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quarta-feira, 16 de abril de 2014

HISTÓRIA DA GUERRA COLONIAL - 26ª PARTE - SISTEMA DE INFORMAÇÕES - Anatomia de uma bem-sucedida guerra revolucionária: exército português versus PAIGC e o assassinato de Amílcar Cabral - SAVIMBI (PARTE 1 e 2)

Sistemas de informações dos movimentos 

A importância de ter boas informações levava a que, logo ao nível dos comités centrais dos movimentos, existisse um departamento de informação e propaganda. 

O conselho militar, que correspondia a um estado-maior conjunto, incluía, no quartel-general, uma secção de informações e outra de assuntos confidenciais. A primeira, designada por «Inteligência», dispunha de uma unidade de reconhecimento e controlava os agentes infiltrados e os informadores, enquanto a segunda constituía um serviço de cifra. 

Ao nível das bases de guerrilheiros, em todas existia um «chefe de reconhecimento», que centralizava a aquisição e estudo das informações. 

Nos batalhões organizados pelo PAIGC e pela Frelimo havia, também, um chefe de reconhecimento, com as mesmas funções de coordenação do sistema de informações. 




O «Manual do Guerrilheiro», utilizado por todos os movimentos, ensinava que as informações do inimigo se obtêm: 

- Pela observação; 
- Pela exploração dos conhecimentos dos habitantes locais; 
- Pelo interrogatório dos desertores e prisioneiros; 
- Pelo reconhecimento de combate; 
- Pela ajuda de redes de colaboradores secretos.

Um caso particular: equipas especiais de informação 

Depois do início da luta armada em Angola e na Guiné, era previsível que, inevitavelmente, esse fenómeno chegasse a Moçambique. Este facto levou as forças portuguesas a procurar obter informações antecipadas sobre o momento em que tal ocorreria e, para o conseguir, foram criadas, em 1962, unidades especialmente orientadas para essa busca: as equipas especiais de informações. 
Estas equipas, que constituíam um caso particular em todo o sistema de informações militares durante a guerra, iniciaram a sua actuação no terreno em 1963, tendo por missão:

- Vigiar as linhas de infiltração da fronteira norte; 
- Obter informações sobre actividades subversivas na área; 
- Contactar populações de difícil acesso; 
- Obter informações sobre terreno, populações e outros elementos; 
- Montar redes de informadores nos territórios vizinhos. 





Para esconder a verdadeira actividade das equipas, os seus elementos apresentavam-se como caçadores profissionais. Curiosamente, embora estes grupos fossem constituídos por militares do Exército e dependessem directamente do quartel-general, todas as suas despesas, excepto o vencimento, eram suportadas pela venda do produto da caça, da carne e do marfim. 
Em 1962, foram constituídas duas equipas com sede em Pauila (Vila Cabral) e Nantuego (Marrupa), que cobriam a fronteira norte entre o lago Niassa e a foz do rio Lugenda. 
Em 1963, foram criadas mais duas em Nassombe e Palma, no distrito de Cabo Delgado. 
As equipas eram constituídas por um oficial, dois sargentos, um sargento-enfermeiro, um cabo-socorrista, um cabo radiotelegrafista, um cabo atirador e onze soldados, dispondo para os seus deslocamentos de um jipe Land-Rover, de dois Unimogs e de uma viatura pesada. Tinham uma organização que lhes permitia viver autonomamente, garantir a sua segurança e comunicar com os seus comandos. 
Os resultados destas equipas ficaram aquém das expectativas por falhas de organização e de coordenação, bastando referir que os governos dos distritos não foram informados da sua actividade, embora tivessem obtido excelentes informações que teriam permitido aos comandos militares e à administração elementos para agir em antecipação e com conhecimento da situação. 
Quanto a outro aspecto que constava na missão das equipas - a criação de redes de informadores para o lado de lá da fronteira -, não há muitas referências, embora se saiba que o chefe de uma destas equipas, o tenente Cristina, oficial miliciano com a família estabelecida em Vila Cabral, no Niassa, manteve relações com elementos tanzanianos nos anos posteriores, quando, depois de deixar o serviço activo do Exército, se encontrava a trabalhar com Jorge Jardim. 
Extracto do relatório de 31 de Setembro do chefe da equipa 109/C sobre a situação entre Mocimboa do Rovuma e Nangade, Norte de Moçambique: 





«A população autóctone continua à espera de que os seus mais prementes problemas sejam resolvidos. Cada vez mais julgo que, se se houvessem resolvido os problemas económicos e sociais das massas negras poderíamos estar numa posição mais confortável ( ...) em Nassombe nunca houve enfermeiro, o posto de Negomano não tem medicamentos, a Delegação de Saúde de Mueda ainda só recebeu os medicamentos referentes ao primeiro trimestre do ano e há pouco tempo o autóctone passou a pagar os tratamentos (1$00) tendo as autoridades administrativas recebido ordem para nas banjas "informarem que, uma vez que passavam a pagar, havia que ter sempre medicamentos". Continuam a fazer-se promessas que sabemos de antemão não se cumprirem. Nos tempos que correm, suponho que tais atitudes, em vez de nos aproximarem das populações, pelo contrário, nos afastam.»

www.guerracolonial.org



Anatomia de uma bem-sucedida guerra revolucionária: exército português versus PAIGC e o assassinato de Amílcar Cabral


