Poucas histórias são mais tristes que a do whiskey irlandês. Imagine se o vinho ou aguardente a bebida de nossa nação, deixasse de ser produzida? Imagine se, após um longo e turbulento período de crise em Portugal, todas as nossas destilarias fossem à falência e deixassem de existir?
Pois é. Foi exatamente isso o que aconteceu com a Irlanda. No século 19, mesmo com o país tendo passado pela grande fome e sobrevivido ao maldito movimento Temperance, que pregava a abstinência do álcool, o whiskey conseguiu se manter como uma de suas grandes indústrias. A grande fome, aliás, foi uma das maiores desgraças humanitárias que ocorreram no século 19. A população, muito dependente de batatas, viu sua produção ser dizimada por uma praga. O Reino Unido tomou uma série de medidas esdrúxulas que só pioraram a situação, levando à morte de mais de um milhão de pessoas e obrigando outro milhão a partir, emigrando principalmente para os Estados Unidos.
Duas coisas ajudaram e muito o whiskey a tomar o lugar do conhaque como o destilado mais consumindo no mundo. Primeiro, o Napoleão tocando o terror na Europa. Num primeiro momento de triunfo militar a bebida francesa até tomou algum impulso; porém, com as derrotas, as coisas começaram a se complicar para o conhaque. O segundo ponto e ainda mais impactante, os produtores de whiskey contaram com a ajuda daquele insecto tinhoso destruindo todos os vinhedos do mundo.
E a derrocada? Com certeza, uma das razões foi o purismo e a falta de vontade de se adaptar aos novos tempos e adoptar novas tecnologias. No caso, a tal tecnologia era a destilação em coluna que citei anteriormente, que havia sido criada no próprio país, por um irlandês inspector de alfândega, o Aeneas Coffey. No caso, em vez de precisar destilar a bebida duas ou três vezes, o líquido poderia ser destilado uma única vez, num processo contínuo muito mais exacto. Porém, o sujeito foi rechaçado e acabou levando sua invenção para a Escócia. Em pouco tempo, começaram a aparecer os blended scotch whiskies. E foi assim que surgiu a grafia whiskey para o destilado dos irlandeses que, ultrajados com seus primos escoceses, acabaram por adoptar a letra a mais para não serem confundidos com o rival.
Desde a grande fome, em meados do século 19, as coisas andavam meio azedas entre a Irlanda e o Reino Unido. Após uma porção de medidas impopulares por parte da Coroa, a situação piorou de vez e a Irlanda entrou em guerra pela independência bem na época da Primeira Guerra Mundial. Com o desgaste da Grande Guerra, a Inglaterra não conseguiu administrar a sua situação interna, culminando com a proclamação da independência dos irlandeses.
A partir daí as coisas começaram a piorar para a indústria do whiskey no país. Assim que se separaram, começou uma outra guerra entre a Inglaterra e a Irlanda, dessa vez comercial. Perderam o comércio com todo o império britânico, o que significava cerca de 25% do mercado mundial na época. E para piorar, no ano de 1919, foi criada a maldita Lei Seca nos Estados Unidos. Assim, os irlandeses perderam de uma só tacada todos os seus grandes mercados. Diferente dos escoceses, com suas destilarias rurais e menores, longe das áreas metropolitanas, os irlandeses tinham construído destilarias enormes em suas cidades para atender a demanda.
Logo, aquelas fábricas se viram totalmente encalhadas e começaram a colapsar. Inúmeras destilarias desapareceram, sobrando algumas poucas, como Powers, Jameson e Paddy’s. Essas famílias resolveram então se unir, tornando-se uma única empresa, a Irish Distillers, sobrevivendo assim ao século 20. A crise foi tão periclitante que no meio do século passado existiam apenas duas destilarias na Irlanda ainda em funcionamento, a da Irish Distillers e a Bushmill’s, na Irlanda do Norte.
