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quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

CANÇÕES DE RESISTÊNCIA E INTERVENÇÃO



A revolta que o sofrimento trouxe aos povos colonizados, a organização dos intelectuais africanos em Portugal e nas colónias e o apoio das forças progressistas em Portugal foram elementos que criaram condições para o começo das guerras de libertação em 1961.
Com a ratificação da Carta das Nações Unidas em 1945, que inseriu o direito de autodeterminação no âmbito do direito internacional e diplomático, ficaram criadas melhores condições para que das lutas dos povos colonizados resultasse o advento da independência. Foi o que aconteceu logo em 1945 com o Vietnam e o Cambodja na Ásia, assim como o Egipto e outros três estados no continente africano. Para o colonialismo português a independência do Paquistão e principalmente da India em 1947 trouxe consequências decisivas, desde logo com a tomada em 1954 de Dadrá e Nagar-Haveli, o mesmo acontecendo em 1961 com Goa e os outros estados da chamada India Portuguesa. Curiosa é a novela vivida por um dos fados mais conhecidos de Amália Rodrigues, BARCO NEGRO, com letra de David Mourão Ferreira.
Este fado começou por ter sido gravado por Maria da Conceição em 1954, com o título de MÃE NEGRA, escrito originalmente por "Piratini" (António Amabile) em 1943, onde se descreve o drama pungente de uma ama negra no tempo da escravatura, com música composta por "Caco Velho" (Matheus Nunes)

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Enquanto a chibata
Batia em seu amor
Mãe preta embalava
O filho branco do sinhô

Esta versão portuguesa foi um êxito colossal, que as rádios tocavam sem cessar e as pessoas cantarolavam e assobiavam por todo o lado. Até que, de repente, a Mãe Preta deixou de se ouvir nas rádios. Consta que terá existido pressão do governador de Goa por temer que viesse a agravar a tensão que então se vivia por aquelas paragens...
Em 1956 Amália retoma o êxito, agora com David Mourão Ferreira a substituir o sofrimento negro pelo da companheira do pescador
Eu sei, meu amor,
que nem chegaste a partir,
pois tudo em meu redor
me diz que estás sempre comigo
Sem dúvida que a vida de Amália se deixava muitas vezes levar pelos ditames do coração. Ainda em 1953 cantava, com letra de Reinaldo Ferreira, filho do célebre jornalista Reporter X
No conforto pobrezinho do meu lar, há fartura de carinho.e a cortina da janela é o luar, mais o sol que bate nela...
Em 1961, também com letra de David Mourão Ferreira, cantava Abandono, mais conhecido pelo Fado de Peniche, onde se lembravam lutadores pela liberdade encerrados junto ao mar, ano em que Álvaro Cunhal e outros onze dirigentes comunistas fugiram do Forte de Peniche

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Por teu livre pensamento
Foram-te longe encerrar.
Tão longe que o meu lamento
Não te consegue alcançar.
E apenas ouves o vento
E apenas ouves o mar.
Levaram-te, a meio da noite:
A treva tudo cobria.
Foi de noite, numa noite
De todas a mais sombria.
....
Como já referimos, durante os finais dos anos 40 e até finais de 50 começaram a chegar à "Metrópole" intelectuais africanos que ao conhecerem movimentos como a Negritude cimentaram posições ideológicas que vieram a dar origem às lutas de libertação. Esses estudantes juntavam-se em residências universitárias onde os ideais nacionalistas eram aprofundados, sendo disso exemplos em Lisboa a já referida CEI e em Coimbra a República dos Mil-Y-onários, onde "nos deleitava-mos com poemas de intelectuais angolanos, cabo-verdianos e de outras paragens e embalávamo-nos ao som de músicas de resistência como MUXIMA, SEIS ONE NA TARRAFAL, FIDJO MAGOADO, MINDJER DI PANO PRETO, BIRIM-BIRIM e outros temas de Liceu Vieira Dias que denunciavam a repressão colonial... a nossa proximidade com a República Kimbo dos Sobas, onde viveu Agostinho Neto quando estudou em Coimbra, fundamentalmente constituída por angolanos não era meramente física - pois escassos metros nos separavam -, mas, essencialmente política.", nas palavras do Presidente de Cabo Verde Jorge Carlos Fonseca em visita a Luanda no ano de 2013.
Estes intelectuais africanos cantavam a revolta dos negros explorados, exprimindo nos seus poemas ou canções a dor da "Mãe África" e a necessidade de libertação. Porém, nem sempre as palavras denunciavam claramente injustiças ou apelavam à luta, pois simples músicas tradicionais africanas, como MUXIMA, podiam transformar-se em empolgantes hinos de resistência, quando as circunstancias para isso contribuíam ou impeliam.
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Bem sabemos como canções que apenas cantam a paz se tornam revolucionárias quando cantadas em tempos de guerra injusta ( se a guerra for de libertação já o apelar à paz terá significado bem diferente...)!
Começámos estas linhas referindo que a balada MENINO DO BAIRRO NEGRO, composta e interpretada em 1963 por José Afonso e onde se retratava a pobreza num bairro do Porto, pode ser considerado o primeiro tema a denunciar a exploração do negro depois do inicio da guerra da guerra colonial. Todavia, nesse mesmo ano, Adriano Correia de Oliveira grava Menina dos Olhos Tristes, com poema que o já mencionado Reinaldo Ferreira terá escrito tendo por horizonte a 2.ª Guerra Mundial mas que exercia o mesmo efeito mobilizador. Surge então pela primeira vez canção onde o tema da guerra - e portanto, no contexto português da altura, sobre da guerra colonial - é mencionado, embora indirectamente
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Menina dos Olhos Tristes, O que tanto a faz chorar? -O soldadinho não volta
Do outro lado do mar


Mesmo uma composição puramente instrumental pode ser "de intervenção" quando acompanhado de texto introdutório que concretiza a intenção da obra. Em 1963 Fernando Lopes Graça compôs a suite de 21 peças COSMORAME, autentico memorial à fraternidade dos povos onde Portugal e Moçambique são colocados em pé de igualdade, como povos fraternos, e onde inscreve na partitura a citação do Telémaco de Fénélon, escritor francês do séc. XVII: "Tout le genre humain n’est qu’une famille dispersée sur la face de toute la terre. Tous les peuples sont frères, et doivent s’aimer comme tels. Malheur à ces impies qui cherchent une gloire cruelle dans le sang de leurs frères, qui est leur propre sang". Eis uma posição diametralmente oposta à do compositor Joly Braga Santos, que, ao integrar elementos músicais dos marimbeiros de Zavala, colhidos em Moçambique como se existe respeito pela cultura local, na sua Sinfonia n.º 5, VIRTUS LUSITANIAE (1966) – uma obra encomendada pelo Estado Novo, também em plena guerra colonial –, acolheu o ponto de vista oficial do regime, mascarando o caracter invasor da presença portuguesa.
Referindo Lopes Graça torna-se indispensável lembrar as suas CANÇÕES HERÓICAS/ CANÇÕES REGIONAIS PORTUGUESAS, cuja primeira versão surgiu em em 1946. São canções politicamente empenhadas que respeitando as tradições culturais populares contribuíram para exaltar a liberdade e dar força a todos aqueles que lutavam contra o antigo regime. Acabaram por ser apreendidas pela Censura o que impossibilitou que os poemas continuassem a ser ouvidos e interpretados em espectáculos ou sessões públicas, designadamente no âmbito do Movimento de Unidade Democrática (MUD), não impedindo contudo que continuassem a ser cantadas em encontros clandestinos ou em países onde os resistentes se encontravam exilados.
Quantas vezes este tradicional do Douro Litoral não terá mobilizado antifascistas na denuncia do regime colonial!

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Os homens que vão para a guerra Vão para a guerra, vão morrer; Diz adeus a pai e mãe. Que vos não torno a ver. Os homens que vão para a guerra, Vão para nunca mais voltar; Diz adeus a pai e mãe. Que vos não torno a abraçar."
Mas foi com Luis Cilia, estudante nascido em Angola e que na Casa dos Estudantes do Império contactou com intelectuais africanos como Daniel Filipe, que em 1964 surgiram os primeiros temas claramente contra a guerra colonial, em álbum editado em França com o título 1964: PORTUGAL-ANGOLA: CHANTS DE LUTTE (editado pela Le Chant Du Monde), evidentemente sem edição em Portugal antes do 25 d Abril. Curiosamente, Luis Cilia viria mais tarde a ser também autor dos Hinos do PCP AVANTE! e da CGTP - Intersindical, neste caso ao recuperar uma canção do séc. XIX alentejana cpor ocasião das lutas civis da Patuleia e Maria da Fonte que depois a Intersindical pegou "com letra adaptada por Mario Vieira de Carvalho.
A BOLA
Soldados
Jogam
Futebol
Com a bola
Que pula
Sangrando
No chão
De Angola.
......
No solo
A cabeça
De um negro
Sangrando
Que rola
No chão
De Angola
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Este poema de uma crueza chocante e quase excessiva do poeta açoreano Jonas Negalha define bem o conteúdo do álbum, denunciando os tormentos da guerra, focando horrores que mais tarde António Lobo Antunes voltaria a pegar em diversos dos seus livros.
Com palavras de Daniel Filipe, Manuel Alegre, Rui Namorado, António Borges Coelho, Geraldo B. Victor, José Gomes Ferreira (que parece não ter ficado muito agradado com o produto final) e do próprio Luis Cilia, também autor de todas as músicas, as canções deste álbum vão-se sucedendo no retrato da guerra que lá longe matava ou estropiava jovens portugueses e africanos!
CANTO DO DESERTOR
Diz, oh mar, à minha mãe,
Que matar não me apraz
No fundo quem vai à guerra
É aquele que a não faz.
Vou cantar a Liberdade,
Para a minha Pátria amada,
E para a Mãe negra e triste
Que vive acorrentada.
(Luis Cilia)

Ainda em 1964 Adriano Correia de Oliveira grava Canção com lágrimas, com poema de Manuel Alegre, um dos primeiros dos muitos temas sobre a guerra colonial que a colaboração entre os dois iria possibilitar
Porque tu me disseste quem em dera em Lisboa ?Quem me dera me Maio depois morreste ?Com Lisboa tão longe ó meu irmão tão breve ?Que nunca mais acenderás no meu o teu cigarro
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Em 1968 Marcelo Caetano sobe ao poder mas a ilusória "primavera marcelista" poucos resultados produz. Assiste-se a uma aparente liberalização do regime, que algumas editoras discográficas como a Orfeu, perante o sucesso de vendas que alguns cantadores vinha conseguindo, aproveitam para arriscar um pouco mais nas letras que lhes são propostas. Será o caso de AVENIDA DE ANGOLA que José Afonso inclui no álbum TRAZ OUTRO AMIGO de 1970 onde se denunciava, por imagens que fugiam à censura, a exploração sexual de mulheres e crianças no Sul de Moçambique, onde os brancos sul-africanos pagavam para ter sexo com mulheres negras, pois tal era proibido na África do Sul.


Mas a verdade é que a repressão sobre os defensores da liberdade até terá aumentado, existindo depoimentos e estudos que comprovam que, por exemplo, a tortura dos presos políticos se tornou mais violenta durante o Governo de Marcelo Caetano. Também neste casos a música ajudou a resistir, sendo conhecido, entre muitos outros, o caso da RONDA DOS SOLDADINHOS, gravada em França em 1969 por José Mario Branco, que ao soar repetidamente na cabeça dos presos, hipnóticamente
Um e dois e três
Era uma vez um soldadinho
De chumbo não era

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ajudava a resistir aos interrogatórios que se prolongavam por dias e semanas, com torturas do sono, da estátua, espancamentos e tantos outros martírios. Cantavam calados e assim iam ganhando forças para não denunciar companheiros ou divulgar informações sobre as formações políticas a que pertenciam:
Os senhores da guerra
Não matam
Mandam matar
Os senhores da guerra
Não morrem
Mandam morrer
Mas o soldadinho?percebeu?que esses senhores?mandam a guerra?contra os seus?irmãos de cor.
Até ao dia 25 de Abril muitas seriam as composições que contribuíram para abalar o regime ditatorial e colonial, desde grupos pop como o Quarteto 1111 de José Cid com LENDA DE NAMBUANGONGO e PIGMENTAÇÃO, O Conjunto de João Paulo que pela voz de Sérgio Borges, a cumprir serviço militar em Mafra, levemente sugeria existir entre a juventude medo da guerra e vontade de desertar (álbum O SALTO), passando pelo angolano Ruy Mingas e o seu Birim-Birim que já mobilizara estudantes africanos em Coimbra, como referimos. José Niza, mobilizado em Angola, compõe diversos temas com poesia de António Gedeão, entre eles a conhecida Lágrima de Preta
......
Nem sinais de negro,
nem vestígios de ódio.
Água (quase tudo)
E cloreto de sódio.