Ressalvando-se um período caracterizado em 1971 por um impasse militar no teatro das operações, genericamente, o desequilíbrio da situação militar, desde o começo da guerra, foi sempre favorável ao PAIGC, até para os comandos-chefes portugueses, mercê da sua permanente melhoria estratégico-táctica e, também, da perfeita combinação de acções de guerrilha com as da guerra convencional (sobretudo a partir de 1968), para além de uma manifesta superioridade em termos de arsenal bélico, sem ainda contar com o conhecimento do meio e uma elevada moral combativa.
Esse desequilíbrio, a favor do PAIGC, foi no tempo uma realidade que evoluiu de forma quase inalterável porque, desde o início da luta armada, este movimento de libertação conseguiu adequar a estratégia militar e a consequente táctica às estruturas logísticas e ao próprio dispositivo, colmatando, aqui acolá, as situações que se impunham e fazendo face aos desafios próprios de crescimento que requeriam o confronto das estratégias de ambos os exércitos.
Com efeito, esta dinâmica foi impondo às FARP (Forças Armadas Revolucionárias do Povo) uma gradativa subida de patamar em termos organizacionais, para além de uma constante adequação dos desígnios militares aos estritamente políticos, sendo também de assinalar o facto de o PAIGC ter aproveitado este ascendente favorável para estender o seu controlo por quase toda a região Sul o que criou, por sua vez, condições ideais para o alastramento do conflito para a região Centro-Oeste, apesar das contra-ofensivas de Cantanhez e Quitafine, desencadeadas quase em simultâneo pelo Exército português, mas que não conseguiram debelar o ascendente militar do PAIGC que, ainda assim, consegue abrir novos corredores de infiltração e abastecimentos a partir da fronteira Norte, dos quais se destacam os de Sitató, Jumbenbem, Sambuiá e Canja, obrigando o Exército português, por isso, a uma nova e profunda remodelação do seu dispositivo táctico.



Foi, efectivamente, em 1971, após a chegada de Spínola que Amílcar Cabral e o PAIGC, em virtude da eficácia e da eficiência da política da “Guiné Melhor”, que o ascendente político-militar do PAIGC foi seriamente abalado e posto à prova, na medida em que a introdução de um novo conceito operacional, do lado do Exército português, baseado na combinação das acções psicossociais com a crescente africanização do conflito, contribuiu significativamente para uma espécie de equilíbrio e impasse militares, mercê sobretudo da formação de unidades de recrutamento local, de espírito marcadamente ofensivo, de pendor atacante e de procura de supremacia, mesmo que transitória, em todas as zonas em disputa, passando esta alteração estratégica a denotar, por parte de Spínola, uma profunda percepção dos aspectos doutrinários da guerra anti-subversiva, a qual, doravante, passa a ser direccionada no sentido da conquista das populações, por meio de acções socioeconómicas, de tal sorte que logrou espalhar, momentaneamente embora, o desânimo nas hostes combatentes do PAIGC.



Apercebendo-se ambos (Amílcar Cabal e Spínola) de que havia que tirar partido da situação de equilíbrio e impasse militares desde 1971, quer um quer outro, quiseram potenciar positivamente para o seu lado as oportunidades que surgiam, optando claramente o primeiro por uma estratégia global assente na internacionalização do conflito - para cujo fortalecimento era sumamente importante a componente militar -, enquanto o segundo apostava seriamente num trabalho cujo objectivo era minar a credibilidade da Direcção do PAIGC, visando igualmente forjar uma solução politicamente negociada, uma vez que era assente que o conflito só podia ser resolvido pela via política e não militar. Neste sentido, através da acção concertada da PIDE-DGS e da APSIC, as autoridades coloniais começaram a desenvolver, paralelamente e com um notável sucesso, todo um paciente e meticuloso trabalho de infiltração das estruturas intermédias e, em certa medida, da própria cúpula do PAIGC.
Perante este estado de coisas, Amílcar Cabral responde com uma modificação da sua manobra global, passando doravante a preocupar-se em manter, no teatro das operações, com grande economia de meios e de materiais, um estado de guerra que servisse a sua propaganda interior e exterior, visando também, especialmente, a adesão das populações e uma máxima restrição de mobilidade das unidades das tropas portuguesas.
A associar a estes dois aspectos, Amílcar Cabral introduz ainda um terceiro, a todos os títulos demolidor, que é o de permanentemente alimentar nos areópagos internacionais a ideia de uma possível e até iminente derrota militar do Exército português na Guiné, não apenas com o objectivo de assegurar que as questões relativas à justeza da luta do PAIGC se mantivessem em permanência na agenda internacional, mas sobretudo com a finalidade de criar um ambiente internacional favorável à sua intenção de proclamar o Estado da Guiné-Bissau e, assim, assestar o golpe diplomático fatal ao colonialismo português, pois para ele era ponto assente de que o Estado da Guiné-Bissau existia de facto, através de toda uma organização social, política e económica criada nas zonas libertadas, apenas precisando, por isso, de ser formalizada de jure, com a proclamação da independência e a adopção de uma Constituição que criasse os seus órgãos de governo, transformando assim a presença do Exército português, na Guiné, à luz do Direito Internacional, na de uma força invasora de ocupação.
Do confronto de duas convicções estratégicas muito claras, resulta, do lado português, o incremento de uma forte componente política na sua actuação, tanto junto das populações como na procura de uma solução negociada, optando também Amílcar Cabral, por seu turno, com uma inusitada acção psicossocial, amplamente realizada com o apoio da Suécia e articulada a mesma, no plano das operações militares, com acções coordenadas, quer atacando as guarnições com possibilidades de apoio simultâneo de artilharia e tirando o máximo rendimento da sua actividade, quer ameaçando zonas urbanas e os chamados reordenamentos populacionais organizados pelo Exército português em autodefesa, quer provocando intervenções junto da tropa portuguesa e montando de seguida emboscadas nos itinerários de acesso directo das forças de socorro.



O Exército português caiu assim numa fase desconcertante e o PAIGC, em virtude sobretudo da introdução, por parte de Amílcar Cabral e do PAIGC, de novas e potentes armas que colocam os aquartelamentos situados ao longo da fronteira sob permanente fogo de artilharia, correspondendo esta opção táctica a uma substancial melhoria das FARP em termos de organização militar, e, por outro, ao incremento da eficiência e da eficácia relativos a uma ampla acção psicossocial posta em marcha e que, cumulativamente, em boa verdade, revelaram-se capazes de contrabalançar a inteligente acção psicossocial de Spínola.
Na realidade, justamente pela ameaça que representava, Amílcar Cabral era já, desde essa altura, um sério problema para autoridades colonias de Bissau e da metrópole. Aliás, pelo menos desde 1972, o nome do general Spínola é falado para a presidência da República, e, por isso, não pode regressar derrotado. Era para ele imperioso tudo fazer para inverter a situação militar, pelo que não é de descartar a hipótese de que o assassinato de Amílcar Cabral se enquadrasse nessa espécie de obsessão que levaria o Exército português, no início de 1973, logo depois do seu assassinato, a realizar uma série de violentas operações militares contra as regiões libertadas e algumas bases do PAIGC no Sul que, no entanto, vieram a revelar-se desastrosas.




