O comportamento da Igreja e dos escuteiros não foi bem visto pelo Ministério Público, que chegou a ponderar acusá-los de omissão de denúncia. Só que a lei apenas obriga à denúncia polícias e funcionários públicos no exercício das suas funções. Mais: o crime de omissão de denúncia só se aplica, entre estes, a superiores hierárquicos que não tenham comunicado crimes cometidos pelos seus subordinados. E há ainda um outro mas: só quando se trata de crimes contra a humanidade. Isto mesmo foi sustentado pelo procurador Teotónio Reis da Silva logo no início do despacho, que, a 27 de junho de 2014, acusou o padre de dois crimes de abuso sexual de menor.
“Ponderou-se a eventualidade de crime de omissão de denúncia, por dirigentes da instituição do Corpo Nacional de Escutas (CNE) e da própria Igreja Católica que, tendo tido conhecimento de factos integráveis em crimes de abuso sexual de crianças, não os haviam transmitido (no decurso de alguns dias) às autoridades com competência investigatória”, lê-se.
Não existe, porém, na lei “um tipo de crime de omissão de denúncia em termos gerais”. Ou seja, um cidadão comum — neste caso um chefe de escuteiros ou um membro da hierarquia da Igreja — não pode ser punido criminalmente por não ter denunciado à polícia um crime do qual teve conhecimento. Embora, no caso dos crimes públicos, como é o do abuso sexual de menores, a simples comunicação por qualquer pessoa seja suficiente para que o Ministério Público abra um inquérito.
Ainda assim, as normas do CNE, que é um movimento da Igreja Católica e que inclui na sua estrutura membros do clero nomeados pelos bispos, obrigariam as dirigentes escutistas a reportar o caso à polícia. Segundo explicou ao Observador fonte oficial da associação, “o CNE, em caso de situação de abuso, cumpre a lei, comunicando o caso às autoridades, acompanhando a sua evolução, colaborando com as autoridades e protegendo todos os intervenientes da exposição e agressão possíveis em circunstâncias destas, acompanhando em todo o processo as possíveis vítimas e respetivas famílias”.
O processo analisado pelo procurador Teotónio Reis da Silva só foi aberto a 6 de dezembro de 2013, mas o primeiro crime que lhe deu origem aconteceu durante um acampamento na noite de 26 para 27 de outubro. E foi imediatamente reportado à hierarquia dos escuteiros pelas chefes escutistas. No “Relatório de ocorrência n.º1”, a que o Observador teve acesso e que foi feito ainda no dia 28 de outubro, a Chefe de Unidade Cátia Moita e a instrutora Ana Madalena descreveram como tudo aconteceu.
Segundo elas, o padre António Júlio teria informado que, depois da missa da tarde de sábado, 26 de outubro, iria ter com o grupo de escuteiros ao acampamento nas Lapas, no concelho de Torres Novas, para jantar com eles. Já depois da refeição e de algumas atividades, as responsáveis preparavam a hora de dormir quando ouviram o padre dizer, para o interior da tenda onde dormiam quatro raparigas: “Então já há espaço para mim?”. Pouco depois, o padre terá dito a uma das chefes que ali queria pernoitar — e ela até lhe emprestou um saco-cama. Contudo, segundo o relatório, o padre informou que iria para a tenda dos rapazes e que não ficaria toda a noite por causa das dores de costas.
Acabou, porém, na tenda das raparigas.
Só no dia seguinte, depois do pequeno-almoço, as chefes souberam o que se tinha passado. Uma das menores, incentivada a falar por uma colega, disse que o padre lhe tinha tocado no corpo, “desde o peito até à zona do baixo ventre”, por cima do saco-cama. O padre ainda lhe perguntou se a incomodava e ela respondeu que sim. Ele parava, mas depois voltava a tocar-lhe. Acabou por adormecer e, quando acordou, ele já não estava lá.
observador.pt
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