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.......
Caso que merece alguma referência, pela curiosidade que representa, é o da canção MARCOLINO incluída por Fausto no seu álbum PRÓ QUE DER E VIER de 1974, onde parte das músicas foi gravadas a 17 de Abril em Madrid e as restantes, onde se inclui MARCOLINO, em Lisboa em Outubro do mesmo ano.
Que Fausto era um admirador dos Beatles desde o seu tempo dos Rebeldes em Angola, não será novidade, mas que essa admiração pudesse chegar a que o nosso MARCOLINO não passasse de uma colagem, com uma ou outra alteração, da faixa UNCLE ALBERT/ADMIRAL HALSEY que Paul Mccartney incluiu no seu álbum RAM de 1971 talvez poucos tenham notado. O tema de Mccartney evoca o fim dos Beatles, juntando diversas composições suas dispersas e não gravadas. Vale a pena ouvir e comparar, a estrutura é praticamente a mesma, houve uma pura transposição das ideias de um para o outro.
Contam-se as aventuras e desventuras da nação portuguesa......

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Ô Marcolino, das longas viagens. Diz Marcolino se outra vida tiveste. O que fizeste, o que te fez mudar?
"Já fui camponês, soldado. E a vida foi sempre igual. Insultei patrões, oficiais. E nunca me senti mal. Ganhava pouco, fome de cão. E enchia a pança aos canibais e ainda encho. Fui sempre indisciplinado, pois claro. Que outra coisa posso ser então?"
.......

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Aproveitamos esta pequena rábula para lembrar que Paul Mccartney, que não foi propriamente um cantor de intervenção, grave um tema que chegou a ser proibido na Grã-Bretanha, GIVE IRELAND BACK TO THE IRISH: "it was the first time people questioned what we were doing in Ireland. It was so shocking. I wrote 'Give Ireland Back to the Irish', we recorded it and I was promptly 'phoned by the Chairman of EMI, Sir Joseph Lockwood, explaining that they wouldn't release it. He thought it was too inflammatory. I told him that I felt strongly about it and they had to release it. He said, 'Well it'll be banned', and of course it was". O mesmo Mccartney também escreveu o hino anti racista IBONY AND IVORY e denunciou o machismo em MISTRESS AND MAID, bem como a composição SILLY LOVE SONGS onde pergunta "What´s wrong with that?". A verdade é que se apenas tivesse gravado silly love songs, e talvez não tenham sido assim tão poucas, nada estaria a contribuir para para melhorar a sociedade...
Gradualmente a consciencialização da necessidade do fim do fascismo e da guerra foi aumentando, designadamente no interior das forças armadas, e para isso muito contribuiu o papel mobilizador das músicas com conteúdo progressista, chegando mesmo a servir de sinal para "reunir tropas": lembramos que uma das senhas para a operação militar do dia 25 de Abril foi a GRÂNDOLA VILA MORENA, escolhida, segundo alguns testemunhos, durante o I Encontro da Canção Portuguesa no Coliseu dos Recreios em Março de 1974.
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Bem representativo desta evolução revolucionária entre os militares foram os chamados cancioneiros militares, como o de Mueda ou o mais conhecido CANCIONEIRO DO NIASSA, surgidos em Moçambique em finais da década de 60. São versões de canções então em voga em Portugal, onde os militares portugueses encaixam letras adaptadas à realidade local, dos VAMPIROS de José Afonso ao ZÉ CACILHEIRO de José Viana, passando pela JULIA FLORISTA de Max e muitos outros.
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Veja-se este FADO DO TURRA, versão dum qualquer Fado Corrido, onde o soldado português se coloca no lado do "inimigo" e comenta o exército agresso
Se, de mim, nada consegues, Não sei porque me persegues, constantemente, no mato. Sabes bem que eu sou ladino, Que tenho um andar muito fino E que escapo como um rato.
Lá porque és branco e pedante, (Pretendes) Não podes ser arrogante, Por capricho e altivez. Eu, que tenho sido pobre, Mas que tenho a alma nobre, Talvez te lixe, de vez.
Como ando sempre ALERTA, Tua arma não me acerta, Nem me deixa atrapalhado; E assim, num breve instante, Por mais que andes vigilante, Tu serás, sempre, emboscado.
Por isso toma cuidado E não me venhas com teu fado, Dizer que “branco é melhor”; Eu, já muito codilhado, Estou sempre desconfiado. Irás desta, p’ra melhor.