Acresce também que os sucessos militares e políticos do PAIGC, destacando-se, dentre os mesmos, a proclamação do Estado da Guiné-Bissau, só foram possíveis tendo em conta os trabalhos ainda realizados em vida por Amílcar Cabral, os quais, mutatis mutandi, se deu continuidade de acordo com as linhas estratégicas por ele gizadas. Portanto, ao contrário do que é lugar-comum afirmar-se, não foram os mísseis Strella, utilizadas pelo PAIGC após a morte de Amílcar Cabral, que configuraram uma alteração marcadamente significativa em termos estratégico-tácticos. Na verdade, ainda em vida, Amílcar Cabral tinha logrado alterar significativamente a situação do impasse militar, fazendo-a nova e favoravelmente pender para o lado do PAIGC, designadamente, com a utilização maciça de morteiros (82 mm e 120 mm), foguetões de 122 mm (Graad ou jacto do Povo), a peça de artilharia 130 mm e ainda o M-46 (novíssima arma de longo alcance capaz de atingir 30 quilómetros), os quais ocasionaram, do ponto de vista da correlação de forças no terreno, uma acentuada alteração favorável ao PAIGC.
Com efeito, a última mensagem de Cabral resume de forma perfeita a situação em que os portugueses se encontravam no teatro da guerra: Dizia ele que “ (…) o agressor colonialista enfrenta uma contradição principal, sem solução (…) Para ter a sensação de que domina o território, ele é obrigado a dispersar as tropas, levando-as a ocupar o maior número de localidades possível, mas, dispersando-as fica mais fraco e, assim, as forças patrióticas, concentradas, podem dar-lhe golpes mais duros e mortais. Então ele é obrigado a retirar para concentrar as suas tropas e evitar grandes perdas em vidas humanas, para melhor resistir ao avanço das forças nacionalistas, contra as quais pretende ganhar tempo. Mas, concentrando tropas, deixa sem a sua presença militar e política vastas áreas do país, que são organizadas e administradas pelas forças patrióticas”. 


[Cabral, Amílcar, “Mais Pensamento para Melhor Agir”, mais Actividade Para melhor Pensar” (mensagem de Ano Novo), Serviços de Informação do PAIGC, Arquivo do PAIGC, Janeiro de 1973, pp. 12 e 13]
Será assim em defesa da sua imagem pessoal – muito mais do que a imposição de quaisquer perspectivas negociais –, que Spínola desencadeia operações de grande monta no Sul, ainda antes do assassinato de Cabral, as quais este e o PAIGC respondem, no Norte, de forma igualmente violenta, obrigando assim o Exército português ao balanceamento de efectivos para o Norte, para logo depois atacar novamente e com assinalável sucesso os aquartelamentos do Exército português no Sul.


Portanto, para as autoridades coloniais, como acima se referiu, Amílcar Cabral e o PAIGC eram já um sério problema para as autoridades coloniais, na medida em que, para além da projecção e respeito internacionais que este líder africano granjeara, o PAIGC contava ainda com moderna e potente artilharia e ainda poderosos carros blindados no seu arsenal, pelo que tudo apontava que estava nos seus planos a consolidação da guerra convencional que, de resto, vinha sendo ensaiada com inquestionável sucesso, desde pelo menos 1968, e que transformou o teatro de operações da Guiné no mais sério dilema dos governantes portugueses: não podiam negociar, porque iriam abrir um precedente noutras colónias, mas também não encaravam de ânimo leve a possibilidade de uma derrota, que já se vislumbrava no horizonte, pois afectaria o moral dos seus soldados que combatiam noutras frentes, nomeadamente em Angola e Moçambique. A alternativa política era a de “aguentar o mais possível” que, ainda assim, só jogava contra Portugal.
Antes, porém, deste clima político em que o Portugal Imperial entre a espada e a parede, num primeiro momento, a Subdelegação da PIDE-DGS apostou fortemente na transmudação de elementos da estrutura clandestina do PAIGC em informadores dessa mesma polícia política, ao ponto dessa mesma estrutura clandestina vir a encontrar-se quase que completamente minada. O irónico da situação era que mesmo dentro da estrutura clandestina do PAIGC, em Bissau, os próprios agentes infiltrados da PIDE-DGS estavam, sem o saberem, encarregues de vigiar os movimentos de outros agentes, seus correligionários, o que de per si dá ideia do enorme grau de infiltração da PIDE-DGS junto de estruturas nacionalistas. A este grupo juntava-se ainda a grande rede de informadores que se contavam aos milhares, para além do nada desprezível contingente de desertores do PAIGC que a PIDE-DGS convertia em informadores e o próprio Exército português utilizou como guias privilegiados nas suas acções cirúrgicas.
Acrescem a tudo isso outros planos urdidos para desacreditar Amílcar Cabral e mesmo para a sua eliminação física, dos quais destacamos os seguintes:



  • A contratação do escritor Amândio César, em 1965, no tempo do governador Arnaldo Shultz, que se deslocou a Guiné para escolher elementos para a publicação de um livro de contrapropaganda contra o PAIGC, no qual, de resto, escreveu sobre Amílcar Cabral frases assaz indecorosas, evidenciando quase uma batalha pessoal: “ (…) Ele sabe o fim que o espera, e sabe melhor do que ninguém o que sucedeu a um seu amigo de subversão, aquele Humberto Delgado em cuja morte parece que também andou envolvido o nome da sua mulher. Esse fim à vista e a rivalidade dos outros comparsas, que suportarão mal, ou não suportam de todo, a sua ascendência cabo-verdiana, agravada com o seu casamento com mulher branca da metrópole – tudo isso leva Amílcar Cabral a apresentar-se optimista em L’ Humanité exactamente quando a imprensa estrangeira também começa a dar pela mentira do terrorismo na nossa província da Guiné (…) ” 

