Um Príncipe de contos, novelas e outros poemas
Nasceu há cem anos um dos maiores escritores do neo-realismo português e foi um dos mais brilhantes contadores de histórias – Manuel da Fonseca.
Assinala-se este ano o seu centenário com um conjunto de iniciativas. Umas já decorreram, outras ainda decorrem e mais se avizinham. Entre debates, exposições temáticas, projecção de filmes, o nome a obra e a vida do escritor são agora recordados, muito por iniciativa da Biblioteca Municipal Manuel da Fonseca, nome dado à biblioteca da cidade que o viu nascer - Santiago do Cacém.
Foi uma figura maior do neo-realismo português (como já disse), a par de outros nomes como os de Alves Redol, Soeiro Pereira Gomes ou Carlos de Oliveira (segundo o meu amigo Luis Gaio). E teve o condão de “transpirar” através da escrita, a vida das gentes do Alentejo, em particular as do Litoral e mais particular ainda, as do concelho de Santiago. Só a partir do conto “Um Anjo no Trapézio” (1968), o centro das histórias se “mudam” para Lisboa.
É, em minha opinião, um príncipe de contos, novelas e outros poemas e tem no romance “Cerromaior” a sua obra-prima. Curiosamente o seu primeiro romance e publicado em 1943. Obra aliás que deu a Luis Filipe Rocha a oportunidade de realizar (com o mesmo nome) um dos melhores filmes das décadas de 70 e 80.
“Cerromaior” é uma obra singular. Até por alguma atualidade. Manuel da Fonseca nunca deu muitas concessões. Sempre afirmou na escrita, com uma estética própria, os seus valores éticos e sociais, com "ouvidos para ouvir / e olhos para ver".
O facto de ser comunista não foi aqui um acaso. E a sua obra mesmo a poética, está carregada de significado social e político. E em “Cerromaior”, muito embora algum lado ficcional, o cerne da história das suas personagens (Adriano e o Doninha) não foge da verdade ocorrida num Alentejo profundamente desigual, onde latifundiários eram donos e senhores, até dos homens. Em tempos de fome, miséria e despotismo. Tempos em que as forças policiais, sobretudo da GNR, foram agentes das mais bárbaras formas de pressão e opressão de um povo, que apenas almejava o justo “quinhão” do que produzia. Sempre ao serviço dos mesmos. Os que sempre ficam com tudo. E tal como escreveu “…uns pulhas!”.
Este “leitmotiv” seria também o mesmo do seu outro romance de 1958 – “Seara de Vento”.
Romances, escreveu apenas dois. A sua obra assenta, sobretudo, nos contos, novelas e na poesia. Começou a publicar (edição de autor) em 1940, com o seu primeiro livro de poemas “Rosa dos Ventos” e publica o primeiro livro de contos “Aldeia Nova” em 1942.
Muitos dos seus contos publicou-os em jornais e revistas. E mais tarde, já a título póstumo, foram editados em livro, como nos casos de “O Vagabundo na cidade” (2001), “Pessoas na Paisagem” (2002), ou o conjunto de contos com o título mais comprido das suas obras “À Lareira, nos fundos da casa onde o Retorta tem o café” (2000).
A sageza das palavras e a sua leitura dos estados de alma são duma sensibilidade poética, muito para além dos registos típicos do neo-realismo. É próprio de um poeta que escreve (conta) a vida e sobre a vida, duma forma em que a ficção se mistura com as experiências vividas. Testemunharia numa entrevista: "Uma vez lançado, a realidade e a invenção, mascaradas, jogam às escondidas comigo – nunca sei ao certo, em cada momento, qual delas preside ao que escrevo".
E é tão real e verdadeira a sua escrita, que muitas das personagens se “cruzam” connosco no nosso quotidiano.
Se os seus contos revelam uma sociedade singularmente pintada a cor cinzenta, com gentes em que a vida muitas vezes era a luta pela sobrevivência, neles há sempre um fio comum – a terna razão dos justos, em que o amor é sempre uma porta da vida.
E se o lado telúrico da descrição, por vezes até cruel no “juízo” como em “O Fogo e as Cinzas”, é a sua imagem de marca na forma como escreve os seus contos, também a sua poesia é singular e aqui, pesa a força de um Alentejo e da sua cultura (poesia). Aliás, eu acho, que a forma de escrita de Manuel da Fonseca se deve muito ao facto de ser alentejano. O tempo das palavras e o “sotaque” subentendido delas, a doçura surreal e a virtude generosa do seu ritmo, são definitivamente as de um alentejano, ainda que de entre a planície e o mar.
A sua obra poética fica, também, para a posteridade, por via das canções. Adriano Correia de Oliveira foi o seu melhor intérprete, musicando um conjunto de poemas seus a que deu o título de “Que Nunca Mais”. Disco com nove temas, trabalhado em conjunto, em que o escritor revela uma outra faceta, a de poeta (letrista) de canções. Este trabalho inclui uma das mais belas e interventivas canções da Música Popular Portuguesa – “Tejo Que Levas as Águas”, que na gravação original conta com a participação à guitarra portuguesa de Carlos Paredes. Tema onde se vislumbra já a influência da sua segunda terra, Lisboa.
Adorava estar entre amigos. No café, na tasca, onde fosse. Um bom pé de conversa era uma das suas formas de estar na vida.
Lisboa abre-lhe portas de outros conhecimentos. Sobretudo de outros amigos, outras realidades, outros mundos. Marcado e fazendo parte de uma geração profundamente rica no campo das artes, pela natureza da sua expressividade e essencialmente pela ruptura com um regime em ascendente apodrecimento social, é neste contexto que integra um “círculo proibido”, porque de opositores ao regime se tratava. Foi membro do PCP, dos tempos de clandestinidade até à sua morte física em 11 de Março de 1993 e, por isso, um “proscrito” da censura e do regime.
Se Lisboa lhe abriu portas de outros mundos, é ao Alentejo que volta sempre. Ao seu CerroMaior. Cerro onde se fundou o casco histórico da, hoje, cidade de Santiago do Cacém. Era aqui que se sentia em casa, sobretudo quando em espaço de tertúlia dava azo à sua veia de contador de histórias…, de preferência sem hora marcada e/ou de fecho.
Escreveu em jornais e revistas, fez parte do grupo “Novo Cancioneiro” e foi presidente da Sociedade Portuguesa de Escritores, até à sua extinção em 1965 pelo governo de Salazar. As causas deveram-se à atribuição do prémio de novelística ao livro “Luuanda” de Luandino Vieira, escritor que devido à sua postura ideológica se encontrava em conflito com o governo vigente. Tal como aconteceu com muitos escritores e artistas portugueses, perseguidos pela censura e polícia política a PIDE.
Apesar de se ter formado em Belas-Artes, a escrita foi a sua paixão de vida. Rascunhou alguns retratos dos amigos “tertulianos” lisboetas. E profissionalmente faz lembrar o grande poeta – Pessoa - disperso por diversas áreas, da indústria à publicidade, do comércio às revistas e jornais. Até pelo desporto se interessou, ganhando inclusive, imagine-se, um campeonato de boxe.
Foi um “Vagabundo na cidade”, que da “Planície” ao “Cerromaior” num “Tempo de solidão”, soube fazer “O Retrato” de uma “Aldeia Nova”, ainda que com “Poemas dispersos”. Foi «barco de vela e remo…», foi «vagabundo do mar…», navegou sem «…rota marcada…» orientando-se pela “Rosa-dos-ventos”, que a partir de “O Largo” fez “Obra poética” como “Um anjo no trapézio”. Viu crescer uma “Seara de vento” que ardeu pelo “Fogo e as cinzas”, sob o olhar de “Pessoas na paisagem”. Escreveu “Crónicas algarvias”, mas do que gostava era de contar histórias, de preferência, “À lareira, nos fundos da casa onde o Retorta tem o café”.
Fica para a história como um dos mais respeitados escritores portugueses e expoente de um período brilhante da nossa literatura. Na sua cidade natal dá nome à Escola Secundária, à Biblioteca Municipal e a uma Avenida.
A sua obra, continua à espera de ser lida e recomendada como obrigatória nas escolas. Nós por cá, continuamos a falar dele.
João Pereira da Silva
Setúbal na rede
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