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(Fernanda Câncio, in Diário de Notícias, 09/02/2019)
Em 2015, a atual ministra da Justiça, Francisca van Dunem, punha, enquanto procuradora-geral distrital de Lisboa e num extenso relatório por si assinado, a hipótese de a violência doméstica e de género ser a principal causa de homicídio doloso em Portugal. Aventava percentagens na área dos 38% a 40% dos homicídios verificados.
Qualquer outra causa de homicídio intencional com a dimensão que se crê que esta tem decerto convocaria toda a energia e severidade do sistema judicial. Basta recordar as penas “exemplares” que durante anos foram aplicadas – e provavelmente serão ainda – aos crimes relacionados com drogas, por se considerar que se tratava de algo que “destruía a juventude”. Ou a forma como, na chamada criminalidade económico-financeira, e nomeadamente no que respeita a delitos relacionados com tráfico de influências, temos assistido à aplicação de penas de prisão efetiva que visam o mesmo efeito de “exemplo.”
Em contrapartida, nos crimes associados à violência de género, o país é amiúde confrontado com decisões judiciais que desvalorizam agressões e culpabilizam as vítimas – das quais os acórdãos de Neto de Moura são apenas o exemplo mais incrivelmente caricatural -, e com histórias de terror de mulheres que pediram ajuda às autoridades e foram assassinadas porque o sistema não deu resposta – é ler os relatórios, produzidos a partir de 2017, da Equipa de Análise Retrospetiva de Homicídio em Violência Doméstica.
E esses relatórios são tanto mais dolorosos quando a legislação portuguesa é considerada internacionalmente das mais avançadas nesta área. O problema é que muito do que está na lei ou nunca foi materializado ou não é aplicado. Facto que resulta no espetáculo exasperante a que assistimos de cada vez que ocorre mais uma tragédia – sobretudo se, como sucedeu na semana passada, uma das vítimas é uma criança.
É sempre como se fosse a primeira vez: fala-se da percentagem enorme de arquivamento das queixas e de recurso à suspensão provisória do processo como se não fossem conhecidas há anos; vão-se ver os números de denúncias nas ONG, a tipologia das vítimas – esmagadoramente mulheres; aventam-se soluções que estão na lei há décadas. O comunicado conjunto do governo, da PGR e da Comissão de Igualdade de Género conhecido na quinta-feira é disso um exemplo, ao falar na necessidade de “agilizar” a decisão sobre medidas de proteção nas primeiras 72 horas após a queixa (algo que está previsto na lei desde 2009 e que se sabe há muito não ser cumprido – as decisões levam meses), ao anunciar a criação de gabinetes de proteção à vítima nos Departamentos de Investigação e Ação Penal (igualmente legislados há dez anos) e a formação específica para as polícias e magistrados – agora, garante-se, “com base em casos concretos”.
Exemplo mais chocante é o dado por Miguel Ângelo Carmo, coordenador do grupo de trabalho criado em março de 2018 na PGR “para uma estratégia de combate à violência doméstica”. Em entrevista ao DN, também na quinta-feira, este procurador informa sobre um conjunto de propostas “legislativas” que a sua equipa considera essenciais. São três. Entre elas, “a possibilidade de as declarações que as vítimas prestem na fase de inquérito – quer ao Ministério Público quer perante o juiz de instrução criminal – poderem ser usadas em julgamento” e “a necessidade de existirem medidas urgentes e restritivas de afastamento dos agressores. Ou seja, que as ordens de afastamento impostas num primeiro momento pela polícia, num prazo curto de tempo, de 48 ou 72 horas, possam ser sujeitas à validação de um juiz de instrução.”
Ora o citado relatório de 2015 de van Dunem, enquanto procuradora-geral distrital de Lisboa, claramente assinala que a possibilidade de recolha de declarações para memória futura existe especificamente nos casos de violência doméstica desde 2009 e poderia já ser permitida pela lei de 1999 de proteção de testemunhas. E as medidas de proteção decretadas em 48 a 72 horas, na lei há dez anos, são cavalo de batalha das ONG que lidam com as vítimas – e que denunciam há décadas o facto de, por exemplo, a medida de afastamento do agressor da casa da família, existente desde 1991, raramente ser imposta.
Aliás percebe-se com dificuldade que tenha sido anunciada no “comunicado conjunto” mais uma equipa de trabalho, quando existe já a da análise retrospetiva, que tem feito sistematicamente recomendações em cada relatório, e a equipa da Procuradoria-Geral da República.