  • [César, Amândio, Guiné 1965: Contrataque, Pax, 1965, p. 31]
  • Em 1966 ter-se-ia registado uma primeira tentativa de abater Amílcar Cabral nas regiões libertadas, na sequência da qual Honório Sanches Vaz e Miguel Embaná, altos responsáveis do PAIGC (igualmente agentes da PIDE-DGS), foram julgados e condenados ao fuzilamento. Segundo os planos desse atentado, um atirador de bazuca deveria disparar contra a barraca onde Cabral devia pernoitar. Honório Sanches Vaz mantinha ligações com a Subdelegação da PIDE-DGS de Bissau, tendo inclusivamente enviado a Bathurst, Gâmbia, emissários que se encontraram com o inspector da PIDE-DGS, no Hotel Atlântico, onde alegadamente, ele próprio chegou a encontrar-se com agentes outros da PIDE-DGS para negociar a rendição dos elementos do PAIGC sob o seu comando.

  • Um outro plano que, desde 1967 vinha sendo urdido e discutido com minúcia, entre o Director-Geral da PIDE e o chefe da Subdelegação de Bissau, através de uma troca de ofícios com a chancela de “muito secreto”, acabaria depois por ser abandonado por inexequível.
Com efeito, o próprio Amílcar Cabral tinha uma aguda consciência da existência de planos que visavam a sua eliminação física. Produziu, por isso, um importantíssimo e premonitório documento no qual denunciava concomitantemente os planos do Governo colonial em face da guerra e, no qual, antevia o seu próprio assassinato. Curiosamente, tudo ou quase tudo veio a acontecer, como de resto ele previra neste documento. Com efeito, dizia ele que:
“ (…) Os colonialistas portugueses, para criarem a confusão na nossa terra, tudo farão para formar uma Direcção paralela do Partido para se opor à já existente, a qual deve incluir um ou dois agentes e alguns elementos responsáveis e entre os descontentes, em particular aqueles que, pelos erros cometidos ou pelas críticas que lhes foram feitas, estão descontentes com a actual chefia do Partido. A Direcção clandestina, criada exclusivamente para a sabotagem e a destruição do Partido, deveria aproveitar todas as possibilidades para manter contactos com Governos de outros Estados a fim de levá-los a pensar que existe uma cisão no seio do Partido e para ganhar o seu apoio. Nesta segunda fase, os colonialistas e os seus aliados, de acordo com o plano elaborado, devem desenvolver uma campanha de persuasão da opinião pública sobre a cisão do PAIGC em toda a África e ao nível internacional, propondo-se desacreditar o prestígio da actual Direcção do Partido e, em primeiro termo, do seu Secretário-Geral. 





No interior do país, as tropas colonialistas activariam as suas operações no intuito de desmoralizar e aterrorizar a população e os nossos combatentes. E, enfim, se os agentes dos colonialistas, infiltrados nas nossas fileiras, não forem desmascarados a tempo e conseguirem levar a cabo os seus planos, sobretudo recrutar aliados entre alguns dirigentes do Partido e encontrar apoio dos países vizinhos, em primeiro lugar da República da Guiné, iniciar-se-ia a terceira fase que prevê: a formação de uma nova Direcção do Partido (…) com base no racismo e, se for necessário, no tribalismo e na intolerância religiosa, a fim de fixar a divisão do nosso povo e torná-lo indefeso perante os colonialistas. Decerto mudarão também o nome do nosso Partido, a cessação de toda a espécies de acções antiportuguesas, tanto no interior do país como à escala internacional, particularmente na República da Guiné, o estabelecimento do controlo sobre os bens do PAIGC com o fim de paralisar as nossas acções militares e a manutenção do nosso Exército e a prisão e a liquidação física de todos os membros fiéis ao PAIGC. Realizadas essas metas, a declaração sobre o estabelecimento de contactos com Lisboa, por intermédio de Spínola, para o início de conversações falsas que terão por finalidade alcançar a autonomia interna da Guiné e o estabelecimento da chamada autodeterminação sob a bandeira portuguesa. A criação do Governo da Guiné que declarará a formação do Estado da Guiné como parte integrante da comunidade portuguesa. Em conformidade com os planos e promessas de Spínola e das autoridades coloniais portuguesas, a todos os agentes e membros do Partido envolvidos na realização do dado programa serão assegurados postos elevados na vida política e nas forças armadas do futuro Estado. Serão também bem pagos pela sua traição.



 Este é o plano diabólico elaborado por Spínola e pelas autoridades coloniais portuguesas e que tem em vista destruir o nosso Partido por dentro, recorrendo aos agentes já infiltrados ou a serem infiltrados no seio do Partido. Julgo que a veracidade destes planos não dá margem para dúvidas, pois foram recolhidos por gente nossa em Bissau. Como se vê, as intenções dos colonialistas são bastante sérias e os programas têm largo alcance. O nosso Serviço de Segurança fez um grande trabalho no sentido de neutralizar alguns agentes do inimigo e colher certo material referente a algumas pessoas que ainda se encontram em liberdade. Esta informação tem carácter meramente confidencial e, por isso, não vamos fazer agora debates”. 

