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domingo, 3 de fevereiro de 2019

O jornalismo, a manipulação e a censura

Há poucas semanas os jornalistas portugueses reuniram-se no seu 4.º Congresso, com a presença de cerca de setecentos profissionais. É um acontecimento que se saúda e se há algo a estranhar é o vazio de quase duas décadas em que ele não se realizou.
CréditosAntónio Cotrim / Agência Lusa
Vejo, naturalmente, os jornalistas e o jornalismo de fora, como «cliente» de jornais, da rádio e da TV. Leitor do Primeiro de Janeiro nos mais verdes anos, do República, do Diário de Lisboa, do Expresso, do Público, do Le Monde Diplomatique, para referir os mais conhecidos. Relembro uma revista internacional que me faz falta. A velha Afrique-Asie, do falecido Simon Malley (antes de mudar de dono).
Foi nela que, nos anos setenta, vi denunciado o escândalo dos diamantes que, Bokassa, o «imperador» canibal da República Centro-Africana, ofereceu ao seu protector, o presidente francês Giscard D´Estaing.
Poucos falaram desses diamantes de sangue quando, em 2002, o aristocrata Giscard regressou à primeira linha mediática com a sua «Constituição Europeia», depois recusada em referendo pela França e pelos Países Baixos, que passou a Tratado de Lisboa sem mais incómodos.
E esse apagamento do passado é muitas vezes utilizado para anestesiar a compreensão da realidade pelos cidadãos.
O Seminário Diplomático Anual, também realizado há poucas semanas, teve, no seu programa, «o debate incontornável» sobre a harmonização fiscal na Europa (Público, 5-1-17).
É necessário evitar «os estados continuarem a concorrer entre si através de uma competitividade fiscal puxada para baixo e muitas vezes na margem da contemporização com a mais escancarada e escandalosa evasão fiscal», como afirmou o ministro Augusto Santos Silva.
A verdadeira ironia, contudo, encontrava-se no convidado de honra do Simpósio: Jean Paul Junker. O actual presidente da Comissão Europeia é, como se sabe, um maestro da fuga ao fisco, a estrela maior do escândalo «Luxleaks», mas desse seu menos edificante passado pouco se falou.
Voltamos, pois, às «falhas de memória» e «omissões» dos jornalistas, por vezes forçados à amnésia para se manterem na profissão.
Notícias como a do «acordo entre os patrões e os sindicatos», no Conselho da Concertação Social, sem que a CGTP, a principal central sindical, o tenha assinado, tornaram-se uma espécie de «pós-verdade» repetida, que deforma a percepção do que realmente se passa no país.
«Em todos os conflitos há, naturalmente, abordagens divergentes mas é a ausência de diferenças significativas nas notícias, a unanimidade no tratamento editorial, na repetição continuada dos mesmos títulos e "chavões", que reflecte o poder condicionador dos grandes meios de comunicação social.»
Também a tentativa do governo de compensar os patrões com dinheiro da Segurança Social (baixa da TSU) pareceu esquecer a habitual «preocupação» do PS, PSD e CDS sobre a sua sustentabilidade, mostrando a hipocrisia com que se usa esse argumento, pouco denunciada nos principais órgãos da nossa comunicação social.
A manipulação é ainda mais marcada em política externa. Quase sempre a linguagem dos media não tem o mínimo de rigor e projecta-se em ondas de pensamento único que parecem abafar qualquer espírito crítico.
Falar de Milosevic, o conciliador ex-dirigente jugoslavo como um facínora genocida, ou colar a Assad, presidente do regime laico da Síria, o rótulo de impiedoso ditador e de ameaça à paz da região, quando ainda há pouco era considerado um dos mais «civilizados» dirigentes do Médio Oriente (Sarkozy recebeu-o em 2002 com todas as honras de Estado), são bons exemplos desse contorcionismo jornalístico.
Neste jogo de sombras, os relatos iniciais dos enviados ao local, por vezes mais próximos da verdade, são frequentemente depois esquecidos.
No início da «revolta» da Praça de Maidan, a enviada especial do Público a Kiev, na Ucrânia, identificou e entrevistou dirigentes e militantes das organizações neonazis que a protagonizaram (Svoboda, Sector Direito), descrevendo factos e afirmações que confirmavam a sua ideologia fascista, anticomunista e anti-semita.
Também o general Loureiro dos Santos considerou a crise da Ucrânia uma «resposta (da Rússia) à iniciativa alemã de controlar o importante espaço geopolítico ucraniano, ao financiar extremistas que fizeram a revolta em Kiev e derrubaram o Presidente Ianukovich» (Público, 16-5-07).
Mas o apoio da Alemanha e do «Ocidente» aos neonazis que derrubaram o governo democraticamente eleito, e a reconhecida intenção de «expansão da Nato em direcção às fronteiras da Rússia», que Loureiro dos Santos também referia no seu artigo, acabaram por ser convenientemente esquecidos, estabelecendo-se o «consenso» repetido ad nauseam, de que o que aconteceu foi uma «agressão russa», justificando abusivas sanções económicas e o recente avanço para a Polónia de 4000 soldados americanos, uma das últimas decisões do agora branqueado Obama.
A História é rica em episódios inventados que levaram a guerras e tragédias indescritíveis, do incêndio do Reichtag, por Hitler, ao inventado «incidente do Golfo de Tonkin», que serviu a Kennedy para a escalada no Vietname, passando pelas «armas químicas» invocadas no Iraque, na Líbia e na Síria para justificar as neocoloniais agressões do «Ocidente» e dos USA, já esquecido das toneladas de «desfolhante laranja» com que envenenou o Vietname e que ainda hoje causa vítimas.
