi uma coisa, entre mil, acontecida em Espanha
há mais de um século e que por violenta e injusta
ofendeu o coração de um pintor chamado Goya,
que tinha um coração muito grande, cheio de fúria
e de amor. Mas isto nada é, meus filhos.
Apenas um episódio, um episódio breve,
nesta cadeia de que sois um elo (ou não sereis)
de ferro e de suor e sangue e algum sémen
a caminho do mundo que vos sonho.
Acreditai que nenhum mundo, que nada nem ninguém
vale mais que uma vida ou a alegria de té-1a.
É isto o que mais importa – essa alegria.
Acreditai que a dignidade em que hão-de falar-vos tanto
não é senão essa alegria que vem
de estar-se vivo e sabendo que nenhuma vez alguém
está menos vivo ou sofre ou morre
para que um só de vós resista um pouco mais
à morte que é de todos e virá.
Que tudo isto sabereis serenamente,
sem culpas a ninguém, sem terror, sem ambição,
e sobretudo sem desapego ou indiferença,
ardentemente espero. Tanto sangue,
tanta dor, tanta angústia, um dia
- mesmo que o tédio de um mundo feliz vos persiga -
não hão-de ser em vão. Confesso que
multas vezes, pensando no horror de tantos séculos
de opressão e crueldade, hesito por momentos
e uma amargura me submerge inconsolável.
Serão ou não em vão? Mas, mesmo que o não sejam,
quem ressuscita esses milhões, quem restitui
não só a vida, mas tudo o que lhes foi tirado?
Nenhum Juízo Final, meus filhos, pode dar-lhes
aquele instante que não viveram, aquele objecto
que não fruíram, aquele gesto
de amor, que fariam «amanhã».
E. por isso, o mesmo mundo que criemos
nos cumpre tê-lo com cuidado, como coisa
que não é nossa, que nos é cedida
para a guardarmos respeitosamente
em memória do sangue que nos corre nas veias,
da nossa carne que foi outra, do amor que
outros não amaram porque lho roubaram.
Jorge de SenaCarta a meus filhos sobre os fuzilamentos de Goya



[Villa+Algarve.JPG]

Antiga sede da PIDE/DGS vai ser museu da Resistência ao Colonialismo em Maputo
 Lusa, 15 de Janeiro de 2013.

A "Vila Algarve", antiga prisão da PIDE/DGS em Lourenço Marques, hoje Maputo, capital de Moçambique, vai ser transformada em Museu da Resistência ao Colonialismo Português, anunciou o Ministério dos Combatentes moçambicano.
O ministério abriu um concurso público para um projeto de restauro do edifício, situado na zona central da capital moçambicana, que se encontra abandonado há várias décadas, prevendo transformá-lo em museu.
Por aquela cadeia passaram inúmeros nacionalistas, na maioria membros da Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo) que, entre 1962 e 1974, desencadeou uma guerra de libertação contra o colonialismo português.
Entre os detidos mais famosos, contam-se o pintor Malangatana Valente e o poeta José Craveirinha, ambos já falecidos.

*


O meu pai escreveu este texto há já muitos anos atrás. Partilho-o aqui, na íntegra, palavra por palavra, sem medos de gente que já morreu e das verdades que tanta gente — como ele — guardou só para si.



Também nós portugueses, possuímos na nossa História de tortura e medo, uma Vila... no Chile de Pinochet era a Vila Grimaldi e no Portugal Colonialista de Salazar e Caetano era a Vila Algarve em Lourenço Marques, Moçambique.

E é necessário não esquecer.

A responsabilidade para com os nossos contemporâneos e as gerações vindouras força-nos a recorrer à memória, à materialização do passado. A memória condiciona os nossos actos presentes constituindo aprendizagem e experiência, assegurando assim a continuidade de um povo enquanto comunidade social e política.

Em Portugal, tal como no Chile, tem sido feito, muito lenta e subtilmente o branqueamento ou o olvido de momentos importantes da nossa história. E no entanto os povos necessitam recordar e conhecer os erros cometidos para que não se repitam.

Talvez outros "altos valores" se levantem para que se justifique o olvido, talvez as ideologias tenham morrido —, e a moral também.

Mas a PIDE existiu e torturou e seviciou e matou.