O Canto de Intervenção portuguesas antes, durante e as ex-colónias e depois da guerra colonial


2.  A música como forma de intervenção em Portugal até ao início da guerra colonial
O Canto de Intervenção e as ex-colónias portuguesas antes, durante e depois da guerra colonial
Adriano Correia de Oliveira e Rui Mingas

Como já referimos, a denuncia da condição do negro explorado foi um dos primeiros alvos do Canto de Intervenção, mas evidentemente que este e outros conteúdos denunciadores de injustiças desde sempre foram cantados pelo povo: a arte a cumpre o seu papel quando emana do povo ou se identifica com as suas aspirações.
  Desde a conquista de Ceuta em 1415 até "à perda" do Brasil em 1822 que se foi criando em Portugal uma certa ideologia imperialista que a libertação do domínio espanhol em 1640 consolidou nesse imaginário. A independência do Brasil e o fim do efémero Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves fez retomar África como um "renascer das cinzas", incrementando o protagonismo de missionários e viajantes-exploradores, sendo consequência a fundação em 1875 da Sociedade de Geografia de Lisboa.
Quando em 1890 a Grã Bretanha apresenta o Ultimatum a Portugal, concretizando tensões que considerava existir nos territórios africanos sob a sua protecção, exigindo a Portugal a retirada das forças militares chefiadas pelo major Serpa Pinto do território compreendido entre as colónias de Moçambique e Angola, surgiram protestos que correntes progressistas portuguesas aproveitaram para criticar a monarquia. Guerra Junqueiro, cujas poesias muito ajudaram na criação do ambiente que conduziu à República, escrevia na ODE À INGLATERRA
Ó cínica Inglaterra, ó bêbeda impudente, ?Que tens levado, tu, ao negro e à escravidão? ?Chitas e hipocrisia, evangelho e aguardente, ?Repartindo por todo o escuro continente ?A mortalha de Cristo em tangas d'algodão.
Estes versos, que embora insuflados de patriotismo já anunciam uma visão anti-colonialista, eram cantados na rua enquanto os populares cobriam a estátua de Camões com fitas pretas em sinal de luto. A esta humilhação juntavam-se a pobreza e dor trazidas pelas invasões napoleónicas, tendo surgido um profundo movimento de descontentamento social que implicava directamente a família reinante e que se foi reflectindo no conteúdo das operetas e teatro de revista, nas modinhas de influencia brasileira, nos diversos tipos de marchas e outras composições populares, surgindo casos muito interessantes e significativos como o Fado Operário.
Entretanto, já desde inícios do sé. XIX se tentava pacificar a revolta indígena contra a ocupação estrangeira, em certa medida o verdadeiro começo das lutas de libertação, com as chamadas "campanhas de pacificação", que se tornaram mais evidentes com a necessidade de afirmação da soberania. Neste ambiente tenso e militarista surgem canções de protesto onde se critica a intervenção militar e a intenção de "civilizar os pretos".
A partir de um mote nacionalista escrito pelo poeta Jorge Silvestre que glorificava a vitória de Alves Roçadas sobre a revolta dos Cuamatos em Angola em 1907
A bandeira portugueza
Triunfou mais uma vez
Mostrando assim quanto vale
O soldado portuguez
Avelino de Souza, tipógrafo, poeta popular e uma das figuras fundamentais na defesa e legitimação do fado nas primeiras décadas do século XX, inclui na sua colectânea A Minha Guitarra o poema DESFAZENDO, onde "é relevante sublinhar a forma como esta denúncia se fundamenta, como é característico de todas as ideologias revolucionárias na entrada do séc. XX, na crença inabalável no principio do progresso histórico contínuo e impagável" conforme se lê em Fados para a República de Rui Vieira Nery
Estas e outras bravatas
Impingem os patriotas
Ao ref´rirem ás derrotas
Sofridas p´los cuamatas
Os auctor´s de tal crueza...
Mas eu digon, com tristeza.
-- Pois, patriota não sou --
Mais uma vez se manchou
A bandeira portugueza
......
E dizem eles, "que vão
Os pretos civilizar"!
Só se matar e roubar
É que é Civilização!
No sec´lo da evolução,
Que é da Sciencia o fanal,
Tal victoria é imoral