Em todos os conflitos há, naturalmente, abordagens divergentes mas é a ausência de diferenças significativas nas notícias, a unanimidade no tratamento editorial, na repetição continuada dos mesmos títulos e «chavões», que reflecte o poder condicionador dos grandes meios de comunicação social.
E nessa ofensiva ideológica vale tudo, principalmente em política internacional, porque o alvo é a maioria mal informada que acredita nas mais toscas mentiras que se referem a uma realidade longínqua que muitas vezes pouco lhe diz.
Foi certamente essa a razão que levou o pivot de uma televisão nacional a iniciar a entrevista a Jerónimo de Sousa, na última campanha eleitoral para a Assembleia da República, com uma pergunta sobre a Coreia do Norte. Alguém conhece um português que se preocupe, nem que seja um minuto por dia, com o que se passa nesse distante e mal conhecido país?
A evidente patetice da pergunta apenas põe em evidência que se quis «apanhar» o entrevistado numa resposta redutora que cometa o «pecado» de contrariar o juízo ideológico pré-formado sobre uma realidade complexa, que o próprio entrevistador seguramente desconhece.
Ao longo dos anos, os media nacionais impingiram a falsa ideia de que os partidos fora do «arco do poder» eram demasiado «radicais», desprezando as responsabilidades da governação, não pertencendo, por isso, à ordem «normal» da democracia.
Explorando esse enviesado conceito, esses partidos (particularmente o PCP), foram (e são) excluídos de colóquios, debates e entrevistas, apesar de terem representação parlamentar, mantendo-se essa descriminação mesmo depois de terem passado a ser o suporte da actual solução governativa.
Exemplo disso, o mais antigo programa de debate político, «A quadratura do Círculo», que de início tinha uma imagem de pluralismo contando com representantes de todos os partidos com assento parlamentar, rapidamente se reduziu apenas aos do «arco do poder», ele mesmo um perverso conceito inoculado pelos media.
As mesmas manhas, mais descaradas ou bastante subtis, reflectem-se na distorção dos números das greves e das manifestações da esquerda ou, no plano internacional, abafando o protagonismo de candidatos mais progressistas como Mélanchon ou mesmo Hamon (França), Jeremy Corbyn (Inglaterra), Bernie Sanders (USA), substituídos nos noticiários por requentados nomes do conservadorismo neoliberal, apresentados como única alternativa à pouco «civilizada» extrema-direita ultramontana, agora também encarnada por Trump.
Uma parte importante da informação política representa apenas a repetição papagueada de uma qualquer central de propaganda, parecendo que alguém carrega num botão ficando depois a assistir à onda que se espalha pelos títulos dos jornais e dos noticiários da rádio e da TV, infiltrando-se nos programas da manhã, nos comentadores da tarde e nos talk shows da noite.
Naturalmente que os jornalistas não têm nenhuma condição genética que os faça especialmente ignorantes, desmemoriados ou piores que quaisquer outros profissionais. Apenas se adaptam (melhor ou pior) àquilo que lhes ensinam e às condições criadas num sector ideologicamente estratégico, confrontados com a insegurança no emprego e as pressões das chefias.
Segundo dados fornecidos no seu 4.º Congresso, em cada dez jornalistas no activo, seis (60%) ganham menos de mil euros, cinco (50%) têm vínculo precário, quatro têm recibos verdes, quatro têm medo de perder emprego e só um tem mais de 55 anos.
São eles o elo mais fraco de uma cadeia de interesses poderosos. Mas, alguns, apesar disso, resistem, enquanto outros cumprem o triste trajecto traçado pelas chefias para quem tudo está bem e «não há crise».
«Os jornalistas só têm poder se nunca se vergarem aos poderes»
MARCELO REBELO DE SOUSA
Há alguns anos, um jovem repórter contratado para produzir um vídeo sobre a história do “velho” Hospital Pediátrico, entrevistou-me.
Falei-lhe das diferentes etapas do desenvolvimento do hospital e, de passagem, referi uma «histórica» manifestação de médicos e enfermeiros, em 1997, que levou à construção de um novo Bloco Operatório pré-fabricado, resolvendo um bloqueio que se arrastava.
O protesto teve um inesperado impacto mediático, com a fotografia dos cirurgiões de mãos abertas, a aparecer nas primeiras páginas dos jornais e na TV. Para meu espanto, o jovem jornalista, respondeu-me: «Ah! Isso não pode ser! É muito polémico!».
Na verdade, ele nunca tinha ouvido falar do assunto. Apenas o considerou «polémico», talvez por a palavra «manifestação» lhe causar alguma alergia. Bem tentei convencê-lo de que não levantaria qualquer problema. Nada fez vacilar o seu arrepiado cérebro e a manifestação foi assim apagada da História e do vídeo.
«Os jornalistas só têm poder se nunca se vergarem aos poderes» – afirmou solenemente o Presidente Marcelo, no 4.º Congresso. Mas alguns vergam. É ver como defenderam a «austeridade» para os mais pobres, e a dificuldade que tiveram em engolir um governo com maioria parlamentar, após eleições para deputados, desconstruindo o mito da «votação para primeiro-ministro» que, durante anos, tinham construído.
A verdade, contudo, é que as bonitas frases do presidente não garantem a segurança profissional, a independência e seriedade editorial ou a tolerância democrática dos donos do dinheiro.
Defender a dignidade da profissão passa, como sempre, pela unidade dos bons profissionais.
Quando o mundo atravessa um momento particularmente perigoso, os jornalistas devem resistir e assumir uma corajosa atitude de denúncia de todas as tentativas de manipulação das consciências. A democracia não é apenas votar de vez em quando. Os cidadãos têm direito a serem bem informados.
A liberdade constrói-se também assim.

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