No dia 18 de Dezembro de 1961, tinha então 19 anos, fui preso pela PIDE e conheci então a Vila Algarve. No rés-do-chão muitas secretárias e agentes escrevendo à máquina e, num canto escondido, um pequeno compartimento com 11 ladrilhos de um lado e 18 de outro, e uma janela pequena que dava para um jardim, para as vivendas vizinhas na Av. Fernandes Tomaz. E não creio que os vizinhos da Vivenda Algarve não ouvissem os gritos de dor contida (porque cada grito era uma vitória da PIDE).

Aí comecei a conhecer a tortura da estátua sem dormir. Conheci a pancadaria, as toalhas encharcadas e enroladas, chicoteando-me. Os insultos à família, aos amigos, e a mim próprio, dos quais o menor não foi o de traidor à Pátria, anti-português, etc. Os calcanhares rebentaram pelo inchaço dos pés devido à acumulação de sangue por estar de pé. Mas também me deixavam sentar para comer. E também para me mimosearem com gotas de água quente e fria alternadamente na cabeça. Porque durante esses dias chegou ao conhecimento dos PIDES a confirmação da queda da GOA, a Índia Portuguesa, imaginem, o seu furor redobrou de intensidade.

Talvez porque quisessem passar um Natal em paz com as suas consciências, interromperam este período de interrogatório em 24 de Dezembro, véspera de Natal. Enviaram-me para uma cadeia da qual não recordo o nome (sei apenas que ficava próxima do Bairro Sommerchild).

Recordo: a Maria João Seixas que recentemente algures numa entrevista disse que não era uma mulher de coragem foi a primeira pessoa que me procurou na cadeia e enfrentou os guardas prisionais para que me entregassem 1 bolo (era dia de Natal) e algumas revistas. Mais tarde, observei no exterior da cadeia quem me procurava: o Fernando Carneiro (ex-jornalista de "A Capital", creio que agora funcionário do ICEP) e o Jorge Pais (já falecido); e o Sebastião "Cozinheiro", o Afonso Muxira, o Salomão Manjate e tantos outros, até que o privilégio de ter uma cela com vista para a rua me foi cortado por vias de novo interrogatório ou "visita" à Vila Algarve.

No dia 1 de Janeiro de 1962 recomeçaram as sevícias. Foram mais oito dias de tortura. Sem dormir. Com alucinações. Paredes que opavam. Que surgiam longínquas. Plenas de insectos. E pancada. Insultos. Traidor à Pátria. Simulacros de morte com uma pistola cujo percutir batia em seco. Pés inchados. Testículos quadruplicados de volume devido aos pontapés que me davam por detrás quando me encontravam no chão, enroscado sobre mim mesmo, na posição fetal. Durou oito dias este tormento.

Ainda em Janeiro, mas no fim do mês — não recordo a data — voltei a visitar a Vila Algarve. E tudo se repetiu. Mais oito dias. Cair no chão por sono, era punido com mais pancada. Encostar-me à parede, por cansaço, sono ou inconsciência, era punido com mais pancada. Cenas que se repetiam. O corpo já não me doía. Deixei de ouvir do ouvido esquerdo. Finalmente desistiram.

E que pretendia a PIDE obter com os seus interrogatórios?

Quem tinha sovado um informador (negro) deles no dia 16 de Dezembro. Fui eu, o Fevereiro e o Rui Nogar.

Quem me tinha escrito um discurso que pronunciei na Associação Africana em Novembro de 1961 em que advoguei a independência de Moçambique? Insistiam que tinha sido o José Craveirinha quando na realidade ninguém o escreveu... foi espontâneo.

Quem tinha escrito e divulgado vários panfletos na zona do porto de L.M. e na cidade de Carriço? Fui eu, Nogar, Jorge Pais, Fernando Cordeiro, Craveirinha.

Quem tinha "pinchado" o exterior e o interior do Liceu Salazar com palavras de ordem sobre a independência? Quem pertencia ao MODEMO (Movimento Democrático de Moçambique)? Qual a influência do Partido Comunista Português no Modemo? Que relações tinha eu com o MODEMO, o PCP e o COREMO (Comité Revolucionário de Moçambique)? Ainda não sei como me relacionaram com o COREMO pois éramos apenas 10 pessoas. Tínhamos assaltado (não matámos; apenas uma surra) duas patrulhas da PSP e roubado duas pistolas. E espalhado (poucos) panfletos em língua ronga na cidade de Carriço, que passei no copiógrafo do Cine-Clube de Lourenço Marques, do qual era sócio e colaborador com chave, o que me permitia acesso à noite.