[Cf. Cabral, Amílcar, “Vamos Reforçar a Nossa Vigilância, para Desmascarar e Eliminar os Agentes do Inimigo para Defendermos o Partido e a Luta e para Continuarmos a Condenar ao Fracasso Todos os Planos dos Criminosos Colonialistas Portugueses”, Serviços de Informação e Propaganda do PAIGC, Arquivo do PAIGC, Março de 1972.]
A 20 de Janeiro de 1973, porém, ocorre o assassínio de Amílcar Cabral em circunstâncias até agora não completamente esclarecidas, apesar de começar a ser possível descortinar-se, as várias tentativas, quer as anteriores como as mais recentes, todas da directa responsabilidade moral e material da PIDE-DGS, tendo todos eles or objectivo a eliminação física de Amílcar Cabral e o enfraquecimento da Direcção do PAIGC.
Contudo, apesar de não serem suficientemente claras as circunstâncias que levaram ao assassínio de Amílcar Cabral, é hoje possível, na perspectiva de indagação “Quem é o Inimigo”, demonstrar que para a conspiração que culminou no assassínio de Amílcar Cabral, concorreram forças de natureza díspar, desde os circunstancialmente correligionários aos ocasionalmente entrincheirados no mesmo lado da barricada, sem esquecer, obviamente, as históricas rivalidades étnicas atiçadas pelo sistema colonial, para além de uma infinidade de outras linhas de demarcação, ao ponto de podermos comparar essa conspiração a um polvo gigante cujos tentáculos compreendiam: os milhares de agentes da PIDE-DGS, recrutados na Guiné, os agentes duplos da rede clandestina do PAIGC em Bissau; os inimigos internos do PAIGC; os guineenses “inimigos da união com os caboverdianos; os caboverdianos “inimigos” da união com os guineenses; as clivagens étnicas que se manifestaram sob diversas formam na luta de libertação; os “comprometidos” (infiltrados) do lado do PAIGC mobilizados pelas autoridades colonias; os “comprometidos” do lado das autoridades coloniais (descontentes) mobilizados pelo PAIGC; e, finalmente, os agentes da PIDE-DGS naturais da GuinConakry.





[No complot contra Amílcar Cabral foi referenciado o nome de dois cidadãos da República da Guiné, a saber, Alpha Coubassa, funcionário Público e Gueladou Bah, funcionário administrativo (Vide Arquivos da PIDE-DGS, ANTT, PAIGC, SR 64/61 – nt 3073 (Pasta 8), fls.421)].
Com efeito, enquanto nas hostes dos caboverdianos do PAIGC que se encontravam em Conakry e que foram presos na altura pelos conspiradores reinou e, em certo sentido ainda reina, por um lado, a convicção unânime de que a quase generalidade dos guineenses em Conakry estavam a par da conspiração que conduziu ao assassínio de Amílcar Cabral, por outro, as informações hoje disponíveis permitem-nos assinalar a realização de várias reuniões discretas efectuadas, logo após o assassínio de Amílcar Cabral, pelos guineenses notáveis do PAIGC que tinham a preocupação de ver um guineense a suceder a Amílcar Cabral, tendo inclusivamente sido aventado, num primeiro momento, o nome de Rafael Babosa, para logo depois se construir um difuso consenso em torno da figura de Nino Vieira. Conclui-se, portanto, que, independentemente da acção da PIDE-DGS, o grupo dos conspiradores tenha surgido como resultado de várias clivagens, dissidências e tensões criadas no PAIGC ao longo dos anos da guerra, catalisadas as mesmas por motivações individuais, mas igualmente diversas e mesmo diferenciadas.  
Acresce também, na perspectiva de indagação “Quem é o Inimigo”, a participação das autoridades da Guiné-Conakry na conspiração, pois é difícil convencermo-nos da sua não-participação se atendermos ao facto de que os cabecilhas da conspiração chegaram de ser triunfalmente recebidos no Palácio de Sékou Touré. Aliás, na mesma linha de raciocínio, é possível hoje provar-se a directa ou indirecta participação dos Serviços de Inteligência de vários países ocidentais que, na altura, apoiavam a política colonial de Portugal.



No entanto, Spínola recusa terminantemente a sua implicação na morte de Amílcar Cabral, enquanto certos sectores politicamente mais conservadores do Exército Português consideravam que “ (…) o mal-estar permanente gerado entre cabo-verdianos e guineenses do PAIGC e o seu reflexo na população foram dando origem, no decorrer da guerra, a aproximações e contactos entre responsáveis daquele movimento e autoridades portuguesas. Talvez que o assassínio de Amílcar Cabral tenha sido consequência de tudo isto e também do peso da subordinação soviética de que ele sentia necessidade de se libertar. (…) ”. 

[Silvino Silvério, Marques, A Vitória Traída (Quatro Generais Escrevem): J. da Luz Cunha, Bethencourt Rodrigues, Editorial Intervenção, 1977, p. 263.]
Do nosso lado, porém, não temos dúvidas de que Amílcar Cabral teria sido vítima das manipulações das autoridades colonias e da PIDE-DGS, mas igualmente de uma série de entidades e interesses que pareciam gravitar em círculos concêntricos, todos eles inquestionavelmente manietados pelos Serviços da PIDE-DGS em Bissau e Lisboa (o núcleo central da conspiração), sem margem para dúvidas, os autores morais e matérias do assassinato de Amílcar Cabral.
Aliás, para nós, reportando-nos ao estado das pesquisas e das investigações sobre o assassínio de Amílcar Cabral, as únicas dúvidas atém-se com a dificuldade em determinar, com exactidão, o grau de infiltração do PAIGC pela PIDE-DGS, e, na mesma linha, os diferentes níveis de responsabilidade moral, uma vez que são conhecidos os autores materiais, como se segue: Inocêncio Cani; Comandante de Marinha; Estêvão Lima; da Marinha; Mário Cá, da Marinha; João Tomas Cabral, agente da PIDE-DGS desde a altura em que desempenhou as funções de responsável pela logística e reabastecimentos em Koundara; Alda Djassi; Coda Nabonia, um dos guarda-costas de Amílcar Cabral; Momo Turé, ex-preso político em Tarrafal; Baciro Turé; Inácio Soares da Gama, comandante da região Leste; Emílio Costa, da Marinha; Luís Teixeira, da Marinha; Mamadu N’Djai, comandante de infantaria e, na altura, chefe da segurança do Secretariado do PAIGC; Marcelino Ferreira, vulgo “Néne”, radiotelegrafista em Conakry; Aristides Barbos, ex-preso político em Tarrafal; Ansumane Bangurá; Abdulai Djassi; Valentino Cabral Mangama e Bocoda (ou Coda) Mabogma.
Segundo um artigo publicado por Basil Davidson em Abril de 1973 (Sunday Times de 15 de Abril de 1973), o autor descreve em pormenor os acontecimentos que teriam precedido a morte de Amílcar Cabral, atribuindo o atentado às autoridades portuguesas. Nesse artigo, Davidson afirma que o programa de promoção social de Spínola só poderia vingar se o PAIGC fosse destruído por um duplo golpe que decapitasse a sua chefia e ao mesmo tempo enfraquecesse a sua principal base logística, proporcionada por Sékou Touré. Depois evoca a incursão contra Conakry, em Novembro de 1970, e fala de Momo Touré e Aristides Barbosa, “que regressaram ao PAIGC depois de terem passado vários anos encarcerados nas prisões portuguesas e que, uma vez acolhidos pelo PAIGC, teriam então procurado aliciar recrutas, tendo conseguido audiência local entre uns quantos descontentes. O número de tais aderentes teria atingido cerca de três dúzias, tendo, porém, a tentativa de golpe sido levada a cabo apenas por nove (…) ” 



