Eu não dei por esta e ...
Rui Rio não deu por ele
Os leitores que estiverem interessados em conhecer os sofismas a que costumam recorrer os defensores desta tese, talvez possam visitar abaixo a polémica que em 2006 travei com Vasco Pulido Valente nas páginas do «Público».
otempodascerejas2.blogspot.com
Os leitores que estiverem interessados em conhecer os sofismas a que costumam recorrer os defensores desta tese, talvez possam visitar abaixo a polémica que em 2006 travei com Vasco Pulido Valente nas páginas do «Público».
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História e ignorância
A par de outros textos ou tomadas de posição, foi a arrogante catilinária que, no domingo passado, Vasco Pulido Valente debitou nas páginas deste jornal contra um texto de uma jornalista do “PÚBLICO” (São José Almeida) em torno das questões da memória sobre o fascismo português, que mais me acordou para a evidência de que, em relação a um vasto conjunto de acontecimentos e problemas da história contemporânea, está em curso um atrevido processo de revisão e rasura, muitas vezes convenientemente mascarado com poses de “distanciamento”, “pacificação”, “bom senso”, “relativismo político”, “neutralidade” e “isenção”.
Este processo é especialmente notório em matérias tão diversas como as reclamações em Espanha de recuperação da memória histórica da Guerra Civil e das vítimas da ditadura franquista, como a natureza e qualificação da ditadura imposta aos portugueses durante 48 anos, ou como o conflito no Médio-Oriente (onde até voltam truques conhecidos de há mais de 40 anos, como o de chamar anti-semita a quem for anti-sionista ou crítico da política do Estado de Israel).
Deixando de lado colunistas de outros jornais, basta lembrar que, por exemplo, aqui neste jornal, já tivemos recentemente, quanto a Espanha e às iniciativas que lá estão em discussão, o prof. Mário Pinto a sentenciar que “o exemplo espanhol é impressionante de agressividade, repetindo, “mutatis mutandis”, os excessos dos “rojos” que provocaram a guerra civil que trouxe o franquismo”, mas passando, de forma contorcionista, ao lado do anterior “excesso” que foi a ditadura do General Primo de Rivera entre 1923 e 1930; e, quanto ao mesmo tema, já tivemos também Vasco Pulido Valente a recomendar que tudo se esqueça, fique como está e se ponha uma pedra (ou talvez mesmo uma pedreira) sobre o assunto.
Quanto à agressão de Israel contra o Líbano e à questão palestiniana nem vale a pena dar exemplos de tantas falsas “equidistâncias”, de tantas amnésias sobre a origem histórica do problema, da incompreensão de fundo sobre como quase 60 anos de humilhações, expulsões territoriais, exílios e desespero de todo um povo sofredor e a falta de respeito por Israel de todos os acordos acabaram por dar uma considerável base de apoio popular a forças radicais e extremistas.
E, por fim, no que toca ao “Estado Novo”, é sobretudo de reter a afirmação de Vasco Pulido Valente de que “é preciso uma ignorância absoluta do que foi o nazismo e o fascismo italiano (duas coisas, de resto, muitíssimo diferentes) para os confundir com uma ditadura conservadora e católica como a de Salazar”, assim rejeitando expressamente que se qualifique de “fascista” o regime de Salazar e Caetano. E, como se tanta prosápia professoral não chegasse, VPV ainda acrescenta que o “fascismo” foi “uma invenção do estalinismo” e que “é preciso uma especial cegueira para não ver a abissal diferença entre Salazar e o curto consulado de Marcelo Caetano”.
Quanto a este ponto fulcral já lá irei, mas antes quero exprimir a preocupação de que, se não se fizer frente desde já, com coragem e convicção, a esta “onda” de real branqueamento de coisas sinistras e de quase absolvição de pesadas responsabilidades, então não se estranhe que, daqui por uma década ou duas (ou mesmo antes), se multipliquem as vozes que publicamente afirmam que o nazismo não têm particulares responsabilidades no desencadeamento da 2ª Guerra Mundial porque, desde o primeiro dia, o seu mais obsessivo objectivo era ocupar uma União Soviética manifestamente “inimiga da civilização ocidental”.
Ou então, como outro exemplo a que devemos ser nacionalmente ainda mais sensíveis, que alguns comecem a dizer que, quanto ao derrubamento da ditadura fascista em Portugal e à Revolução de Abril, é muito difícil saber, passado tanto tempo, se eram os derrotados ou os vencedores que tinham a razão do seu lado ou a proclamar que, em retrospectiva, entre fascistas e democratas tudo se equivalia e todos merecem o mesmo respeito histórico.