Queriam saber as actividades políticas ou influências do MODEMO no Núcleo de Arte (de que era sócio) e no Cine Clube. Queriam saber quem me abrira as portas do jornal "A Voz de Moçambique" para que eu pudesse lá escrever. Queriam saber quem coordenava numa página no jornal "Notícias" escrita pela juventude denominada "O Despertar", sub-titulada "O Despertar da Juventude de Moçambique". Queriam saber, enfim, quais os meus contactos com o PCP e a Juventude Comunista quando ainda estava em Portugal.

Historiando um pouco, direi que o COREMO foi fundado por mim, pelo Cozinheiro Sebastião, por dois ex meus serventes, o Muvira e o Manjabe, ao qual se juntou depois um outro negro que trabalhava na Rádio Naval, natural de Manjacaze e que adoptou como pseudónimo. Tudo começou quando o meu patrão chamou preto ao cozinheiro Sebastião e ele respondeu: "Não me chame isso porque preto é carvão e carvão é uma coisa; eu não sou uma coisa, sou negro". Depois disso conversámos mais e avançámos. Depois da minha expulsão pouco mais sei. Que cresceu. Que se refugiou na então chamada Rodésia, hoje Zimbabwé. Não sei se conservou o núcleo original. Sei que mais tarde integrou a FRELIMO assim como outros movimentos; a FRELIMO era um aglutinador de vários partidos daí se chamar Frente de Libertação de Moçambique. Devido, porém, à demasiada sujeição da FRELIMO aos interesses soviéticos, a COREMO abandonou a frente; foi considerada traidora pela Frente mas a COREMO abriu uma nova zona de combate às tropas portuguesas na região de Tete enquanto a FRELIMO estava restrita ao Norte, província de Cabo Delgado. Quando estava na Bélgica em 1967, soube da morada deles, escrevi colocando-me ao dispor deles para o que fosse necessário, inclusive combater ou mesmo ser instrutor militar. Responderam-me com muita consideração mas objectavam que outros que não a direcção veriam mal um branco a combater ao lado deles, e que instrutores tinham chineses que eram suficientes. Mas que lhes podia ser útil na Europa para prestar apoio diplomático (de que estavam muito carenciados porque era enorme o peso da FRELIMO) e logístico (para auxiliar qualquer dirigente ou estudante de passagem pela Europa). Respondi imediatamente (duas vezes até) pedindo credenciais e notícias sobre o núcleo inicial e fiquei sem resposta. Hoje, ao que me consta, o COREMO não, ou pelo menos não concorreu às eleições que houve entretanto em Moçambique.

Finalmente recebi a visita de meus familiares. Não podia explicar-lhes a razão das crostas de feridas que tinha no rosto. Minha mãe, que em Novembro me tinha negado autorização para fumar, levou-me cigarros. Enquanto tive sinais de violência no corpo permaneci numa cela sozinho. Era grande a cela (4x4). Sabia que o Vergílio de Lemos estava também solitário na cela mas esta mais pequena (creio que 2x4). O Drº Agostinho Ilunga, que a polícia sul-africana prendeu em Durban a mando da PIDE, estava também solitário.

Depois (Fevereiro/Março de 1962), chegou uma grande vaga de prisioneiros naturais da região de Mocímboa da Praia, Palma, Montepuez, Ibo. Para resumir: de toda a região da etnia "muârm". Foram presos porque se juntaram na praia, a "coberto" de uma cerimónia religiosa maometana para festejarem a independência do então chamado Tanganica (creio que a 7 ou 9 de Dezembro de 1961). E, na prisão, se dormíamos quatro em cada cela de 4x4 metros, passámos a dormir 16, sem camas, no chão, sobre esteiras.

Com 16 pessoas na mesma cela era raro o dia em que um de nós não fizesse uma viagem até à Vila Algarve. O horror era o regresso quando víamos o estado físico e mental em que eles regressavam.

Ainda voltei mais vezes à Vila Algarve. Primeiro, para me obrigarem a assinar três depoimentos que eu teria feito durante os interrogatórios: ligavam-me ao José Craveirinha que me teria dado o discurso que espontaneamente pronunciara na Associação Africana; ligavam-me ao P.C.P. porque receberia ordens de Wagner Russel, ex-membro do Comité Central do P.C. então residente em Lourenço Marques, para imprimir certas directivas nas associações a que estava ligado ("Cine-Clube" e "Núcleo de Arte") e na página literária publicada no "Notícias", o "Despertar"; ligavam-me também ao Drº Almeida Santos (Oposição Democrática) por vias de uma entrevista que lhe fiz a propósito das eleições de Novembro de 1961 e da abolição do Estatuto do Indigenato que terá sido ou não publicada no jornal "República".

