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sexta-feira, 24 de junho de 2011

A Inércia do Quotidiano

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Rara será a existência que actualmente se não deixe balouçar ao sabor das correntes, cada hora impelida a um rumo diferente pela última notícia que se leu ou pela última conversa que se teve. Sem fim a que aponte, a alma da maioria dos homens flutua na vida com a fraca vontade e a gelatinosa consistência das medusas; um dia se sucede a outro dia sem que o viver represente uma conquista, sem que a manhã que renasce seja uma criação do nosso próprio espírito e não o fenómeno exterior que passivamente se aceita e que por hábito nos impele a um determinado número de acções; desfez-se a crença em que o mundo é formado pelo homem, em que o reino de Deus terá de ser obtido, não como uma dádiva dependente do arbítrio de um ente superior, mas como a paciente, firme, contínua construção dos seus futuros habitantes. 


















Daí a facilidade das entregas aos que ainda aparecem com dedos de escultor, daí os desânimos e as indiferenças, daí o supor-se que apenas surgimos no mundo para nos garantirmos, diariamente, um almoço, um jantar e uma casa; perdem-se as almas nas tarefas inferiores do existir, nenhuma grande aspiração de beleza, de liberdade e de amor guia através das noites obscuras e dos cerrados nevoeiros aqueles mesmo que nasceram mais fortemente desprendidos das animalidades primitivas.


Há como que o prazer da desordem, da irresolução, do pensamento confuso; quase se tornou censurável marchar com a regularidade dos astros, divinizou-se o acto imprevisível e o gesto que vem contrariar o do momento anterior; ninguém pára um instante para reflectir, coordenar as ideias, eliminar as que se mostram incapazes de em acordo se ligarem ao que de seguro ficou estabelecido. 


















A fala medida e o silêncio que fazem possível o diálogo e pelo diálogo a viagem aos bordos mais longínquos do universo cederam o lugar a um discurso plural que deve ser aos ouvidos de Deus como zumbido importuno de insecto que teima em passar através da vidraça; quebra-se a barreira ateniense da harmonia e a barreira espartana da vontade e dá-se livre curso aos ímpetos, aos repentes, aos caprichos; troca-se o manso fluir dos grandes rios, a ondulação poderosa e calma do mar largo pelos cachões e as espumas das correntes que se entrechocam e batem. 


Que loucura vos tomou, meus irmãos homens? Urge que apeeis o Acaso do lugar divino que lhe destes, que lanceis, como diques e caminho da vida, as fortes linhas da inteligência ordenadora e da vontade, que acima de tudo se habitue a vossa alma a construir a existência com a pureza, o nítido recorte e a querida abstenção da estrofe de um poema.

Agostinho da Silva, in 'Textos e Ensaios Filosóficos'
Virgínia Jorge - Feira das vaidades

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