[Davidson, Basil, citado também por uma nota da PIDE-DGS – Arquivos da PIDE-DGS/ANTT, Proc. PAIGC, SR64/61 – NT 3073, Pasta 8, fls.762].
Quanto ao assassínio de Amílcar Cabral, corroboramos das palavras de Costa Pinto que afirmou: “(…) muito embora seja ainda difícil fazer um balanço das várias acções desempenhadas pelos serviços de informação e nomeadamente da PIDE, parece não oferecer dúvidas de que esta, quer através de informadores próprios quer através de outras polícias, controlava de perto as actividades dos movimentos de libertação nos países onde tinham santuários, desde os primeiros tempos do Congo-Kinshasa e de Conakry. As acções mais espectaculares que lhe foram atribuídas estão, no entanto, ainda longe de ter uma resposta satisfatória no que toca à sua responsabilidade, até pela alta promiscuidade entre tensões étnicas e pessoais no interior das próprias organizações guerrilheiras ou, por vezes, entre estas e as facções políticas dos países de acolhimento. Casos como o assassínio de Amílcar Cabral ou de Eduardo Mondlane, por exemplo, apesar de já serem passíveis de reconstituição com muito maior base informativa, repousam ainda neste limbo interpretativo (…)”.




Para nós, contudo, é dado assente que o assassínio de Amílcar Cabral não dissipou a encruzilhada de dissensões múltiplas que se geraram à montante e a jusante da guerra colonial/guerra de libertação, antes pelo contrário, catalisou uma circunstancial e inaudita união de esforços, ditada pela emoção colectiva suscitada pela súbita perda de um líder da dimensão de Amílcar Cabral, aliás, estado de espírito esse que se traduziu, do lado do PAIGC, no endurecimento da guerra, propiciando assim na Guiné-Bissau uma situação que quase levou o Exército português ao colapso militar e que, de alguma maneira, terá catalisado inclusivamente a ocorrência do 25 de Abril em Portugal, para além da independência da Guiné-Bissau e Cabo Verde e de outras ex-colónias africanas de Portugal, nomeadamente Angola e Moçambique
No caso da Guiné-Bissau - já o escrevemos algures - o período pós-independência contrasta com esta herança dourada que foi a luta de libertação nacional, superiormente dirigida por Amílcar Cabral, de resto, uma luta que entrou a justo título para a galeria dos povos do Terceiro Mundo que ousaram enfrentar e vencer o colonialismo. Foi, certamente, o caso do PAIGC. Foi, inquestionavelmente, por isso, que Amílcar Cabral pagou com vida o preço por ter ousado enfrentar e vencer uma potência colonial.
Contudo, esta herança histórica, inolvidável a todos os títulos, porque é nela que se forjou as nações guineense e caboverdiana, não foi infelizmente gerida de maneira a suprimir as matizes culturais e ontológicas em que se fundaram e ainda fundam, paradoxalmente, as sobreposições e justaposições inconvenientes de historicidades várias em que, paradoxal e sintomaticamente, o próprio movimento de libertação se movera.

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savimbi (1)

