AVISO

OS COMENTÁRIOS, E AS PUBLICAÇÕES DE OUTROS
NÃO REFLETEM NECESSARIAMENTE A OPINIÃO DO ADMINISTRADOR DO "Pó do tempo"

Este blogue está aberto à participação de todos.


Não haverá censura aos textos mas carecerá
obviamente, da minha aprovação que depende
da actualidade do artigo, do tema abordado, da minha disponibilidade, e desde que não
contrarie a matriz do blogue.

Os comentários são inseridos automaticamente
com a excepção dos que o sistema considere como
SPAM, sem moderação e sem censura.

Serão excluídos os comentários que façam
a apologia do racismo, xenofobia, homofobia
ou do fascismo/nazismo.

domingo, 15 de setembro de 2019

A avó triste, as vinganças e a luz nas ruas de A-da-Beja – ou como o povo se serviu da PIDE

Estudo de investigador do ICS revela cartas de denúncia e pedidos à polícia política do Estado Novo. Inveja, vingança, pobreza, “maus costumes”, clientelismo e até vigarice – razões não faltam.








Situada numa colina alta e soalheira, A-da-Beja tem vista desafogada que abarca parte do estuário do Tejo e as serras de Monsanto e de Sintra; nos anos sessenta ainda pertencia ao concelho de Sintra e ali, uma zona pobre nas franjas da capital, vivia-se sobretudo da agricultura de subsistência e da criação de animais. 
A aldeia foi crescendo, mas a promessa de ter iluminação pública não era cumprida. 
Quando um oficial da PIDE ali arrendou casa para os fins-de-semana e férias (como era costume nas zonas de Caneças, Queluz, Belas, Sintra), a população terá visto nele o meio para conseguir luz nas ruas. 
Não se sabe se conheciam de facto a profissão de António Faria Pais ou se apenas que era “um senhor” com acesso ao poder de Lisboa. Mas o pedido fez o seu caminho: Faria Pais escreveu ao inspector superior Agostinho Barbieri Cardoso, muito próximo de Salazar, que levou o assunto ao presidente do Conselho, em cujo arquivo está a carta do oficial. Em menos de um mês a secretaria de Estado da Indústria respondia a Faria Pais que o pedido seria “atendido” nesse ano.



Esta é apenas uma das histórias perceptíveis a partir da centena de cartas consultadas nos arquivos da PIDE e de Salazar, pelo investigador Duncan Simpson, do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. O projecto de investigação de Duncan, financiado pela Comissão Europeia através de uma Bolsa Marie Curie, é estudar a “relação de baixo para cima entre a população e a PIDE” na última década do Estado Novo, segundo descreve ao PÚBLICO. Não se trata da interacção entre a polícia política e os opositores ao regime, os que foram perseguidos ou presos; também não envolve os informadores ou colaboradores formais. É, sim, sobre como cidadãos sem qualquer vínculo ou relação com o regime, se dirigiram à sua estrutura política ou policial através de cartas de denúncia, de comportamentos alegadamente anti-regime e de pedidos diversos.



O Estado Novo instaurou um ambiente de medo mas “a larga maioria da população não foi alvo de perseguição nem fez oposição ao regime”, descreve Duncan, que classifica esta larga fatia como os “portugueses comuns”. E a sua relação com o regime é “multifacetada”, acrescenta, e não apenas de “vítimas passivas”.

O exercício pode levar a mal-entendidos, admite Duncan, que garante: “Não quero, de forma alguma, minimizar ou branquear a acção da PIDE.” “É importante manter a memória da perseguição, da repressão, da violência. Porém, há uma zona cinzenta de inter-relação entre a sociedade e a polícia política que está pouco estudada e que é essencial para perceber o papel da PIDE na manutenção da durabilidade do regime.”. E insiste: 
“A normalização do quadro institucional do regime e da sua forma de actuar contribuiu decisivamente para que este se mantivesse tantos anos.”



Em 1951, já o ministro do Interior, Trigo de Negreiros, que tutelava a PIDE, se queixava da quantidade de cartas de denúncia. Cada caso era registado e investigado pela PIDE, originando um processo. Em boa parte é possível perceber a conclusão.
Actualmente, essas cartas estão dispersas por vários arquivos e anexas a ficheiros pessoais e colectivos, mas sem estar sistematizada – ou seja, não há arquivos que as agreguem. A partir de cerca de cem cartas que encontrou no arquivo 219, no arquivo do presidente do Conselho e no registo de correspondência do Ministério do Interior – e apenas em poucas semanas de consulta –, o investigador identificou “quatro formas de relacionamento e interacções espontâneas”.

Vingança

Entre as cartas há casos de agenda pessoal em que o denunciante procura resolver conflitos pessoais vingando-se, por exemplo, de um vizinho ou colega de trabalho. Ao ver-lhe recusada a entrada num bar na Póvoa de Varzim durante o Carnaval, um anónimo denunciou o porteiro como alguém com actividades subversivas na região. A PIDE investigou-o e concluiu que o porteiro até era de uma família amiga do regime e que criara muitos inimigos no Carnaval ao deixar muitos à porta, conta Duncan Simpson.
Tal como o caso de Armando Alves, empregado na tipografia portuense Lello e Irmão, acusado de forma anónima de distribuir panfletos de propaganda comunista… que afinal andava em guerra com vizinhos por causa de um muro e que era alvo de inveja por ter sido promovido e até ter alugado um apartamento barato ao Governo. Ou o de Augusto Dolores, de Santa Marta de Penaguião, denunciado por falar contra Salazar, depois de ter ganho a lotaria do Santo António.