Triunfo do morticinio...
É o legal assassínio
Mostrando assim quanto vale
O preto não é julgado
Um homem igual a nós!
Quando o branco é que é f´roz
Selvagem auctorisado
.....
Cabe também aqui referir que um dos primeiros registos de fado de que há conhecimento foi O SOLDADO PORTUGUÊS, gravado em 1902 no Brasil por Baiano ( Manuel Pedro dos Santos) e acompanhado apenas de um violão, onde se descreve a vida no quartel
Não há fado mais cruel
Nem viver mais desgraçado
Do que a que passa no quartel
O infeliz do soldado
Sublinhe-se que a primeira gravação feita em Portugal é CANTOS DO MINHO, pertencente à Banda da Guarda Municipal do Porto, datada de Outubro ou Novembro de 1900 e descoberta "por acaso" por José Moças, investigador e director da Editora Tradisom, que muito tem contribuído para a divulgação e preservação do registo de música tradicional portuguesa.
Este e muitos outros exemplos de "fados de intervenção" pertencem ao que se designou por "Fado Operário", que entre finais do séc. XIX e a década de 30 do séc. seguinte representou uma das formas mais populares de critica política, económica e social. É matéria muito interessante, que não cabe aqui aprofundar, mas onde princípios ideológicos progressistas como o anarquismo e o socialismo e mesmo mais tarde o comunismo, eram claramente manifestados. Daremos apenas mais alguns exemplos, sublinhando a ligação do fado e de alguns fadistas às estruturas partidárias que mais cedo se apresentaram consequentemente anticolonialistas.
Lembremos que até ao início da guerra em Fevereiro de 1961 não era evidente o apoio da maior parte das forças democráticas à independência das colónias. Tomemos o exemplo do republicano Ramada Curto, que mesmo depois de ter aderido ao Partido Socialista Português (não confundir com o Partido Socialista de Portugal, surgido em 1973) continuava claramente a apoiar a presença colonialista, apesar de escrever em 1927 quadras marcadamente progressistas como estas do FADO SOCIALISTA em 1927, que veio evidentemente a ser proibido
Gente rica e bem vestida
P´ra quem a vida é fagueira
Olhem qu´existe outra vida
N´Alfama e na Cascalheira
Mas um dia hão-de descer
Os lobos ao povoado...
Vai ser bonito de ver
Não verá quem não viver
Era também o caso de Norton de Matos, que na sua candidatura à Presidência da Republica em 1949 mobilizou toda a oposição ao regime totalitário e que também era defensor da política colonialista.
Mesmo oposicionistas como Mario Soares, Francisco Salgado Zenha, Fernando Piteira Santos e outros, no Programa para a Democratização da República que elaboraram em 1961, não vão mais longe que meras reivindicações para desenvolver política, social e economicamente o Ultramar: "Parte-se da afirmação de princípio de que o esquema das relações Metrópole - Ultramar, repudiando qualquer manifestação de imperialismo colonialista, subordinar-se-á ao objectivo de assegurar os direitos fundamentais dos povos no plano político, económico, social e cultural. Por consequência, um tal esquema visará a imediata institucionalização da vida democrática, sem discriminação racial ou política, para todos os territórios e todos os povos, tirando da autenticidade do funcionamento das instituições democráticas todas as consequências morais, económicas e políticas. (...)"
A força progressista que mais consequentemente evoluiu na compreensão da realidade colonialista foi o Partido Comunista Português, que em 1957 no seu V Congresso assumiu assumiu claramente "o reconhecimento incondicional do direito dos povos das colónias de África dominadas por Portugal à imediata e completa independência". Para esta clara tomada de posição muito contribuiu o contacto com intelectuais africanos que estudavam em Portugal, como Lucio Lara, Agostinho Neto, Viriato Cruz e muitos outros.