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      O autor (foto Revista Expresso)
          SAVIMBI
    Ele foi o pior inimigo de si próprio
A vida de Savimbi dividiu-se em três fases.
Na fase inicial foi um produto do sistema colonial português
Por: Sousa Jamba*
Jonas Savimbi era um homem altamente complexo e cheio de contradições. Gostava muito de livros e da educação, mas matou muitos intelectuais que divergiram dele. Afirmava ser um lutador pela democracia e pela economia livre, mas criou escolas para quadros, onde eu próprio me licenciei, que ensinavam o maoismo. Dizia-se um democrata, mas não tolerava as críticas. Para alguns angolanos, Savimbi é a encarnação do diabo; para outros, é um dos líderes mais inteligentes, mais determinados e mais corajosos que Angola teve até hoje. Qual será, então, a verdade?
Jonas Savimbi (foto Revista Expresso)
A vida de Jonas Savimbi pode ser dividida em três fases: o Savimbi da etapa inicial, o Savimbi da etapa intermédia e o Savimbi da etapa final. O da etapa inicial foi um produto do sistema colonial português. Nasceu em 1934 em Munhango, estação da linha de caminho-de-ferro de Benguela, onde o pai era chefe de estação - na época, um lugar impressionante para um africano. Savimbi sofreu a humilhação por que passaram muitos negros angolanos, inteligentes e ambiciosos. Tinha antipatia pelos «assimilados» e por alguns mulatos que faziam então parte da classe privilegiada. (Mais tarde, Savimbi iria atenuar a sua hostilidade em relação aos brancos, criando grandes amizades com alguns deles).
Foto Revista Expresso
Em finais dos anos 50 obteve uma bolsa de estudo para Lisboa a fim de estudar Medicina, mas, depois de muitas perseguições movidas pelas autoridades portuguesas, fugiu para a Suíça onde estudou Ciências Políticas. Voltou para África, aderiu à FNLA e tornou-se seu secretário para os Assuntos Externos. Viajou por todo o mundo e estabeleceu ligações com muitos nacionalistas africanos incluindo Jomo Kenyata, do Quénia, e o falecido Felix Houphouêt-Boigny, da Costa do Marfim. Savimbi foi para a China, onde conheceu o Presidente Mão, e adoptou a revolução chinesa como modelo. Regressou clandestinamente a Angola e, em Dezembro de 1966, levou a cabo o primeiro ataque, em Luau, na província do Moxico. Em 1974, por ocasião da revolução em Lisboa que derrubou o regime colonial fascista, a UNITA, de Savimbi tornou-se num dos três movimentos de libertação que competiram entre si pelo apoio dos angolanos. Os outros dois eram a FNLA e o MPLA. O MPLA seria o vencedor da guerra civil que se seguiu à partida dos portugueses.
O Savimbi da etapa intermédia vai de 1975, quando os apoiantes da UNITA foram forçados a fugir das cidades para o mato, até 1983, quando, com a ajuda dos americanos e dos sul-africanos, o movimento atingiu o seu apogeu. O Savimbi da etapa intermédia era carismático, eficiente e amado pelos seus colaboradores mais próximos.
Sem Savimbi a UNITA teria desaparecido nessa altura. Savimbi conseguiu, habilmente, atrair muitos professores, enfermeiros, mecânicos e burocratas, que vinham das terras altas centrais para o mato a fim de participarem na administração dos territórios que controlava e que, a certa altura, abrangiam grande parte do território de Angola. O Savimbi da etapa intermédia falava em nome dos angolanos pobres que sempre tinham sido marginalizados.
Regresso a Luanda em 1991 depois do Acordo de Bicesse
(foto Revista Expresso)
Milhares de jovens, especialmente do grupo étnico ovimbundo, viam em Savimbi um pai adoptivo. Aqui estava, finalmente, um homem que infundia respeito em alguns círculos internacionais e que também sabia relacionar-se com os mais humildes camponeses angolanos.
Casa no Huambo onde residiu Jonas Savimbi. (foto Net)
Savimbi era igualmente eficiente a descobrir e a estimular talentos. As figuras que estavam nas posições cruciais subiam não através de nepotismo, mas sim pela sua competência. Se este Savimbi tivesse sido Presidente de Angola, o país teria tido uma história mais risonha. Contudo, o Savimbi da etapa intermédia começou a manifestar características que o haviam de marcar até ao fim da vida matando opositores políticos, por vezes por razões infundadas. Este Savimbi começou a ver-se como a encarnação da causa da UNITA e permitiu que um culto da personalidade se desenvolvesse à sua volta. Os músicos só podiam cantar canções em seu louvor; outros podiam escrever poemas desde que tivessem uma estrofe de glorificação do líder. Este culto foi estimulado por informadores ansiosos de estar nas boas graças do líder. Alguns deles viriam, mais tarde, a passar-se para o lado governamental.
Agostinho Neto abraça Jonas Savimbi à chega a Luanda
(foto Revista Expresso)
O Savimbi da etapa intermédia também começou a abandonar qualquer ideia de liderança colectiva para o movimento. O destacado secretário para os Assuntos Externos, Orneias Sangumba, foi morto por ser alegadamente um agente da CIA. Apesar das ligações estreitas que acabou por estabelecer com americanos e sul-africanos, Savimbi nutria uma grande desconfiança em relação à CIA. Nessa altura, o então chefe do Estado Maior, Waldemar Chindondo, militar distinto que foi um dos primeiros oficiais negros do Exército português, foi igualmente morto devido a acusações infundadas. Kashaka Va-kulukuta, anteriormente um colaborador muito próximo de Savimbi, foi metido numa prisão e acabou por morrer de doença. Segundo a direcção do movimento - a qual toda a gente tinha de aceitar - figuras como Sangumba estavam numa qualquer região remota do território controlado pela UNITA. Mas era uma grande mentira.
A mentira, especialmente aos órgãos de informação internacionais, era possível porque Savimbi tinha o controlo completo do movimento. Tudo o que os seus seguidores faziam devia depender do facto de serem ou não leais à sua causa. A UNITA não tardou a desenvolver uma intrincada rede de informadores que reportavam sempre ao líder. Ele sabia tudo - pelo menos era isso o que as pessoas pensavam.
Em 1990, Savimbi entrou em litígio com Tito Chingunji, o seu secretário para Assuntos Externos, um homem igualmente brilhante, acusando-o de se ter tornado demasiado próximo dos americanos. Apesar de todas as suas qualidades, é difícil perdoar Savimbi pelo modo como se vingou da família de Chingunji: os outros três irmãos de Tito e os seus filhos foram executados.


savimbi (2)

Savimbi devia pensar que ia ganhar as eleições de 1992 e realizar o sonho da sua vida de ser Presidente de Angola, e que todos aqueles que ele tinha matado seriam esquecidos. Mas não foi isso o que aconteceu. A UNITA perdeu as eleições, disse que os resultados tinham sido fraudulentos eSavimbi e os seus colegas voltaram a pegar nas armas. Este período, desde 1992 até à sua morte, marca o Savimbi da etapa final.
Savimbi vestiu-se à civil para votar
(foto Revista Expresso)