Recusei assinar qualquer um dos depoimentos. E houveram mais socos e pontapés. Mantive-me firme. Visitei outra vez a Vila Algarve para me encontrar com o meu advogado Drº Carlos Adrião Rodrigues. Era uma sala plena de sofás. Acolhedora. Repousante. Mas pouco ou nada falei com ele com receio de que estivessem à escuta. Ele é que pagou as despesas da conversação. Em resumo, disse-me que devido ao facto de estar preso há mais de 180 dias iria fazer um "habeas corpus"; que era a única coisa possível.

Dias depois, nova visita à Vila Algarve. Agora ao 1º andar. Que luxo. Tapetes. Porcelanas. Que luxo. Fui informado com toda a delicadeza que o Srº Sub-Director queria falar comigo. Mandaram-me enterrar num sofá. Esperei um pouco. Entrei num gabinete amplo, atapetado e muitas janelas. Aperto de mão que me foi difícil recusar e difícil aceitar — estava estupefacto.

E então, com palavras melodiosas, cativantes, surgiu o convite para que eu aceitasse integrar o quadro de informadores da PIDE.

Que me pagariam bem. O dobro do meu salário.
Que me arranjariam uma história plausível para apresentar aos meus amigos.
Que mais ninguém, na PIDE, teria conhecimento que eu era informador.
Que me arranjaria um pseudónimo.
Que só assinaria os recibos do meu trabalho com o meu pseudónimo.
Que só me encontraria com ele.
Que...
Que...

Enfim, todas as garantias de que poderia trair os meus amigos, e trair-me a mim próprio com a maior segurança.

Quando o primeiro enunciado da conversa foi feito, respondi logo que não... "mas espere, deixe-me acabar".
— "Porque se não aceitar esta proposta irá ser expulso de Moçambique e será entregue em Lisboa ao Tribunal de Aplicação de Penas onde é condenado pelo menos a 3 anos."
— "Abandonará a sua família. Não gosta da sua família? Sei que gosta bastante da sua irmã."

Enfim. Como os factores pecuniários e da segurança não funcionaram, o Srº Sub-Director dedicou-se à mais reles e baixa chantagem emocional e afectiva.

Mantive a recusa e o "homenzinho" verdadeiramente agastado reenviou-me para a prisão para eu pensar e que só me dava 8 dias. Na prisão fiquei 1 semana na solitária: "talvez para pensar melhor", sem a presença dos outros presos.

Inevitável. Mais uma visita à Vila Algarve. Na mesma sala atapetada do andar superior mas não tive direito ao aperto de mão nem convite para me sentar.

— "A minha posição continua a mesma. A resposta é não."

Talvez não tenha sequer pronunciado a palavra não. As bofetadas impediram-me. Socos. Pontapés. Os tapetes amorteceram-me a queda. O Srº Sub-Director não delegava noutros a tarefa de me bater. O Srº Sub-Director que na primeira conversa se mostrara tão humanitário e tão preocupado com a situação em que ficaria a minha família, deixou cair a máscara com uma simples palavra: "NÃO".

Depois de mais uma sessão de pancadaria desta vez infligida pelo Srº Sub-Director, regressei à prisão e nunca mais voltei à Vila Algarve.

Umas semanas depois fui expulso de Moçambique com a assinatura do Comandante Sarmento Rodrigues. Ainda tentei fugir no aeroporto. Impossível. Estava algemado e corri meia dúzia de passos. Os PIDES que me transportaram ao avião da Força Aérea Portuguesa queriam que eu fosse algemado no avião. Impô-se, porém, veementemente o Oficial que comandava o avião. Fui excepcionalmente bem tratado pela tripulação do avião mas, durante a escala em Luanda, a PIDE esperava-me e lá fiquei nas suas instalações um pouco mais de 24 horas incomunicável. Embarquei em Luanda e o avião fez nova escala técnica na Ilha do Sal. Também ali a PIDE me esperava e queria prender-me enquanto o avião lá estivesse (2 horas pelo menos). O Comandante da Força Aérea mais uma vez intercedeu por mim respondendo, obstinado, aos PIDE de que eu não teria hipóteses de fugir de uma ilha.

Chegando a Lisboa, na António Maria Cardoso, limitaram-se a assinar um auto em que me fixava a residência ao Concelho de Almada. Afinal, a entrega ao Tribunal de Aplicação de Penas e posterior condenação de 3 anos de prisão revelou-se um "bluff" do Srº Sub-Director da Vila Algarve.