Repare-se que logo em Novembro de 1923, no Programa de Acção apresentado ao I Congresso, se defendia uma política mais consequente com a realidade, ao afirmar: "O PCP dará todo o apoio às ligas, associações, partidos, etc., que tenham por fim a defesa da população das colónias portuguesas contra todas as extorsões capitalistas e estatistas. Defenderá as reivindicações de ordem política ou económica das colónias, combatendo as formas ainda existentes de escravidão mascarada". Neste congresso os guitarristas Armandinho e Georgino de Sousa, bem como Martinho d´Assunção (pai), o chamado poeta vermelho e um dos fundadores do PCP e que terá sido autor do FADO LENINE e colaborador em várias publicações jornalísticas no universo da Música Popular e publicações do movimento operário, como 'Canção de Portugal' e 'Guitarra de Portugal', 'Revolta', 'Bandeira Vermelha' ou 'Voz do Operário', executaram variações de fado num jantar de homenagem ao representante da Internacional Socialista. Não se estranha portanto que em artigo do jornal Avante! de 1937 se faça a apologia do "Fado quando é feito por operários e que encerra as suas aspirações ou conta os seus sofrimentos, enquanto que o regime o defende quando ele se converte no intento de defesa e propaganda do fascismo". E continua: "Ontem, era apenas descritivo da sua miséria fatalista, como cego a quem falta um guia. Hoje é mais forte, mais violento, com mais acentuado cunho social".
No mesmo sentido vem o chamado Fado Operário do Alentejo onde em 1954 o viúvo de Catarina Eufémia cantava, "numa taberna lá do fundo", o canto "EU VI PARTIR DE ABALADA", escrito em 1944, explicando que "nessa altura na URSS vivia-se bem, agora está mais complicado, mas então era bom"
Eu vi partir de abalada
Um amigo que era aquele
...
Tive a semana passada
Uma linda carta dele
E na qual me dizia assim
Amigo segué feliz
Onde estou eu não te esqueço
Cheguei a este país
Onde a vida nos parece
Muito mais que paraíso
Aqui há pão há trabalho
.....
retirado de O Fado Operário do Alentejo" de Paulo Lima, editado pela Tradisom em 2004.
Mas, como referimos, nem sempre a mensagem que se transmite é progressista, o papel social da arte depende dos valores que integram o seu conteúdo. Continuando a pegar no exemplo do Fado e voltando às chamadas "campanhas de pacificação", veja-se o Fado do Gungunhana, de Esculápio, onde se canta a vinda para Lisboa do Régulo Gungunhana, depois de ter sido preso em 1896 em Moçambique
.....
Em casa nu e sem parra
a esfrangalhar n´uma cana
durante toda a semana
se ouvirão os meus cantares
Hei-de levar ao Tavares
As pretas do Gungunhana
......
Mais a negra crafaria
A dançar na Mouraria
O Lundim com dois pretos
A vender alconomia
Reparemos agora neste exemplo retirado do Cancioneiro Minhoto de Gonçalo Sampaio, publicado postumamente em 1940, onde de novo se retrata Gungunhana de forma jocosa
.....
O rei preto Gungunhana
É parente de Jacó
Homem de sete mulheres
Agora nem uma só
Estes são dois casos onde se transmite a ideologia oficial, apresentando Gungunhana e os negros em geral como alcoólicos e mulherengos, assim demonstrando a sua incapacidade para "se civilizarem" sem a ajuda dos brancos. A imprensa operária afasta-se desta utilização pelo regime do que talvez possa ser considerado um dos marcos pré-guerra coloniais mais nítidos na luta pela libertação de Moçambique.
Esta ridicularização do negro (bem como dos ciganos, mouros e judeus) já se podia encontrar em Gil Vicente, que apesar de ter tido diversas peças censuradas, era bem recebido na corte tendo chegado a organizar festas no palácio. Para melhor descrever as suas personagens trouxe para o seu teatro música de índole popular, bem como música mais do agrado da corte, utilizando repertório corrente na Península Ibérica nos finais do séc. XV e primeira metade do XVI, criticando apenas aspectos sociais menores e apoiando no essencial a ideologia dominante, o que faz lembrar certos comentadores actuais...
Exemplo disso encontra-se na peça A FRÁGUA D´AMOR, onde encena o discurso que foi criado para o africano: a imagem do folgazão e namoradeiro que por mais que tente não consegue fugir ao estatuto de inferior ao homem branco
Já mão minha branco estai,
E aqui perna branco he,
Mas a mi fala guiné:
Se a mi negro falai,
A mi branco para que?
Se fala meu he negreçado,
E não fala Portugas,
Para que mi martelado?

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