Mas, voltando ao mais importante, é agora tempo de dizer que os muitos que em Portugal considerámos no passado e continuamos a considerar hoje que a ditadura de Salazar e Caetano foi uma ditadura fascista não o fazem apenas por uma questão de tradição, de teimosia ou de puro alinhamento com o vasto e maioritário acolhimento e suporte populares que essa qualificação ganhou.
É que se Vasco Pulido Valente é, de facto, historiador e não um autor de literatura de cordel como fez supor com o seu famoso “ensaio” de 2004 sobre a - na sua opinião, inexistente - Revolução de Abril, então é preciso que esteja afundado na “ignorância absoluta” de que há, em Portugal e sobretudo em todo o mundo, centenas de ensaios e milhares de artigos, com inegável consistência intelectual, de historiadores nacionais e estrangeiros, com inquestionável prestígio científico, que sem negarem diferenças, nuances e especificidades nacionais, se pronunciam pelo alargamento da qualificação de fascistas a outros regimes (Espanha, Portugal, etc.) para além da Itália.
De facto, só uma imperdoável “ignorância absoluta” é que pode levar Pulido Valente a ignorar que, nesta matéria, há no essencial e falando em termos simplificados, duas grandes correntes historiográficas: a daqueles que determinam um “fascismo-tipo” (por exemplo, a Itália de Mussolini) e depois excluem dessa classificação todos os outros regimes onde não se reproduziram todas as características anteriormente detectadas no modelo escolhido e onde até se desenharam variações e diferenças específicas (às vezes de carácter acessório); e a daqueles que, privilegiando as identidades entre esses regimes em termos de eixos fundamentais, de interesses de classe veiculados e de concepções ideológicas de fundo, defendem a legitimidade de a todos aplicar a mesma classificação de “regimes fascistas”.
A este propósito, o reputado historiador italiano Enzo Colloti (outro ignorante?), no final da sua obra Fascismo, Fascismos (Ed. Caminho), escreve que “foi justamente das grandes linhas, comuns a todos os movimentos e regimes de que falámos, que extraímos a confirmação da existência de um húmus cultural e de uma contingência histórica que permitiram a realização de experiências que não foram isoladas nem fragmentárias e que podem ser referidas a uma ideia-força, quaisquer que depois tenham sido as suas diversas traduções nos respectivos contextos políticos e sociais específicos”.
E dito isto, se o clima político de Agosto o permitir, ainda aqui virei questionar “a abissal diferença” entre Salazar e o consulado marcelista que, pelos vistos, enche a memória de Vasco Pulido Valente mas que eu e muitos outros, na época cegos até mais não, devemos ter estupidamente ignorado e desperdiçado.
O sapato de cristal
A crónica de Vasco Pulido Valente, intitulada “A história e Vítor Dias” e publicada neste jornal no passado sábado em comentário ao meu artigo de há uma semana, merece necessariamente algumas observações.
Desde logo, a primeira observação é a de que dois terços do texto de VPV são dedicados a descrever os regimes da Alemanha, da Itália, da Espanha e de Portugal em termos propositadamente orientados para apenas assinalar as diferenças ou singularidades que os marcaram, sendo que algumas delas são óbvias e até merecem a minha concordância e outras nem tanto.
Neste sentido, creio ser legítimo afirmar que VPV gastou boa parte do seu precioso espaço a arrombar as portas que eu já tinha escancarado no meu artigo, uma vez que nele, em momento algum, jamais afirmei qualquer identidade ou similitude totais entre os diversos regimes que qualifiquei de fascistas e não só não neguei como explicitamente confirmei a existência entre eles de diferenças, nuances e especificidades nacionais que, aliás, sempre se verificam em relação a todos os conceitos históricos deste tipo.
Ainda assim, creio que as descrições feitas por VPV têm em alguns pontos um carácter sobretudo impressionista, relevam de uma visão atomística do processo histórico, insistem sobre pontos acessórios ou variações de grau e, uma vez ou outra, estabelecem diferenças que são de elementar explicação.
Assim, por exemplo, deixar à vista que, por comparação com a Alemanha e a Itália, o Portugal dirigido por Salazar não tinha pretensões de formar ou conquistar um império é completamente irrelevante, na medida em que já o tinha (o império colonial) e, como Salazar bem explicitou, do que se tratava era de o manter e defender. De igual modo, também me parece um pouco esquemático declarar apenas que em Portugal, ao contrário de outras ditaduras europeias, não houve “nenhuma tentativa séria de arregimentar e militarizar a sociedade, belicismo ou racismo”.
É que talvez seja bom não esquecer que houve tentativas e medidas de enquadramento (Mocidade Portuguesa, Legião Portuguesa, rituais de arregimentação “popular” como as manifestações no Terreiro do Paço), que houve o “belicismo” próprio de quem enfrenta 13 anos de guerra colonial e que, se não houve racismo em relação aos judeus, existe pelo menos um discurso de Salazar onde refere a responsabilidade civilizadora de Portugal em relação às “raças inferiores” dos territórios “ultramarinos”.