Desde 1962 portanto que não visitei a Vila Algarve. Milhares de outros o fizeram. Milhares de outros ali foram torturados. Milhares de outros ali perderam a sua condição humana. E foi em nome do Povo Português que o fizeram. E foi em nome do Povo Português que se torturou José Craveirinha que escolheu precisamente o Português para literariamente se exprimir.

A Vila Algarve é uma vivenda que certamente muitos moçambicanos não esquecerão.

Mas bom seria que a Vila Algarve e o que lá dentro se passou chegue ao conhecimento dos portugueses e não caia no esquecimento.










             Antologia de textos editados no blogue Caminhos da Memória:
ENSAIOS


  • Pela História Oral (Maria Manuela Cruzeiro)
  • Que Fazer Com Tanto Passado? (Rui Bebiano)
  • Vocês o que estão para aí a dizer sobre o feminismo? (Ana Vicente)
  • Pior do que uma voz que cala é um silêncio que fala (Maria Manuela Cruzeiro)
  • 25 de Abril: Revolução ou Revolta? (Maria Manuela Cruzeiro)
  • 25 de Abril: Ruptura ou Continuidade? (Maria Manuela Cruzeiro)
  • 25 de Abril: Amnésia ou Mentira? (Maria Manuela Cruzeiro)
  • 25 de Abril: Euforia e Resignação (Maria Manuela Cruzeiro)
  • «Falar» na polícia (Diana Andringa)
  • 25 de Abril – O triunfo do imaginário (Maria Manuela Cruzeiro)
  • MFA – Herói colectivo (Maria Manuela Cruzeiro)
  • António de Spínola – O Herói Supletivo (Maria Manuela Cruzeiro)
  • Vasco e Otelo – A atracção dos opostos (Maria Manuela Cruzeiro)
  • Cunhal e Soares – Os «inimigos íntimos» (Maria Manuela Cruzeiro)
  • O combate pela dignidade na memória do Gulag (Rui Bebiano)
  • Costa Gomes – O Mal Amado (Maria Manuela Cruzeiro)
  • No Reino dos Falsos Avestruzes – Um Regresso Inadiável (Maria Manuela Cruzeiro): parte 1 – parte 2 – parte 3
  • Rever e desculpabilizar o Gulag (Rui Bebiano)
  • RDA ajuda a encontrar o rumo? (João Maria de Freitas Branco)
  • Vinte anos depois do muro (Miguel Cardina)
  • O vampirismo franquista (João Tunes)

    HISTÓRIA
  • O massacre judaico de Lisboa em 1506 (Jorge Martins)
  • O aparelho torcionário da PIDE/DGS (Irene Pimentel): parte 1 – parte 2
  • A situação das mulheres no século XX em Portugal (Irene Pimentel): parte 1 –parte 2
  • Breve tratado sobre relações de vizinhança (Paulo Pinto)
  • A cooperativa Pragma: uma bela história (Joana Lopes)
  • 18 de Janeiro de 1934 (Irene Pimentel)
  • 18 de Janeiro de 1934 em Coimbra (Irene Pimentel)
  • A vigília na Capela do Rato (João Miguel Almeida)
  • Há quarenta anos, uma vigília contra a guerra colonial (Joana Lopes)
  • PIDE, 25 de Abril de 1974, 21:00: o som (Joana Lopes)
  • Tarrafal – 29 de Outubro de 1936 (José Augusto Rocha)
  • In Memoriam Palma Inácio (José Augusto Rocha)
  • A propósito do 5 de Outubro: memórias de um dos seus heróis (Helena Cabeçadas)
  • Melo Antunes – A minha Homenagem (Maria Manuela Cruzeiro)
  • A questão mais incómoda da Guerra Colonial (João Tunes)
  • Conversas sobre Amílcar (Diana Andringa)
  • Para a memória dos crimes da PIDE: o crime das escutas, um julgamento que não se fez! (José Augusto Rocha)
  • «Lusitânia Quo Vadis?» (Joana Lopes)
  • Contributo para a história do sindicalismo docente (Helena Pato): parte 1 –parte 2 – parte 3

    ENTREVISTAS / TESTEMUNHOS
  • Entrevista a Francisco Martins Rodrigues (Miguel Cardina): parte 1 – parte 2– parte 3
  • Memória aos 80: conversa com Edmundo Pedro e Nuno Teotónio Pereira (Joana Lopes): parte 1 – parte 2 – parte 3
  • O regresso do Tarrafal (Edmundo Pedro)
  • CITAC ou a regra da excepção [entrevista a Ricardo Seiça] (Miguel Cardina)
  • O «Grupo dos 16» (Joana Lopes)
  • Viagem ao centro do mundo da Maria José e do Zé Luís (entrevista de Maria José Margado e José Luís Saldanha Sanches a Anabela Mota Ribeiro, Pública)
  • Uma lição de JoãoUma lição de João (adenda) [sobre João Martins Pereira](Rui Bebiano)
  • Brancos em Caxias, Pretos para o Tarrafal (Diana Andringa)
  • Um Natal na prisão de Caxias (José Hipólito dos Santos)
  • Prisão e Tortura – Dois Casos (Raimundo Narciso)
  • Do outro lado do Muro – Berlim / Praga 1967 (Helena Cabeçadas)
  • 27 de Janeiro de 1970 – relato de uma prisão atípica (Diana Andringa)
  • Naquela madrugada de 21 de Janeiro de 1965 (Artur Pinto)
  • Vinda de Humberto Delgado para dirigir o movimento de Beja (J. Hipólito dos Santos)
  • Guiné, 1969/71, do norte para o sul, com passagem pelo Comando-Chefe(João Tunes)
  • Memória Breve da História da Guiné (José Augusto Rocha)
  • O diabo à solta nas margens do Nango (José Pedro Barreto)
  • O «Paço do Duque» (Joana Lopes)
  • Quando sentei Delgado ao lado de Sandokan (João Tunes)
  • O enquadramento do fotógrafo cheio de piedade social (João Tunes)
  • Política e pertença (João Tunes)
  • Um bife na Brasileira do Chiado (Helena Pato)
  • Um, dois, três… vamos lá, outra vez! (Helena Pato)
  • Para umas formalidades no Paço do Duque (Helena Pato)

    QUE FORÇA É ESSA? (SOBRE MULHERES RESISTENTES)
  • Que Força é essa? [apresentação] (Maria Manuela Cruzeiro)
  • Maria Eugénia Varela Gomes (Maria Manuela Cruzeiro)
  • Maria Ângela Vidal Campos (Irene Pimentel)
  • Maria Natália Teotónio Pereira (Joana Lopes)
  • Fernanda Paiva Tomás (Diana Andringa)
  • Sofia de Oliveira Ferreira (Irene Pimentel)
  • Judith Cortesão (Manuel António Pina)
  • Aida Magro (Maria Manuela Cruzeiro)
  • Julieta Gandra (Diana Andringa)

    MEMÓRIA HISTÓRICA EM ESPANHA (POLÉMICA)
  • O historiador e o justiceiro (Rui Bebiano)
  • História e justiça (Irene Pimentel)
  • Memória e cidadania (Joana Lopes)
  • Garzón e o rosto dos vencidos (Miguel Cardina)

    CONTRIBUTO PARA A HISTÓRIA DO MES (por EDUARDO GRAÇA)
  • I Congresso do MES – algumas reflexões tardias
  • Criação e Extinção do MES – algumas reflexões tardias (II)
  • MES – Os dirigentes fundadores (I)
  • MES – Os dirigentes fundadores (II)
  • MES – O documento da ruptura do grupo de Jorge Sampaio no I Congresso (III)
  • MES – Os dirigentes eleitos no I Congresso (IV)
  • O discurso do MES silenciado no 1.º de Maio de 1974 – António Santos Júnior
  • MES – O II Congresso de Fevereiro de 1976 (I)
  • MES – Os dirigentes eleitos no II Congresso (II)
  • MES – Resolução da 8.ª reunião plenária do Comité Central
  • Breve resenha histórica da imprensa do MES (I)
  • Breve resenha histórica da imprensa do MES – o jornal «Esquerda Socialista» (II)
  • Breve resenha histórica da imprensa do MES – o jornal «Poder Popular» (III)

    DOSSIER «ELEIÇÕES 69»
  • As «eleições» e a guerra (João Tunes)
  • A extrema-esquerda e as eleições de 69 (Miguel Cardina)
  • Entrevista com José Tengarrinha (à Seara Nova) (Helena Pato)
  • Onde é que estavas a 26 de Outubro de 1969? (depoimentos dos redactores)
  • Evocação da CDE de Coimbra nas eleições legislativas de 1969
  • Vestígios da CDE (Artur Pinto)
  •  lusofonia.x10.mx

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