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(Alexandre Abreu, in Expresso Diário, 12/09/2019)
A influência nociva da extrema-direita no sistema político faz-se sentir por duas vias principais: através do crescimento do seu próprio peso eleitoral e através da penetração do discurso e prática dos partidos relativamente mais ao centro. Em Portugal, felizmente, ambos os fenómenos têm tido pouco sucesso: os partidos de extrema-direita têm um significado negligenciável e o principal episódio até agora de deriva para a extrema-direita por um partido tradicional do sistema político português, protagonizado por Nuno Melo e pelo CDS nas eleições europeias deste ano, foi severamente punido pelo eleitorado.
No conjunto da União Europeia, a história é bem diferente, particularmente no que se refere à questão migratória. A construção da Europa-fortaleza não foi protagonizada por outros que não os partidos do centro político europeu. O cemitério do Mediterrâneo não é menos brutal e desumano do que o projecto de muro norte-americano que tanta revolta internacional provoca, mas é no essencial consequência de decisões políticas, no sentido de impedir o acesso ao continente europeu por vias seguras e normais aos requerentes de asilo e candidatos à imigração, que precedem a ascensão da extrema-direita nos últimos anos. O enquadramento institucional da questão migratória no domínio da justiça e segurança, ao invés por exemplo do domínio dos direitos humanos e assuntos sociais, remonta há cerca de duas décadas e não teve a extrema-direita como protagonista.
Em todo o caso, não há dúvida que a ascensão da extrema-direita nos últimos anos tem reforçado as tendências xenófobas e securitárias do centro político. Um dos exemplos mais chocantes disto mesmo – o chamado “delito de solidariedade”, ou seja, a criminalização da prestação de auxílio a migrantes em situação irregular –, que associamos particularmente à Itália de Salvini devido aos paroxismos que aí atingiu, é hoje uma realidade em numerosos países, incluindo a França do supostamente liberal e cosmopolita Macron. O discurso xenófobo e identitário não se limita hoje à extrema-direita, tendo ocupado a generalidade do centro político europeu, incluindo o discurso e prática institucionais da própria União Europeia.
Daí que a decisão agora anunciada da nova chefe da Comissão Europeia Ursula von der Leyen de dar à pasta dos assuntos migratórios a designação de “Protecção do nosso modo de vida europeu”, que outrora provocaria calafrios pelas conotações que comporta, já surpreenda relativamente pouco. Está tudo errado nesta designação: a ideia essencialista e falsa de que existe um único e imutável “modo de vida europeu”; a ideia que a população do continente se encontra sob ameaça existencial e necessita de protecção; e a ideia que os protagonistas dessa ameaça são os migrantes e requerentes de asilo.
A despeito do suposto contraste entre cosmopolitismo liberal e nativismo de extrema-direita, a convergência entre o centro político e a extrema-direita no sentido da construção de um consenso xenófobo e securitário prossegue aceleradamente, contando hoje com poucos opositores. É um consenso funcional para muitos interesses: cria um bode expiatório útil para o sentimento de insegurança social crescente, ao mesmo tempo que a vulnerabilidade em que deixa muitos migrantes em situação irregular facilita a sua sobre-exploração no mercado de trabalho. É este o caminho que leva a União Europeia em 2019 e os sinais dados pela nova Comissão apenas permitem temer que tudo continue a piorar.
A influência nociva da extrema-direita no sistema político faz-se sentir por duas vias principais: através do crescimento do seu próprio peso eleitoral e através da penetração do discurso e prática dos partidos relativamente mais ao centro. Em Portugal, felizmente, ambos os fenómenos têm tido pouco sucesso: os partidos de extrema-direita têm um significado negligenciável e o principal episódio até agora de deriva para a extrema-direita por um partido tradicional do sistema político português, protagonizado por Nuno Melo e pelo CDS nas eleições europeias deste ano, foi severamente punido pelo eleitorado.
No conjunto da União Europeia, a história é bem diferente, particularmente no que se refere à questão migratória. A construção da Europa-fortaleza não foi protagonizada por outros que não os partidos do centro político europeu. O cemitério do Mediterrâneo não é menos brutal e desumano do que o projecto de muro norte-americano que tanta revolta internacional provoca, mas é no essencial consequência de decisões políticas, no sentido de impedir o acesso ao continente europeu por vias seguras e normais aos requerentes de asilo e candidatos à imigração, que precedem a ascensão da extrema-direita nos últimos anos. O enquadramento institucional da questão migratória no domínio da justiça e segurança, ao invés por exemplo do domínio dos direitos humanos e assuntos sociais, remonta há cerca de duas décadas e não teve a extrema-direita como protagonista.
Em todo o caso, não há dúvida que a ascensão da extrema-direita nos últimos anos tem reforçado as tendências xenófobas e securitárias do centro político. Um dos exemplos mais chocantes disto mesmo – o chamado “delito de solidariedade”, ou seja, a criminalização da prestação de auxílio a migrantes em situação irregular –, que associamos particularmente à Itália de Salvini devido aos paroxismos que aí atingiu, é hoje uma realidade em numerosos países, incluindo a França do supostamente liberal e cosmopolita Macron. O discurso xenófobo e identitário não se limita hoje à extrema-direita, tendo ocupado a generalidade do centro político europeu, incluindo o discurso e prática institucionais da própria União Europeia.
Daí que a decisão agora anunciada da nova chefe da Comissão Europeia Ursula von der Leyen de dar à pasta dos assuntos migratórios a designação de “Protecção do nosso modo de vida europeu”, que outrora provocaria calafrios pelas conotações que comporta, já surpreenda relativamente pouco. Está tudo errado nesta designação: a ideia essencialista e falsa de que existe um único e imutável “modo de vida europeu”; a ideia que a população do continente se encontra sob ameaça existencial e necessita de protecção; e a ideia que os protagonistas dessa ameaça são os migrantes e requerentes de asilo.
Se os cidadãos e povos da União Europeia necessitam de protecção contra alguma coisa, é contra a erosão da democracia e as derivas autoritárias que têm vindo a ter lugar em muitos deles, contra a ameaça das alterações climáticas e contra a desigualdade, pobreza e desprotecção social associadas a décadas de desmantelamento neoliberal do Estado social.Se há algo que vale a pena identificar e proteger no “modo de vida europeu”, são os valores da solidariedade e da humanidade. Se há alguém que deva ser objecto dessa solidariedade, e não de perseguição e criminalização, são aqueles que fogem da guerra, da perseguição e da pobreza.
A despeito do suposto contraste entre cosmopolitismo liberal e nativismo de extrema-direita, a convergência entre o centro político e a extrema-direita no sentido da construção de um consenso xenófobo e securitário prossegue aceleradamente, contando hoje com poucos opositores. É um consenso funcional para muitos interesses: cria um bode expiatório útil para o sentimento de insegurança social crescente, ao mesmo tempo que a vulnerabilidade em que deixa muitos migrantes em situação irregular facilita a sua sobre-exploração no mercado de trabalho. É este o caminho que leva a União Europeia em 2019 e os sinais dados pela nova Comissão apenas permitem temer que tudo continue a piorar.
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