Porém, essa história tão desgraçada parece estar chegando ao fim. A indústria do whisky cresce no mundo inteiro e não seria diferente com o destilado irlandês. No final do século passado foi reaberta a destilaria de Cooley e o número de destilarias só aumenta, com a abertura recente da Roe & Co, Teeling, Tullamore, Slane e Waterford. Há outras que ainda estão amadurecendo seus whiskeys e que começarão a apresentar suas bebidas nos próximos anos. Enquanto isso, muitas dessas novas destilarias vem produzindo gin e vodka, para compensar o investimento que é amadurecer uma bebida por tanto tempo.
E como é o whiskey irlandês?
Para poder ser chamado de irish whiskey, o destilado precisa, obviamente, ser produzido na Irlanda. Assim como os escoceses, precisa ser envelhecido por no mínimo 3 anos e ter um teor alcóolico de, no mínimo, 40%. E a idade também precisa ser sempre referente ao barril de whiskey mais novo utilizado na composição. Há quatro tipos de whiskey irlandês: single pot still whiskey, single malt whiskey, grain whiskey e blended whiskey.
Single pot still whiskey
No século 19, o principal tipo de whiskey irlandês era o single pot still whiskey, que consiste na destilação geralmente tripla em alambique de cobre de uma mistura de malte e cevada não maltada, eventualmente acompanhada de outros grão também não maltados, como trigo, milho e centeio. Tal combinação faz com que o whisky irlandês seja mais picante e cremoso. E para um whiskey poder ser chamado de single pot still, é obrigatório que seja produzido na Irlanda. Na composição do whiskey, é necessário que tenho no mínimo 30% de malte e 30% de cevada não maltada.
Esse estilo de whiskey foi criado no final do século 18, quando os ingleses resolveram aumentar a taxação do malte. Assim, os irlandeses produtores de whiskey, querendo manter algum lucro, resolveram adicionar a cevada não maltada e ainda não tributada à mistura. Tal gambiarra, no final das contas, se mostrou maravilhosa e, assim, o single pot still whiskey se tornou a quinta essência do whiskey irlandês.
Esse estilo delicioso de whiskey só não foi extinto graças ao Master Distiller Barry Crockett, da destilaria New Midleton, a mesma que produz o Jameson e comandada pela Irish Distillers. Por muito tempo, só existiam duas marcas de single post still, o Redbreast e o Green Spot. Actualmente, o mercado já conta com uma variedade razoável de marcas deste tipo de whisky. Até mesmo marcas que haviam abandonado esse estilo voltaram a produzir tiragens de Single Pot Still, como Powers e Midleton.
Single Malt Whiskey
Aqui, não há nenhuma diferença em relação ao single malt escocês. Aqui, só pode ser utilizado malte de cevada. A bebida precisa ser destilada duas ou três vezes e não costuma ser defumada. A única excepção é o Connemara, que se assemelha muito aos whiskies de Islay. Enquanto que o single pot still quase desapareceu, esse estilo de single malt, impulsionado pelos escoceses, passou a ser muito difundido na Irlanda. Bushmill’s e Tyrconnell são bons exemplos de single malt irlandês. Como o whiskey irlandês quase desapareceu, ainda não é possível mapear os diferentes estilos de sabores.
Grain Whiskey
Apesar de terem refutado inicialmente o uso da destilação em coluna, os produtores irlandeses precisaram se adaptar aos novos tempos. Agora, todas as destilarias produzem grain whiskey; principalmente para abastecer a produção de seus blended whiskeys e, eventualmente, até os vender engarrafados. Assim como os escoceses, também adotam o termo single grain whiskey, que significa ser um produto de uma única destilaria e não de um único grão. Para ser um grain whiskey, a bebida precisa conter no máximo até 30% de malte em sua mistura de grãos, sendo o milho o mais comum de todos. Há vários bons single grain whiskeys irlandeses, como Kilbeggan, Greenore e Teeling.
Blended Whiskey
Aqui, não tem muita regra. para ser um blended irlandês, basta misturar dois dos estilos de whiskey que citei acima. Pode até misturar os três. Com a decadência tão lazarenta do whiskey irlandês, marcas que eram reconhecidas por seu single pot still whiskey acabaram por se tornar blended whiskeys, como Jameson, Powers e Midleton. Mesmo que atualmente todas estas marcas produzam tiragens de single pot still, o blended continua como chefe.
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