O Savimbi da etapa final nunca se poderia ter adaptado a uma sociedade digna e com regras. Tratava-se de um Savimbi cuja única motivação era o poder e o controlo absoluto. Este Savimbi tinha pouco respeito ou consideração por aqueles que lhe estavam próximos - incluindo as suas mulheres e amantes. É um segredo por todos conhecido que Savimbi tinha uma intrincada vida doméstica. Os filhos tinham de lutar entre si para atrair a atenção paternal. Oficialmente tinha uma mulher, Ana Paulino, mas também uma série de amantes; estas teriam sortes diversas, tais como os membros do seu gabinete ou do alto comando. O círculo íntimo de Savimbi era como uma corte medieval: os cortesãos disputavam entre si influência e poder (principalmente para serem ouvidos pelo «rei») através de intrigas.
Savimbi com Ana Isabel (foto Revista Expresso)
Savimbi com uma das suas mulheres e filho 
(foto Revista Expresso)
O Savimbi da etapa final também sabia lançar as famílias mais influentes umas contra as outras, através do seu sistema clientelar. Jonas Savimbi nunca se interessava pelo dinheiro em si. Isto talvez derivasse da sua educação de protestante. Contudo, estava mais interessado no poder do que naquilo que o dinheiro poderia dar a alguém. Um dos fracassos da UNITA foi o de ser um movimento cujo líder tinha ilusões de vir a governar um Estado. Ainda me recordo dos tempos em que os líderes da UNITA diziam que esta tinha tanto dinheiro que dava para envergonhar o tesouro de muitos países africanos. O próprio Savimbi gabou-se um dia numa entrevista que havia africanos que vinham ter com ele para lhe pedirem lições de economia. (Quem recusaria tais lições se, no fim, lhes era entregue um envelope com alguns diamantes?).
O Savimbi da segunda fase, a do apogeu, era carismática, eficiente e amado pelos mais próximos
Claro que ninguém se atrevia a dizer que este tipo de comportamento não era digno de um líder. (Alguns dos comandantes mais jovens de Savimbi começaram a imitá-lo e acabaram por ter uma série de mulheres e filhos, alguns dos quais vivem agora em condições terríveis nos campos de refugiados na Zâmbia). É chocante como estes jovens comandantes começaram a imitar Savimbi em todos os aspectos - incluindo o modo como ele andava, falava ou dançava. Era estranho, por exemplo, ver um grupo de homens na casa dos vinte anos, todos calçando botas mexicanas iguais porque era assim que o líder gostava. Também começaram a copiar a sua inflexibilidade e tendência para personalizar todos os problemas.
Savimbi com um dos seus filhos
(foto Revista Expresso)
É verdade que, depois de 1992, o Governo angolano tratou mal os apoiantes da UNITA em Luanda tendo sido assassinadas pessoas inocentes das etnias ovimbundo e kinkongo, apenas em consequência das suas origens. Contudo, depois de ambos os lados terem aceite, no acordo de Lusaka, que o caminho para a frente era a reconciliação, a importância que estava a ser dada ao estatuto do Dr. Savimbi fez passar para segundo plano o verdadeiro problema. Houve então momentos em que pareceu que a UNITA tinha estado no mato unicamente para dar um posto importante a Jonas Savimbi em Angola.
Na madrugada de 31 de Outubro dirigentes e apoiantes da UNITA
foram chacinados em Luanda (foto Revista Expresso)

O Savimbi da etapa final era impiedoso e estava pronto a sacrificar centenas de vidas pela sua causa. Savimbi queria, acima de tudo, estar no comando - e este desejo de um controlo total tinha atingido proporções patológicas. Era também altamente caprichoso - e, face a diversos reveses militares, começou a assacar todas as culpas aos seus comandantes.
Cientes do futuro que lhes estava reservado, muitos deles acabaram por desertar para as fileiras do Governo, onde eram devidamente recompensados compostos aliciantes. Muitas famílias importantes da etnia ovimbundo, a maior de Angola, confiavam em Savimbi e entregavam-lhe os seus filhos. Por ocasião da sua morte, muitos destes falaram mal dele. Muitos perceberam que Savimbi queria implantar um estado totalitário em Angola. Não foi o Governo angolano enquanto tal que destruiu o falecido líder da UNITA; Jonas Savimbi foi o pior inimigo de si próprio. Isto explica a estranha apreensão da elite governamental de Angola na sequência da morte de Savimbi: agora que o papão nacional desapareceu eles terão de provar do que são capazes. Por exemplo, será que vão continuar a desviar a riqueza da nação para contas em bancos estrangeiros, será que vai haver uma verdadeira democracia nos assuntos do Estado?
O Savimbi da última fase nunca poderia ter-se adaptado a uma sociedade digna e com regras
Mas como é que Savimbi, o nacionalista empenhado, se transformou num potencial ditador africano? Há muitos anos que, como ovimbundo que sou, me interrogo como foi possível que uma pessoa que eu tanto admirei se tivesse transformado numa de quem me envergonho de dizer que fui colaborador.
Ninguém duvida de que era um homem extremamente inteligente, cuja capacidade de trabalho e boa memória o colocaram acima dos outros. Trabalhei durante pouco tempo como tradutor no gabinete de Savimbi - e não hesito em dizer que ele foi uma das pessoas mais brilhantes que conheci. Foi também muito corajoso até ao fim. Foi isto, inevitavelmente, que levou muitas pessoas - especialmente da etnia ovimbundo, a maior de Angola - a segui-lo. Contudo, ultimamente, muitos ovimbundos começaram a perder a fé nele. Isto não significa que tenham agora começado a aceitar a cleptocracia de Luanda - com as suas passagens de modelos e sumptuosas mansões em Palm Beach contrastando com tanta miséria. O que acontece é que tinham seguido um líder com muitos defeitos e que lhes estava a sair demasiado caro.
Savimbi morto (foto Revista Expresso)
Primeira Campa de Savimbi no cemitério do Moxico (foto Net)
Jonas Savimbi tinha profetizado em diversas ocasiões a sua morte. Num discurso na Jamba, então o quartel-general da UNITA no leste de Angola, disse que iria morrer de morte violenta. Em vida, Savimbi já se tinha tornado numa lenda. Na morte, poderá, para muitos dos seus ardentes apoiantes, tornar-se no perfeito mártir. Tanto a UNITA como o MPLA têm heróis - alguns são uma pura criação dos departamentos de propaganda - que disseram terem posto o interesse colectivo acima dos seus interesses individuais. No entanto, todos concordam que Savimbi se manteve fiel aos seus princípios - ou seja, a conquista do poder - até ao último momento. Não parou de disparar mesmo depois de sete balas se terem alojado no seu corpo.
*escritor angolano

rubelluspetrinus.com.sapo.pt




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