De quantas equipas se precisa para perceber o que está na lei e não está a ser cumprido?
De quantos relatórios precisamos para saber que algo está a correr terrivelmente mal?
Quantos acórdãos de Netos de Moura temos de ler para concluir que, como diz Elisabete Brasil, da UMAR, o Estado português é um agressor?
Em 2015, a atual ministra da Justiça, Francisca van Dunem, punha, enquanto procuradora-geral distrital de Lisboa e num extenso relatório por si assinado, a hipótese de a violência doméstica e de género ser a principal causa de homicídio doloso em Portugal. Aventava percentagens na área dos 38% a 40% dos homicídios verificados.
Qualquer outra causa de homicídio intencional com a dimensão que se crê que esta tem decerto convocaria toda a energia e severidade do sistema judicial. Basta recordar as penas “exemplares” que durante anos foram aplicadas – e provavelmente serão ainda – aos crimes relacionados com drogas, por se considerar que se tratava de algo que “destruía a juventude”. Ou a forma como, na chamada criminalidade económico-financeira, e nomeadamente no que respeita a delitos relacionados com tráfico de influências, temos assistido à aplicação de penas de prisão efetiva que visam o mesmo efeito de “exemplo.”
Em contrapartida, nos crimes associados à violência de género, o país é amiúde confrontado com decisões judiciais que desvalorizam agressões e culpabilizam as vítimas – das quais os acórdãos de Neto de Moura são apenas o exemplo mais incrivelmente caricatural -, e com histórias de terror de mulheres que pediram ajuda às autoridades e foram assassinadas porque o sistema não deu resposta – é ler os relatórios, produzidos a partir de 2017, da Equipa de Análise Retrospetiva de Homicídio em Violência Doméstica.
De cada vez que sucede mais uma tragédia, é como se fosse a primeira vez. Enumeram-se os problemas, as falhas, o que é preciso fazer. Fazem-se atos de contrição. E muda o quê?
É sempre como se fosse a primeira vez: fala-se da percentagem enorme de arquivamento das queixas e de recurso à suspensão provisória do processo como se não fossem conhecidas há anos; vão-se ver os números de denúncias nas ONG, a tipologia das vítimas – esmagadoramente mulheres; aventam-se soluções que estão na lei há décadas. O comunicado conjunto do governo, da PGR e da Comissão de Igualdade de Género conhecido na quinta-feira é disso um exemplo, ao falar na necessidade de “agilizar” a decisão sobre medidas de proteção nas primeiras 72 horas após a queixa (algo que está previsto na lei desde 2009 e que se sabe há muito não ser cumprido – as decisões levam meses), ao anunciar a criação de gabinetes de proteção à vítima nos Departamentos de Investigação e Ação Penal (igualmente legislados há dez anos) e a formação específica para as polícias e magistrados – agora, garante-se, “com base em casos concretos”.
Exemplo mais chocante é o dado por Miguel Ângelo Carmo, coordenador do grupo de trabalho criado em março de 2018 na PGR “para uma estratégia de combate à violência doméstica”. Em entrevista ao DN, também na quinta-feira, este procurador informa sobre um conjunto de propostas “legislativas” que a sua equipa considera essenciais. São três. Entre elas, “a possibilidade de as declarações que as vítimas prestem na fase de inquérito – quer ao Ministério Público quer perante o juiz de instrução criminal – poderem ser usadas em julgamento” e “a necessidade de existirem medidas urgentes e restritivas de afastamento dos agressores. Ou seja, que as ordens de afastamento impostas num primeiro momento pela polícia, num prazo curto de tempo, de 48 ou 72 horas, possam ser sujeitas à validação de um juiz de instrução.”
De quantas equipas se precisa para perceber o que está na lei e não está a ser cumprido? De quantos relatórios precisamos? Quantos acórdãos de Netos de Moura temos de ler para concluir que o Estado português é um agressor?
Aliás percebe-se com dificuldade que tenha sido anunciada no “comunicado conjunto” mais uma equipa de trabalho, quando existe já a da análise retrospetiva, que tem feito sistematicamente recomendações em cada relatório, e a equipa da Procuradoria-Geral da República.
De quantas equipas se precisa para perceber o que está na lei e não está a ser cumprido?
De quantos relatórios precisamos para saber que algo está a correr terrivelmente mal?
Quantos acórdãos de Netos de Moura temos de ler para concluir que, como diz Elisabete Brasil, da UMAR, o Estado português é um agressor?
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