E, neste campo, tenho ainda de assinalar que a referência à ditadura salazarista como “antimoderna” me faz suspeitar que VPV integre aquele grupo de historiadores que, por vezes, confunde o discurso ruralista, provinciano e desconfiado do progresso técnico e da industrialização tantas vezes enunciado por Salazar com as reais orientações e medidas efectivamente aplicadas pelo regime, designadamente a partir de 1945 e que conduziram à utilização coerciva dos meios do Estado para acelerar a concentração capitalista nos seis grupos económicos que, nos anos 60, já dominavam o essencial da economia portuguesa.
A segunda observação é no sentido de salientar que o texto de Vasco Pulido Valente (acantonando-se nas diferenças e sobrevalorizando-as e ignorando semelhanças substanciais e convergências estruturais) se insere precisamente numa das correntes historiográficas que eu havia caracterizado como aquela que, prisioneira do “fascismo-padrão” de Mussolini, nega o carácter fascista de regimes como o de Portugal e de Espanha.
Esta corrente baseia-se num método de origem anglo-saxónica para o qual, segundo as expressivas e saborosas palavras do historiador Luís Bensaja del Schiró (Vértice, II série, nº 13, Abril de 1989) “foi cunhado um palavrão – “taxonomia”- que pretende reunir um conjunto de postulados teóricos mínimos, sem os quais não se poderá falar em fascismo: uma espécie de sapato de cristal da gata borralheira destinado a excluir todos aqueles regimes que, tendo embora a forma adequada para a experiência, acabam por ser recusados por não se adaptarem rigorosamente ao modelo pré-fabricado”.
A terceira observação destina-se a pôr em evidência que VPV foge, como o diabo da cruz, dos aspectos, características, fundamentos ideológicos ou objectivos políticos que foram, em larga medida, comuns ao conjunto de regimes de que temos vindo a falar e sem os quais seriam aliás dificilmente explicáveis as suas alianças, cumplicidades e solidariedades.
Para que não se diga que estava na cara que só podia ir buscar a opinião de um historiador comunista, prefiro citar o falecido historiador César de Oliveira, membro do PS, que, em 1991, identificava “como factores que estão presentes, embora em gradações diferentes”, nas experiências históricas em causa, “a adopção do corporativismo como via alternativa ao capitalismo liberal e ao socialismo através da imposição da colaboração de classe pelo poder; a implantação de regimes com ou de partido único; o poder pessoal baseado num líder carismático; a hegemonia quase absoluta dos órgãos executivos; a autoridade como critério de acção governativa; a repressão política aos adversários e o recurso a formas diversas de censura à imprensa e às manifestações públicas; o nacionalismo”.
A estes factores, há quem acrescente muitos outros, como o combate ao movimento operário, ao socialismo e ao comunismo, com especial destaque ainda para um outro em que o texto de Vasco Pulido Valente é esclarecedoramente omisso e que, na linguagem dos comunistas e de outros sectores de esquerda, surge referenciado como fundamental e é definido como “a natureza de classe” destes regimes, acompanhado do entendimento de que estamos perante ditaduras terroristas ao serviço do grande capital em determinada conjuntura histórica.
E creio sinceramente que, se não se tem em conta este elemento crucial, então a explicação para a formação e duração daqueles regimes fascistas fica remetida para o “ar do tempo”, para o simples contágio ideológico ou para o azar da tomada do poder por uma clique de meros beatos, velhacos e assassinos da liberdade.
A quarta observação é para lembrar que, no seu texto, perguntou ainda VPV se existe em Portugal “alguém ou alguma coisa a que o PCP jamais chamou fascista”. Se, como é suposto, VPV está a falar do PCP como instituição e como partido e dos seus dirigentes e responsáveis, então a resposta é fácil: a insinuação é falsa e torpe porque há centenas e centenas de coisas e de pessoas a quem o PCP nunca chamou “fascista”.
A terminar, registo que VPV, depois de ter falado da “abissal diferença” entre Salazar e o consulado de Marcelo Caetano, acrescentou agora que este último já pertence a “outro universo”.
Quanto a isto, apenas digo que talvez fosse Vasco Pulido Valente que, à época, porventura vivesse noutro universo mental ou geográfico, porque no universo português em que eu e os outros portugueses vivemos, tirando as promessas, as mudanças de nomes das instituições fascistas e os parcos gestos de descompressão política em 1968/69, só vimos e sofremos a continuação de quase tudo o que de pior marcou a governação salazarista.
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