A sede de vingança estava, por vezes, dentro da família, como se percebe em várias cartas cujo contexto é o fim do casamento. Ao ser abandonado pela mulher, Amândio dos Santos, da Baixa da Banheira, denunciou-a como elemento do Partido Comunista Português; e há outro marido, de apelido Pinheiro, que pede à polícia que impeça a mulher de emigrar. Também há casos de mulheres que fazem o mesmo em relação aos maridos e de emigrantes (ou candidatos frustrados a sair do país) que acabaram por denunciar os passadores em engajadores que os enganavam ou os deixavam sem apoio a meio do caminho.


 Imoralidades e comunistas

No espólio, Duncan encontrou também diversas cartas de “denúncia genuína”, ou seja, de apoiantes do regime que denunciavam “desvios da norma”, fossem políticos ou morais (com atentados aos “bons costumes”). Como o caso de uma
 assinada por uma “Avó triste”, que conta ter visto a neta de 30 anos (“que nunca namorou”) a ler o livro Liberdade de Amar, com um conteúdo “nojento” de “ensinamentos para as mulheres da vida mas do pior”. A mensagem não é contra a neta mas uma crítica ao livro que “está à venda” ao público.

O regime procurou vincar a sociedade com campanhas de defesa das virtudes morais e dos bons costumes e a Igreja Católica teve um papel primordial no seu enraizamento. É por isso que entre as cartas de denúncia se encontram algumas assinadas por párocos, que se viam como polícias da moralidade. Como a do padre de Vila Nova de Foz Côa, Manuel Castilho, falando na circulação de fotos pornográficas na região, ou o de Folgosa do Douro, João da Silva, queixando-se de um estilo de vida escandaloso de algumas paroquianas.

Uma acusação comum em muitas cartas é a participação no movimento comunista, consequência directa da propaganda anti-comunista do regime. É comum a referência a comportamentos subversivos e ideias comunistas, a discordância da ideologia do regime e até situações caricatas. Como o caso de António Jorge e Jerónimo Bernardes, de Alpiarça, denunciados por Rufino Sebastião que pedia a intervenção da PIDE “a bem da Nação” (a assinatura do regime) para travar a acção dos dois e os prender porque estavam a dar mau nome à vila ao espalharem a sua ideologia comunista. Bernardes até havia baptizado o seu cão como Salazar.

Ter um emprego
Num país com um nível de pobreza elevado e um mundo laboral com poucos direitos (que era essencialmente na agricultura ou nas cinturas industriais das grandes cidades), colaborar com a PIDE era visto como um porto seguro. Em 1974 a Comissão de Extinção da PIDE/DGS apontava para 20 mil informadores pagos.

Entre as cartas de denúncia, Duncan Simpson encontrou também muitas em que os cidadãos se propunham colaborar de alguma forma com a PIDE – os informadores ganhavam um salário mensal, os colaboradores recebiam consoante a quantidade e importância da informação que davam. Nas cartas, um rapaz de Marco de Canavezes apresenta-se como “simples mas honesto”, outro de Lousada diz-se “bom filho da Pátria”, e um do Funchal mostra a “vontade de prender os que falam contra o Governo”. Mas também há quem se oferecesse para as limpezas, secretariado ou mecânico das viaturas.

Em nome da PIDE
O medo generalizado da polícia política levou a que alguns se aproveitassem disso. Foi o caso de um editor livreiro que enviou a escritórios de advogados, livrarias e outros comerciantes exemplares da obra de propaganda Trinta Anos do Estado Novo, livro publicado em 1958, que glorificava o regime. A quem recusava comprar, José de Oliveira enviava uma carta ameaçando “chamar a atenção” de certos organismos oficiais para o que aquela pessoa pensava. Mas um advogado portuense fez uma denúncia à PIDE, que considerou que o livreiro um oportunista que estava a fazer a chantagem.

Mover influências
A-da-Beja é um caso evidente de “clientelismo” entre o povo e a PIDE, aponta Duncan, e o oficial era visto como uma espécie de “patrocinador”. O investigador do ICS acredita que a população conseguisse saber quem era realmente Faria Pais porque nem a PIDE fazia segredo dos seus quadros – isso acontecia, sim, com muitos informadores e colaboradores – nem os próprios se eximiam de gostar de mostrar o seu poder. E também é certo que essas informações circulavam entre a população, mesmo entre a mais pobre e iletrada.

“Podemos interpretar a atitude de Faria Pais como uma forma de agradar à população. Tanto pode ser de uma forma genuína e na carta que envia a Barbieri até justifica que se trata de gente pobre que não tem a quem recorrer. Mas também poderia ter uma intenção de criar uma relação de dependência, submissa, colaborante por parte daquela população”, admite Duncan Simpson.
Este género de relação entre a polícia política e a população, em que a primeira é vista como um mediador (até mesmo solucionador) de conflitos ou uma entidade intermediária não é particular a Portugal, acrescenta. O mesmo aconteceu na Itália fascista com a OVRA e na República Democrática Alemã, com a Stasi.


público.pt

Sem comentários: