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domingo, 3 de fevereiro de 2019

HISTÓRIA DA GUERRA COLONIAL - 19ª PARTE - GUERRA SUBTERRÂNEA, AS MINAS -TRAIÇÃO DE OMAR - MOÇAMBIQUE - FLORESTA DE SANGUE (CONTO) - PORTUGAL E A NATO - A POLÍTICA COLONIAL DO ESTADO NOVO E OS ALIADOS 1961-1968


Guerra subterrânea 


As minas foram as mais temidas de todas as armas que os nossos militares enfrentaram nos três teatros de operações. Utilizadas de forma isolada, ou conjugadas com emboscadas, limitaram fortemente a mobilidade das forças portuguesas em acções tácticas e logísticas, apeadas ou em viatura, sendo também responsáveis por atrasos nos reabastecimentos, por destruições em veículos e, acima de tudo, por elevada percentagem de baixas.

 

Embora a estatística não esteja feita, amostragens dos três teatros de operações permitem considerar que, no mínimo, 50 por cento das baixas portuguesas (mortos e feridos) foram provocadas por engenhos explosivos. Um tipo de guerra altamente compensador para os movimentos de libertação, cujos objectivos eram apresentados do seguinte modo, nos apontamentos de um curso frequentado na Argélia por quadros do PAIGC: «Realiza-se a guerra de destruição e de minas para fazer obstáculo atrás dos inimigos, para aniquilar as suas armas, modernas, ameaçá-los e paralisá-los.» 


Contudo a utilização das minas na guerra não foi exclusivo dos guerrilheiros, pois as forças portuguesas também fizeram largo emprego delas e de outros engenhos explosivos, usando-os na defesa das suas instalações, para proteger as tropas em operações e para provocar baixas, mas, ao contrário dos guerrilheiros, recorreram maioritariamente às minas anti-pessoais e às armadilhas com granada explosiva de fragmentação e rebentamento instantâneo, detonada através de arame de tropeçar. Por parte dos movimentos de libertação, além das minas anti-carros foram também utilizados «fornilhos», quase sempre constituídos por granadas de mão, de morteiro e de artilharia, não rebentadas, e bombas de avião conjugadas com explosivos e accionadas por mecanismo de explosão - detonador eléctrico ou pirotécnico. Os «fornilhos» eram colocados nos itinerários e conjugavam o efeito das minas anti-carros com as minas antipessoais. 


A primeira mina utilizada pelos movimentos de libertação contra as forças portugueses era antipessoal (A/P) implantada na estrada Zala-Vila Pimpa, no Norte de Angola, em 6 de Junho de 1962. 

A primeira mina anticarro (A/C) surgiu seis dias depois, em 12 de Junho de 1962, na pista da povoação do Bembe. Em 1963, a colocação de engenhos explosivos estendeu-se ao Leste e a Cabinda. 


Na Guiné, a primeira mina referenciada era anticarro, colocada na estrada Fulacunda/São João, em Julho de 1963, tendo sido aqui também utilizadas minas aquáticas nos rios, que chegaram a inutilizar lanchas. Um documento elaborado depois de uma operação realizada, em 1970, por um DFE e por uma secção de mergulhadores sapadores refere a existência de engenhos explosivos submersos colocados na confluência do rio Cobade com o rio Como, reunidos num grupo de quatro a seis flutuadores, bem como a suspeita de «outros objectos flutuando a meia água que denunciam a existência de um campo de minas estendendo-se por uma zona de cerca de seiscentos metros». 


Em Moçambique, o aparecimento de engenhos explosivos ocorreu em 29 de Maio de 1965, em Nova Coimbra, no Niassa, e em 4 Julho, em Nancatari, Cabo Delgado, enquanto a primeira mina antipessoal (A/P) surge em 14 de Junho, em Cobué (Niassa), e a primeira anticarro (AlC) em 10 de Outubro, em Sagal (Cabo Delgado), na estrada Mueda-Mocímboa da Praia. 


Ao longo dos anos da guerra, a utilização de minas por parte dos guerrilheiros nos três teatros de operações teve a máxima expressão em Moçambique. Primeiro nas zonas do Niassa e de Cabo Delgado/Mueda e, posteriormente, na de Tete/Cahora Bassa. Moçambique reunia as condições ideais para a utilização deste tipo de arma por parte da Frelimo, pois as vias de comunicação indispensáveis às forças portuguesas eram extensas e más, não existindo nas zonas de guerra estradas alcatroadas. 


Por seu lado, os guerrilheiros dispunham da vantagem de as acções bélicas se desenrolarem relativamente próximo das suas bases logísticas, o que facilitava o transporte do grande volume de cargas que a guerra de minas exige. Não admira pois, que em Moçambique os principais itinerários de reabastecimento das forças portuguesas se tenham transformado em verdadeiros campos minados. 


No início dos anos 1970, o percurso de cerca de duzentos quilómetros entre Mueda e Mocímboa da Praia, chegou a demorar onze dias, quando habitualmente era percorrido entre quatro a seis horas, e num só quilómetro de estrada encontraram-se, frequentes vezes, mais de setenta minas! 


No Niassa, nas estradas que irradiam de Vila Cabral para para Metangula, Nova Viseu ou Tenente Valadim, as minas, associadas à quase inexistência de vias, ao clima chuvoso e ao terreno ravinado, junto ao lago transformaram os movimentos necessários à sobrevivência das tropas e ao seu emprego em combate em operações de grande duração e desgaste, que esgotavam só por si as suas capacidades e lhes retiravam a iniciativa. 


É ainda em Moçambique que se regista o maior emprego de minas por parte das forças portuguesas. O general Kaúlza de Arriaga, em carta ao ministro da Defesa, Sá Viana Rebelo, em 29 de Janeiro de 1973, solicitou o fornecimento de cento e cinquenta mil minas antipessoais para Cahora Bassa e um milhão para interdição da fronteira norte, junto ao rio Rovuma. 


Num ponto de situação feito ao comandante-chefe, em Vila Cabral, foi 

referido que na zona do Niassa, em 1972, os guerrilheiros haviam 

realizado 412 acções, das quais 223 foram colocação de engenhos 

explosivos (54 por cento do total). Destas, 78 foram accionados pelas 

forças portuguesas, que sofreram 43 mortos, 51 feridos graves e 151 

feridos ligeiros.


De 1964 a Junho de 1970, foram detectadas pelas nossas tropas, 5290 

minas e engenhos explosivos, dos quais 1894 accionados por militares 

ou viaturas. 


Em Moçambique, tal como em Angola, no caminho de ferro de 

Benguela, também nas linhas férreas da Beira e de Nacala foram 

implantadas minas, que dificultaram o transporte de mercadorias e 

reabastecimentos, obrigando a complexas e desgastantes operações 

de escolta . 



                                                               

Guiné 1971 
                                            Implantadas              Neutralizadas 

Antipessoais (A/P)                  371                              324 
Anticarros (A/C)                          92                                69 
Minas aquáticas                           4                                  4 
Armadilhas                                  19                                13 
Outros                                             3                                   - 
- Total                                          489                              410 

                                                                 

Guiné 1972 
                                              

Implantadas               Neutralizadas 

Antipessoais (A/P)                    398                               295 
Anticarros (A/C)                            96                                 69 
Minas aquáticas                             -                                    - 
Armadilhas                                    11                                   2 
Outros                                             13                                   6 
- Total                                             518                              372



O significado da queda Nametil *
Rompia a manhã a 1 de Agosto de 1974, no aquartelamento do exército colonial, chamado de «Ornar», mas cuja verdadei­ra designação era Nametil. Estava no seu comando interino o alferes José Carlos Monteiro. Para eles, certamente, a guerra já tinha acabado, perdidos num ermo de Cabo Delgado, com uma vista monótona para a fronteira com a Tanzânia. Haviam mesmo começado a destruir algum material, pois estava previsto o seu encerramento. Ignoravam que eram, há muito, objecto de espe­cial atenção, e que iriam ficar registados na história.
Em Naschingwea, face ao impasse negocial, depois das fa­lhadas negociações de Junho, era necessário realizar uma acção capaz de acelerar a marcha dos acontecimentos. Escolhe-se o posto de Ornar. Estudam-se as suas envolventes e chega-se mes­mo a fazer uma maqueta do aquartelamento. Ou a operação re­sultava em pleno ou as suas consequências poderiam ser sérias e reacender a guerra, quando da parte de uma das partes existe um estado de cessar-fogo. Samora Machel, pessoalmente, estabele­ce a táctica. E recomenda, com alguma estranheza para alguns, que a acção seja gravada em som e imagem. A 31 de Julho as forças da FRELIMO, as FPLM, tinham cercado por completo o aquartelamento. Inclusivamente colocado artilharia. Era respon­sável por esta operação no terreno o comandante Salvador Mtu-muke. Bem próximo do local, numa montanha, encontravam-se, em atenta observação, o adjunto do Departamento de Defesa, Alberto Joaquim Chipande, assim como o comandante do de­partamento de Defesa de Cabo Delgado, Raimundo Pachinuapa. Tinham instalado um sistema de comunicações entre a fren­te de operações, a base de comando e a Tanzânia, onde Samora Machel aguardava com grande impaciência o desenrolar do pla­no estabelecido.
Quando rompe a aurora do primeiro dia do mês de Agosto de 1974, os cento e quarenta soldados do aquartelamento de Nametil são acordados por megafones solicitando a sua rendi­ção. Todos estes pormenores da tomada de Nametil foram gra­vados. A guarnição militar rende-se. Cento e quarenta homens são feitos prisioneiros e três conseguiram fugir. Seguirão para a Tanzânia, onde chegam a 6 de Agosto. Independentemente da controvérsia, se a rendição resultou de um equívoco ou simples­mente da tomada de decisão mais sensata do seu comandante de não combater, face à situação política que se vivia e mesmo tendo em causa a desproporção do equipamento e das armas, a tomada do quartel de Nametil não pode deixar de ser mencio­nada pelos reflexos que teve. Mais do que uma vitória militar era uma vitória política.
O presidente Spínola, com condição para uma ronda nego­cial, que se inicia a 15 de Agosto, em Dar-es-Salam, exige que a FRELIMO apresente desculpas pelo ocorrido em Ornar. Samora que engenhosamente tivera a percepção de tudo gravar, faz com que a delegação chefiada por Melo Antunes escute essa grava­ção. O que foi suficiente.
O que se passou a 1 de Agosto, nesse aquartelamento, poder-se-ia passar em qualquer outro ponto do país. Havia, da parte do exército português, a total falta de vontade de dar mais um tiro e muito menos de continuar uma guerra. Há factos indesmentíveis dessa realidade. O próprio general António de Spínola o admite e escreve que a tomada de Omar era «uma arma decisiva»494 para Samora Machel na mesa de negociações. De militar para militar efectivamente assim o foi.
494 António de Spínola, País sem Rumo – Contributo para a História de uma Revolução. Ed. Editorial SCIRE, p. 302
In MOÇAMBIQUE 1974 – O fim do Império e o Nascimento da Nação, de Fernando Amado Couto(2011)
*Omar, para as autoridades portuguesas.
NOTA:
Se se comparar este texto com o que o Comandante Almeida e Costa relata, tanto Almeida Santos, como Melo Antunes mentiram ao General Spínola, além de não lhe fazerem a comunicação imediata dos acontecimentos de 1 de Agosto de 1974.
Diz Almeida e Costa: “Não só pelas três sessões de trabalho mas, sobretudo, pelo teor das surpresas que os esperam. A começar pela notícia de que a Frelimo tinha capturado uma companhia inteira de militares portugueses em Omar, no norte de Moçambique. Como se isso não bastasse, Samora insistiu que se ouvissem as gravações e as entrevistas feitas com os soldados capturados, apelando à rendição das forças portuguesas. «Foi muito confrangedor», explica Almeida e Costa. Incluindo para o terceiro-mundista Melo Antunes, que não resistiu a um desabafo: «Merda, assim não se pode fazer nada». Inhttp://macua.blogs.com/moambique_para_todos/2005/08/1_de_agosto_de__2.html
Assim a cassete veio para Portugal a 3/4 de Agosto e não a 17/18 de Agosto.
Porque a não apresentaram de imediato ao General Spínola?
Escreve o General Spínola:
“Assim, quando em 15 e 16 de Agosto, a Delegação Portuguesa (13) se sentou à mesa das negociações em Dar-es-Salam, a facção predominante do MFA, ali repre­sentada pelo Major Melo Antunes, já estava ao lado do chamado Movimento de Libertação e, para que ainda se retirassem às forças políticas todas as possibilidades de soluções razoáveis, recorreu-se a formas de pressão impen­sáveis e só possíveis num quadro de alta traição.
“Na mesma ocasião fui informado de que aquela reunião havia sido aberta com a audição de uma fita gravada da «rendição» de uma companhia metropoli­tana no Norte de Moçambique, num cenário concertado com as cúpulas marxistas do MFA e conhecido pela «traição de Omar» (14), gravação que ficará a assinalar uma das páginas mais vergonhosas da História do Exér­cito Português ao oferecer a Samora Machel, na mesa das negociações, uma arma decisiva. As afirmações pro­duzidas no «acto da rendição», designadamente as sau­dações à FRELIMO, como libertadora de Moçambique e do próprio povo português, constituíram prova irrefu­tável do índice de prostituição moral a que haviam che­gado alguns militares portugueses.” (In O PAÍS SEM RUMO, de António Spínola).
Ora, a fita gravada, segundo Almeida e Costa, já fora ouvida por ele e Melo Antunes na anterior estadia entre 31 de Julho e 3 de Agosto.
Agora escutem o que Almeida Santos diz sobre a reunião de 15/16 de Agosto à SIC emhttp://www.macua1.org/blog/sicalmeidasantos.html
Para quê este “teatro”?
Mas porque é que “Samora Machel, pessoalmente, estabele­ce a táctica. E recomenda, com alguma estranheza para alguns, que a acção seja gravada em som e imagem.”(In Moçambique 1974, de Fernando Amado Couto)
Porque era preciso impressionar e levar o General Spínola a aceitar o que há muito já estava combinado entre o PS, PCP e FRELIMO, desde uma célebre reunião em Paris, onde, entre outros, a FRELIMO esteve presente. Recorde emhttp://macua.blogs.com/moambique_para_todos/2010/04/a-outra-face-do-25-de-abril.html#more
E, para que não restem dúvidas, o autor da Newsletter aqui reproduzida, ainda felizmente vivo, me confirmou todo o seu conteúdo.
Resta ler-se a entrevista do Alferes Comandante em OMAR na altura, para se poder comparar do que é real do que é ou foi forjado.
Recorde aqui
Negando o então Alferes comandante de Omar ter proferido as afirmações que lhe são atribuídas por Almeida Santos, porque nunca foi tornada pública a cassete apresentada ao General Spínola? Será que ainda existe? Porque nunca foi ouvido qualquer dos elementos da companhia aprisionada?
OMAR e WIRIAMU são dois acontecimentos cuja génese ainda não foi totalmente dissecada. Mas que serviram na perfeição para a descolonização que foi feita.
Fernando Gil

macua.blogs.com












MOÇAMBIQUE - GUERRA COLONIAL



TRAIÇÃO
DE
OMAR




Traição de Omar” faz correr lágrimas em Spínola”
Na véspera da partida da delegação portuguesa que ia iniciar em Dar-es-Salam as negociações com uma representação da Frelimo [ 15 de Agosto de 1975] recebeu-se em Lisboa a notícia, de fonte militar, de que uma companhia das Forças Armadas portuguesas havia sido “emboscada e aprisionada” por forças da Frelimo, em Omar, no Norte de Moçambique, junto à fronteira com a Tanzânia.Justamente indignado o Presidente Spínola exigiu que antes de dar inicio às negociações e como condição desse início a delegação da Frelimo apresentasse desculpas à delegação portuguesa, por essa traiçoeira atitude das suas forças.Assim fizemos. Mas com surpresa nossa, Samora Machel começou por pretender desconhecer do que estávamos a falar:– Emboscada de Omar?! Uma companhia aprisionada?!...Por fim fez-se luz no seu espírito:— O quê? Aquela “entrega” dos vossos soldados?E voltando-se para um qualquer assessor da sua delegação:— Traz a cassete...Cassete? Íamos de surpresa em surpresa. Mas a verdade é que a misteriosa cassete veio, foi por nós ouvida, e ouvi-la ficou a constituir uma das maiores humilhações por que terá passado a delegação de um país.O que nós ouvimos foi o registo sonoro de uma “entrega”, não apenas voluntária, mas insistentemente solicitada-Vocês quem são?(Veio a identificação.)- E querem entregar-se porquê?— Porque é hoje o dia! Porque vocês são os libertadores da nossa Pátria! Queremos entregar-vos as nossas armas!Não garanto a exactidão das palavras — cito de memória — mas asseguro o sentido delas.Seguiram-se os abraços, o “pega lá a minha arma, meu irmão”, etc., etc. É claro que não havia lugar a exigência de desculpas. Limitámo-nos a pedir uma cópia da cassete para em Lisboa documentarmos isso mesmo.Mal chegados; a primeira coisa que o Presidente Spínola quis saber de nós foi se a Frelimo tinha ou não apresentado desculpas.— Lamentamos informar que não era caso disso. Trazemos aqui uma cassete...— Uma cassete?!— É verdade! Uma cassete!Logo se pediu um leitor de cassetes. Mas pouco depois de ter começado a ouvi-la, o Presidente mandou abruptamente desligar a maquineta. Manifestamente perturbado. Não sei se invento dizendo que vi brilhar, por detrás do seu inseparável monóculo, uma lágrima de comoção. Ou de raiva? Se aquilo era para ele o que era para mim, inveterado paisano, o que não seria para o lendário cabo-de-guerra
Foi isto que aconteceu em OMAR, também denominada NAMATIL, junto ao RIO ROVUMA, quando o guerrilheiro da FRELIMO, SALVADOR MUTUMUKÉ, levou os 137 militares portugueses, chefiados pelo Alferes Miliciano Costa Monteiro, para a Tanzânia. Seis heróicos combatentes não se renderam. Foram eles: Sumail Aiupa, Mário Moiteiro, Joaquim Piedade, Vasco Ponda, Laquine Puanhera e José Gonçalves.




Qual é o teu combate, ó combatente?
Vem da Terra, do Céu, do Sol ardente,
Vem do teu coração, da tua mente?
Qual é o teu combate, ó combatente?
Não, não sou combatente por gosto próprio,
Combato pelos outros, por um ideal,
Sofro na própria carne o esforço inglório,
Combato por valores, sou racional.
Hoje sou combatente que o Povo aceita,
Amanhã quando o sol o transformar,
Serei o combatente que ele rejeita,
Mas forte e corajoso eu vou restar.
Sou pois um combatente de hoje como de ontem,
Sou um desconhecido, que morto ou vivo
É a memória da Pátria, muito para além
Do mesquinho interesse do mero arquivo.
D´armas na mão combato. Sou combatente
Quando a escrita, a palavra, sem solução
Gritam por mim bem alto. Num repente
Sou esse combatente, o da Nação.


À memória de todos os nossos bravos combatentes que tombaram na Guerra Colonial.
MUEDA - SAGAL - OMAR - NACATAR - MUTAMBA DOS MACONDES - DIACA - MITEDA - CHOMBA - ATIBO - NANGADE - NASSOMBE - MACOMIA - CRUZ ALTA - ÍMBUO e tantos outros locais inolvidáveis.
A CURVA DA MORTE - picada entre MUEDA e MOCÍMBOA DA PRAIA onde em Agosto de 1969, uma emboscada da FRELIMO causou 9 mortos e dezasseis feridos entre as forças portuguesas.
QUERER. PODER . SABER. Uma vez COMANDO serei COMANDO TODA A VIDA porque SER COMANDO É UMA FORMA DIFERENTE DE ESTAR NO MUNDO.

lusoprosecontras.blogspot.pt


FLORESTA DE SANGUE (CONTO)

1971. Moçambique/Norte. Manhã de cacimbo fresco. Folhas de cajueiro velho, perdido na mata, choram gotas de orvalho na picada estreita de matope enrijecido pelas tardes quentes. Perto, aves sinistras lançam, a espaços, silvos irritantes por entre centenários embondeiros.
Nada mais se ouvia ao redor. A noite acabava fria, silenciosa e calma, não fora uma gazela atrevida infiltrar-se, em desenfreada correria, cortando o círculo, por entre as três dezenas de fardas negras que, em alvoroço, viram o seu fraco repouso interrompido, num bater de coração mais forte, num aperrar de armas tão nervoso quanto inesperado.
Era um novo dia que rompia, um novo dia que até nem contava. Era só mais uma data, apenas, para rapazes já homens, a quem o dever não permitia calendário de vida. O de morte também podia servir para a contagem indiferente de uma manhã que surge numa floresta sem horizonte.
O Comando havia sido claro na ordem que transmitira. Aquele grupo de homens, fracção duma força de combate estacionada algures no Norte de Moçambique, teria por missão interceptar um grupo inimigo, fortemente armado, que dias antes atacara e saqueara um aldeamento de nativos. O resto era com eles. A zona conheciam-na bem, os perigos não contavam e o medo não era o melhor conselheiro para quem queria conservar a "pele" naquela guerra traiçoeira onde, por vezes, era imperioso "dar" primeiro.
O alferes Carrilho que, com dois furriéis e enfermeiro eram os únicos europeus entre homens de rostos bronzeados, nados junto ao Índico, dava as últimas instruções ao grupo, antes da partida para o terceiro dia de marcha. Os sacos de campanha, acomodados sobre as fardas húmidas e sujas, haviam já sido aliviados de algumas latas de conserva de porco, gordurosas, que só o negro Manjate, fruto recente das Missões cristãs, comia. Os outros, por Alá, nem cheirá-las...
Mais leves, olhos já lavados no orvalho do capim alto, em fila espaçada, aproximavam-se já dum trilho batido, detectado na véspera pelo pisteiro Capoca, um recuperado à Frelimo, a que nada escapava. Por isso, lhe chamavam "o Perdigueiro".
Ali mesmo fora decidido montar a emboscada. O inimigo, com o saque e elementos da população raptados, poderia escolher aquele itinerário para a retirada mais para norte, para recônditos e mais seguros refúgios, em região onde se pensava estar implantada a Base Manica.
E, quando os cortantes raios de sol tropical já rasgavam as copas frondosas do arvoredo, os homens de negro, espalhados por entre os arbustos, aguardavam silenciosos. Esperavam na incerteza....mas esperavam. Afinal, aquela até era uma guerra de espera.....espera de um final que tardava em acontecer e o último capítulo daquela rude aventura de anos era uma assustadora incógnita....
O silêncio doía muito! Aquele "silêncio" era duro! Via-se no rosto do comandante. Ele próprio preferia gritar bem alto. Ouvir o eco da sua voz lançado pelos rochedos soltos. Queria gritar que não queria a guerra, mas que não tinha medo. Talvez para assustar esse mesmo medo. Queria não pensar em nada, automatizar-se, mas aquele marasmo de silêncio, que já durava horas, punha-lhe o cérebro mais desafinado que a barulhenta fanfarra do Batalhão.
Nada mais aconteceu naquele dia que desse outra cor àquele quadro vivo de corações enervados.
Com o cair da tarde, o alferes incumbe o Ferreirinha, um baixinho furriel europeu, quase no fim da comissão, da retirada para pernoita. Impunham-se cuidados especiais neste "mudar de sítio": o local onde haviam pernoitado na véspera não servia. Nem em tal pensar! "Por o periquito nunca mudar de ninho é que lhe roubam os filhos", dizia o Ubisse, um homenzarrão negro que não largava a metralhadora mais pesada do quartel.
E foi afastado da zona, o novo local de pernoita que, afinal, não era diferente: as mesmas árvores, o mesmo pouco céu, a mesma terra seca, os mesmos pássaros e, até, os mesmos semblantes sofridos do pessoal.
- Meu alferes, isto já não dá nada! Quase não há ração, a água é pouca e os "turras" já passaram por outro lado!
Este era o estribilho do enfermeiro Correia, um dos poucos europeus do grupo. Estribilho que, mais uma vez, ensaiou aos ouvidos do Carrilho, já habituados aos alvitres conselheiros do cola-adesivos lá da malta.
E, quando o alferes lhe retorquiu não se poder retirar sem a certeza de que o inimigo havia passado para norte, lá foi o Correia, coçando o barrete salpicado de mercúrio, embrulhar-se por entre as ligaduras e bebericar a água a que ele, para desinfectar, dizia, juntava álcool. Só que o mordaz Sacura afiançava que o Posto de Socorros estava quase todo na barriga do Correia!....
Eram já 10 da manhã do outro dia. Mais cinco horas eram já passadas daquele dia em nova espera. De novo o silêncio, de novo a quietude ansiosa de outra emboscada junto trilho adversário.
- Isto é demais, meu alferes! Que se lixem os turras! Já nem água tenho, quando é que isto acaba? –sussurrava interrogativo o furriel Bazuca, um minhoto novato, dois meses antes largado pelo Niassa naquelas longínquas paragens.
- Estabelece ligação rádio com o Comando, que eu quero falar com os gajos! – balbuciou o Carrilho, também já preocupado com aquela situação nada agradável.
E foi de abatimento o encolher de ombros agitado e discordante do grupo, quando se espalhou a resposta do oficial de operações.
- Porra, mas quando é que a malta atinge o Rio Montepuez? Em vez de irmos para o Messalo onde eles se acoitam, vamos para sul? E se não encontrarmos água até lá? E o que vamos comer amanhã se a ração está a acabar?
Ninguém respondeu ao Correia, de novo a espalhar pessimismo, qual Velho do Restelo das selvas africanas.
Mas a ordem era para cumprir, estava acima de qualquer desabafo, era superior a qualquer dúvida ou rezinguice do pessoal. E, bem no íntimo, eles tinham a noção disso, mas aquelas "bocas" descontraíam e davam as energias que iam faltando.
Estava prometido o abastecimento hélio para a tarde do outro dia. Viriam mais umas caixas de alimentação pré fabricada.... A água, só por sorte se encontraria, a não ser quando atingissem o rio, para sul, razoavelmente caudaloso e onde, na anterior operação, o Capoca havia colhido um bom Kg de camarão. Ricos rios que até camarão davam! A malta até se imaginava os balcões da Portugália.....
A progressão era lenta, por perigosa. Por vezes, a indicação do "cinco" da frente, periodicamente rendido, o grupo abria em linha, metade para cada lado do trilho inimigo que seguiam, não fosse uma rajadas traiçoeiras, por detrás de um tufo de vegetação mais denso ou de uns rochedos soltos, surpreendê-los. Para triste e doloroso exemplo chegara o que, dias antes, acontecera ao alferes Marques, um jovem quase formado em Medicina, que se vira privado da perna direita, quase esfacelada.
Este tipo de avanço era difícil, mas necessário, e retardava um pouco o andamento que, em tais circunstâncias, não chegava aos dois Km por hora.
Eram já duas da tarde. O sol, na vertical, jorrava vagas de calor inclemente sobre os corpos suados. O Ferreirinha largava imprecações minuto a minuto, quando uma aborrecida micose lhe ardia ao roçar as calças de caqui.....e o sacana do Correia só levava mizórdias....acusava o furriel.
De repente, tudo pára. Num movimento sincronizado, qual grupo de bailado rítmico em estreia no Olímpia, todos se deitam, sem ruído, indicador a tremelicar, hesitante, junto ao gatilho. Mas não soaram tiros. O passa-palavra chegou depressa aos últimos homens que, já levantados, sorriam: uma jibóia, que mais parecia o tronco de uma umbila, atravessara-se no trilho, pachorrenta e indiferente a tantas espingardas.
- Mata-se, meu alferes? – perguntou o Ambasse, um maconde esguio, especialista em liquidar cobras daquela envergadura, arrastando-as vários metros pela cauda, com o auxílio de um pau-forquilha.
Não satisfeito nas suas pretensões, ensaiou um esgar de desolação por entre as secas faces tatuadas e juntou-se ao grupo, que já recomeçara a progressão. A jibóia lá ficara, imperturbável, a digerir os restos de qualquer gazela azarenta.
O sol já declinava. Não sendo viável atingir, ainda de dia, o Rio Montepuez, objectivo que, no momento, os movia, com as calças a balançarem largas e soltas debaixo das cartucheiras pesadas, pensou-se em calar o estômago contraído.
Não tinham aqueles homens, já bastante identificados com a vida no mato e com os perigos que lhe eram inerentes, por hábito tomar a última refeição, ligeira, no local da pernoita. O Carrilho sabia bem quanto lhe tinha custado, um ano antes, livrar-se das carnívoras formigas a que, muito a propósito, apelidavam de “cadáver”. Fora uma noite de sofrimento: os detritos, o cheiro das latas engorduradas, eram um tentador convite para aqueles bichinhos gulosos. E apareciam de todo o lado, como que chamados por batuque festivo ao banquete real que a carne odorosa da malta lhes oferecia.
Assim, havia que comer qualquer coisa antes de anoitecer e do descanso, pois impossível seria romper às escuras por uma selva tão fechada.
E foi nessa paragem que o alferes caiu num daqueles erros negligente, ele que não costumava facilitar em questões de segurança. Quando num trabalho de nomadização, em que se andava pelo mato em busca de indícios que levassem ao encontro do inimigo, mas ainda se não seguia qualquer pista, era natural que em qualquer lado se fechasse o circulo para a refeição. Não era este o caso, pois seguia-se um trilho que os guerrilheiros utilizavam. E a norma seria deixar metade da força emboscada junto àquele, enquanto o resto se afastava uma meia centena de metros. Passados uns dez ou quinze minutos, tempo suficiente para tragar umas sardinhas em azeite e umas quantas duras bolachas, haveria a troca do pessoal.
- Como a refeição tem de ser breve, comemos mesmo aqui. Manda abrir o circulo e avisa o pessoal para que se não demore. - e lá foi o apressado furriel Bazuca dispor os homens naquela roda rotineira que fazia lembrar o circulo das caravanas de caras-pálidas perante a iminência de um ataque de Apaches, que o faziam vibrar junto à caixa televisiva, na sua meninice não muito remota.
Foi, então, que um tiro seco soou. Seguiu-se um desordenado e barulhento pegar nas armas em repouso junto aos joelhos dos fardas-pretas, ocupados a esburacarem as latas da ração. Ouvidos atentos, olhos a girarem em todas as direcções, interrogativos, numa fracção de segundos.
De repente, o ar em volta é cortado por uma sinfonia macabra de tiros, rebentamentos e gritos de ordem que não se ouviam.
-UIO-MAMA! - E os homens levantam-se, de armas apontadas. O grito era o sinal já antigo que os elementos em confronto lançavam para avisarem os mais recuados que o inimigo debandava e era o momento de os perseguir. O pessoal da retaguarda cala as armas, enquanto a secção avançada continua a disparar sobre o adversário em fuga.
Foi breve a perseguição. Tinha que o ser quase sempre, quando os poucos guerrilheiros se dispersavam por entre a mata densa. Seguiu-se a batida em linha, para detectar armamento abandonado no confronto.
- Eu sabia que ela estava aqui, meu alferes! O gajo deve ir ferido, porque eu atirei-lhe num braço!.... - e o Jonange, com os dentes afiados por debaixo dos seus lábios espessos, sorria, exibindo uma “Simonov” ainda nova, oriunda do bloco soviético, o maior arsenal da Frelimo. Outros haviam, também se encontravam armas de origem americana e de potências ocidentais.
- O artista vai mesmo ferido, - dizia o ferreirinha, ao inspeccionar a semi-automática com umas gotas de sangue ainda fresco, ao longo da bandoleira de caqui.
Não eram mais do que cinco os inoportunos estraga-jantares, mas foram mais do que suficientes para agitar e desgastar, ainda mais, aquela trintena de homens já cansados.
Seguiu-se o afastar do local para o “estudo da situação” que o Carrilho costumava fazer nestas situações, não só para se inteirar dos pormenores do confronto, mas também para acalmar os homens ainda agitados, com o coração a bater forte e os ouvidos a repetirem, teimosamente, o eco da metralha.
V
- Foram eles que deram o primeiro tiro, meu alferes. O Amisse estava levantado a afiar um pau para tirar o ananás da lata. Foi para ele que os turras dispararam.
- E porquê tanta demora a responderem? - interrogou o Carrilho, fitando o velho cabo negro, que fora caçador de elefantes lá para as serras do Niassa.
- Nós só os vimos quando voltaram a fazer fogo. Foi então que o Jonange começou a disparar sobre os gajos....
Já escurecia. O alferes estava desolado. Irritado mais consigo próprio por ter falhado daquela maneira de checa principiante, que já não era. Mas que raio de azar aparecerem logo naquela altura! E, pior ainda, não era o grosso da coluna inimiga que tinha por missão deter. Cinco homens seriam, ou uma guarda avançada ou, o mais provável, emissários enviados ao “quartel-general” da área, algures mais a norte, dando conta dos resultados do ataque ao aldeamento, ou na procura de remuniciamento, pois os guerrilheiros quando perpetravam qualquer ataque eram “generosos” no gastar de munições, que não podiam armazenar em grandes quantidades.
Mas tudo isto eram conjunturas falíveis.
- E se os tipos recuam e vão avisar os outros que estamos a tentar apanhá-los? Já não dou nada por isto! - desabafava o Ferreirinha, sem deixar de coçar a micose que naqueles momentos de tensão ainda mais o importunava.
- Não devem ir, meu furriel, - interrompeu o Capoca, com o seu ar de sabe tudo -, eles quando vão para qualquer sítio já têm combinado o local de encontro no caso de serem atacados. Separam-se agora na fuga, mas vão juntar-se lá mais à frente, para continuarem a marcha rumo ao seu inicial destino.
O Carrilho apostou nesta versão. Não só pelas provas de intuição guerrilheira que o “Perdigueiro” já havia dado, mas pelo facto de ter sido já combatente activo da Frelimo. E, vá-se lá saber porquê, era considerado “acima de qualquer suspeita”...
Não houveram baixas nos fardas pretas. Apenas uma camisa furada e um ligeiro arranhão nas costas do Amisse, onde o Correia já colocara mais um adesivo.
A noite marcou-lhes encontro quando já procuravam local próprio para mais um descanso. Não o foi muito, porque os nervos excitados ainda não haviam atingido o “rilex”; tão difícil de conseguir naquela guerra desgastante, nada convencional.
O outro dia seria mais complicado. A ração, em termos logísticos, já havia acabado, não obstante o pouco apetite do dia anterior e o “calo” de poupança do pessoal guardassem umas latas providenciais. A água é que molhava poucos cantis. Ma o rio seria atingido pela manhã e o reabastecimento “hélio”, já prometido, era esperado à tarde.
- Falta muito para chegarmos ao Rio Montepuez? - pergunta o Ferreirinha, quando já tinham duas horas de marcha do novo dia, eram, então, seis e meia da manhã e o sol já raiava há muito por entre o arvoredo, agora mais verdejante e espesso, com o aproximar do rio tão desejado. E o Alberto, uma macua que vivera naquela zona, agora deserta, muitos anos, até que a guerra chegou, e onde tinha a sua palhota e uma grande machamba de mandioca, aponta para o céu sem nuvens e, indicando um ponto imaginário, respondeu ao ansioso furriel:
- Se não pararmos, quando o sol estiver ali, já estamos no rio.
Não foram muito enganadores os dados do velho cabo Alberto. Pouco passava das onze, quando o grupo atingiu a margem de vegetação densa e viçosa do tão familiar Montepuez. O trilho, que nunca haviam deixado de seguir, bifurcava-se ali e perdia corpo, para se transformar numa manta de abundantes pegadas, por entre o tufo de lianas entrelaçadas em árvores de copa larga.
Era aquele o local pretendido para a última tentativa de interceptar o inimigo no seu regresso de ataque ao aldeamento.
Para o Carrilho, que não deixando de respeitar, no essencial, as ordens que recebia, valia bem mais o seu objectivo pessoal e o melhor que se podia conseguir daquela missão era subtrair do controlo do inimigo os elementos da população por ele raptados no aldeamento e que, segundo indicação rádio, rondavam as 20 pessoas. Ele sabia que aquela gente não ia de vontade. Conhecia bem a realidade macua. Se fosse da sua vontade, oportunidades para se juntarem aos guerrilheiros da Frelimo não lhes faltavam, atendendo ao isolamento da aldeia, onde se dedicavam ao cultivo de produtos para sua subsistência e de rendimento, como o algodão e o caju. Os macuas eram pacíficos, queriam paz e não se deixavam aliciar pelos insistentes convites dos “mabandidos”, como então chamavam aos guerrilheiros.
Daí as retaliações frequentes, caracterizadas por um vandalismo primário, pouco compatível com o alardear de intenções libertadoras que apregoavam. Daí, também, o desprezo, a raiva incontida que alimentava uma fogueira de vingança no peito daqueles negros fardados, que deram a algumas forças expedicionárias, exemplos de coragem e de luta interessada, passe a categoria de algumas tropas europeias de elite que se souberam bater com honra.
Por tudo isso, o esforço, o espírito de sacrifício, indiferente à sede e à fome, daquele grupo de fardas negras, preocupado, agora, no encher dos cantis, no refrescar dos corpos sujos naquelas águas transparentes dum rio que desliza em suave paz, alheio aos sentimentos de dor, de medo, de horror àquela guerra e seus terríveis efeitos, de homens que procuravam dentro de si mesmos justificação para uma guerra de irmãos que nunca haviam experimentado. Como acabá-la, como extirpar o ódio, como dizer basta?! Perguntas sem resposta.......
Mas, enquanto estas meditações ocorriam, tratava-se era de cumprir mais uma missão, mais uma peça duma engrenagem bem complicada e havia tão só que a desempenhar o melhor possível, com o profissionalismo a que o dever obrigava.
- A secção do Bazuca já está abastecida de água. Vou agora com o meu pessoal. - informava o Ferreirinha, enquanto o alferes, esticando a antena do Racal, tentava comunicar ao Comando a sua nova localização, atingido que fora o objectivo imediato. O restante pessoal, disposto em linha paralela ao leito do rio, tomava posições, não fosse surgir nova surpresa, enquanto uns vinte metros mais abaixo os outros se dessedentavam.
As três da tarde surpreenderam o Carrilho com o Bazuca e um grupo de cinco elementos a reconhecerem o local da emboscada, que até nem era muito apropriado: a vegetação cerrada, com ramos entrelaçados por sobre a margem do rio, apesar de abrigada e bem camuflada, tinha o inconveniente de não permitir ligação á vista entre o pessoal, mas tinha a vantagem de colher o inimigo na travessia do rio, com pé naquela estação, passe o razoável caudal de água corrente. Outras alternativas não eram mais viáveis.
- Apre, mas aqueles gajos passam por aqui? Esta porcaria está cheia de feijão macaco! - vociferava o Bazuca, enquanto se coçava aflitivamente. Aquele pó que as malvadas feijocas libertavam ao serem tocadas era mesmo demoníaco! Irritava bem mais que um bravo urtigal das Beiras. E o comichão não passava, sem que a pele ferida de arranhões fosse esfregada por providencial cinza de queimada recente. Era, naquela região, um dos maiores inimigos que a vegetação tropical lançava contra o homem.
- Os tipos têm a pele dura, não barram as orelhas com creme Nívea, como o meu furriel....-zombou o Correia, que não deixou de ir meter o espevitado nariz no breve trabalho de reconhecimento.
Vinte minutos depois já quinze homens estavam dispostos ao longo da margem, com o rio e o lado oposto à vista, numa linha que, por força da natureza do terreno, não teria mais que quarenta metros de extensão. Os restantes quinze ficaram recuados a uns trinta metros dos emboscados e tinham por missão fazer face a qualquer, pouco provável mas não impossível, aproximação do inimigo pela retaguarda.
Renderiam os outros duas horas depois e, no caso de surgir o grupo inimigo, ocorreriam para os flancos, em reforço do pessoal da frente.
Mas tudo começou pouco depois. O Inferno, numa aparição contraditória, abriu-se, abrasador, por entre as águas frescas do rio e passou-se a meia hora mais longa na vida destes combatentes, passe o facto de já estarem habituados a situações de confronto.
Aquela foi diferente, foi desumana, terrível!....
Haviam sido dadas instruções para que só se disparasse quando o inimigo surgisse em grande número, já dentro de água. Mas ele usava das suas cautelas. De início, só dois guerrilheiros entraram na água. O grosso da coluna aguardava em fila, do outro lado.
Não arriscavam de qualquer maneira. Os ensinamentos colhidos pelos chefes na China e URSS haviam sido bem assimilados. Viam-se os primeiros três estáticos, aguardando que os dois primeiros fizessem a travessia....
E não se sabe quem abriu as portas daquele inferno trovejante, quando aqueles divisaram o cano brilhante de uma G3 menos escondida. Quais molas de aço, atiraram-se em cambalhotas aquáticas, disparando sempre, até caírem atingidos dentro de água.
Foram as primeiras vítimas. Os outros recuaram, retomaram posições e despejaram sobre os quinze emboscados quantas armas traziam.
Seguiu-se um tiroteio intenso, medonho. Três bazucadas inimigas fizeram lume por cima das lianas esfaceladas, por sobre a cabeça do Ferreirinha. Os gritos confundiam-se com o rebentar constante das granadas que levantavam água fervilhante. Gritos de dor, à mistura com outros de incitação, davam àquele quadro incandescente um reflexo de luta e morte.
Os abutres não tardariam a esvoaçar sobre ele!...
O grupo inimigo era numeroso e aguerrido. Notara-se logo, aos primeiros disparos. Mas, se alguém tinha que abandonar o terreno, seriam os guerrilheiros. Eles sabiam-no e convinha-lhes por estratégia, mas a força do seu número e armamento davam-lhe inusitado ânimo de experimentarem o pulso dos fardas negras, talvez, também, para darem cobertura e tempo à retirada da escolta com a população raptada. Só eles sabiam......
-O morteiro, depressa! - grita o alferes, correndo por entre o capim ao encontro do apontador Zé João, um misto landim muito dedicado.
Era o último recurso. Quando a força inimiga era forte, insistente e bem armada, só o rebentar das granadas de morteiro 60 a podia desmoralizar. E, em catadupa, foram caindo na outra margem, com uma impressionante regularidade, dez granadas que elevavam por cima das copas, uma nuvem de folhem seca.
As armas ligeiras foram-se calando, pouco a pouco.
- Meu alferes, temos um morto. O Manjate já não tem vida.. - gaguejava o Correia, com o rosto lívido e os olhos desorbitados a jorrarem lágrimas envergonhadas, - também há feridos, mas ainda os não alcancei. Estão entre as lianas. Eu oiço-os...-e já corria com a caixa de medicamentos por entre o arvoredo.
O eco da metralha calara-se de vez. Só a vozearia excitada e os chamamentos aflitos, entrecortados por gemidos de dor, se ouviam.
Além da baixa do Manjate, atingido em cheio no peito por estilhaços de granada de bazuca, haviam mais três feridos, com alguma gravidade.
Já o furriel Bazuca, com o pessoal que acorrera aos flancos, atravessava o rio em corrida. Era a perseguição ao inimigo que se sabia levar feridos. Os dois mortos, tombados na água, lá contiuavam...
Os homens que sofreram o impacto directo do combate, reagrupavam-se sob a orientação do Correia; transportavam os feridos para local mais aberto e recuado. Um deles era o Ferreirinha, o veterano que, a dois meses do fim da sua comissão, gemia e jorrava sangue. A bala ficara-lhe alojada no antebraço. Talvez no osso.


- Já pedi a evacuação. Depois desta merda acabar, vamos directos à estrada de Macomia que fica mais próxima e, às nove horas, a Companhia de Muaguide tem viaturas para nos recolherem. Disse-lhes para não trazerem rações.....ninguém tem fome depois desta porcaria....


O Bazuca, com o pessoal empenhado na batida no outro lado do rio, tardava em aparecer. Mais do que o braço do Ferreirinha, o Carrilho notava a atrapalhação do Correia às voltas com o Ambasse, com um estilhaço de granada alojado na cabeça. O seu aspecto não era assustador, mas o enfermeiro sabia, por experiência, do perigo de tal ferimento. O braço do furriel, a que fora estancado o sangue, ia inchando assustadoramente. Não lhe faltava o ânimo, alimentado pelas palavras reconfortantes do Carrilho, mas não escondia a dor que começava a sentir, cada vez mais forte.....
Os olhares sofridos do pessoal evitavam o corpo do infeliz Manjate, coberto por um abafo de pescoço. Era a primeira mortalha de um negro jovem, que nunca deixava de estar nos locais mais perigosos da luta.
No emaranhado de sentimentos que assaltavam os seus camaradas, ainda não viera à superfície a dor profunda que os dominou, largo tempo, no perder dum companheiro de armas....
- Meu alferes, lá vêm os passarinhos! - informou o Amisse, apontando para os dois helicópteros vindos do horizonte baixo.
Aproximavam-se. Um pouco acima, um barulhento T6 dava-lhes protecção.
A clareira da retaguarda serviria para a aterragem, apesar do capim alto. Montou-se segurança e uma granada de fumo largou um espesso cogumelo.
- E o Bazuca que não vem com a malta! Se houverem feridos dos gajos ou da população raptada, não são evacuados!
Já se fazia tarde e a Força Aérea não faria evacuações nocturnas. Mas, de momento, interessava prestar assistência aos nossos feridos.
Não muito do agrado da tripulação, lá se conseguiu meter o Manjate, o primeiro morto dos fardas pretas desde que há cerca de dois anos o Carrilho os comandava. Teve que viajar no “hélio” com boletim de ferido. Teria um funeral mais digno e humano que aquele que, localmente (na base), lhe poderia ser oferecido.
E quando os helicópteros, barulhentos, se elevavam lá no alto, algumas lágrimas teimosas saltavam dos olhos de homens endurecidos no calor da selva e da metralha, de corações forjados na selva inóspita em fortes laços de cumplicidade. Mas eram homens, sensíveis como todos os outros....alguns bem mais ainda. Não eram mariquices aquelas lágrimas que lhes rolavam pelas faces....começavam a compreender o mundo, a vida, à custa de sofrimento e de morte. À custa de si próprios....
- Já chegaram ao rio. Trazem muita gente com eles! -avisou o Zé João, agarrado ao morteiro 60, que nem a dormir largava. E vinham mesmo. O Jonange trazia mais cinco armas que não eram as suas: três Kalascnicov e as duas Simonov molhadas que, entretanto, retirara do rio. O Ubisse, como se a sua pesada metralhadora lhe não pesasse, exibia duas granadas de bazuca. Outro maconde carregava com dois sacos de papéis e, com a habitual graça, ia informando, zombeteiro, que “os gajos queria montar no mato mesmo o gabinete do administrador....”.
Com os últimos cinco homens, vinham, então, elementos da população do aldeamento atacado. Com eles haviam perdido grande parte do tempo, pois cada qual dos civis se esquivara para seu lado, ao soarem os primeiros tiros. Outros teriam mesmo fugido do local e tentariam, por certo, alcançar a aldeia donde haviam sido raptados.
Tal não acontecera ao filho duma velha negra, que chorava copiosamente: ao tentar subtrair-se à vigilância dos frelimos, fora abatido, de imediato.
Um velho, de peles secas, que diziam ser importante conselheiro do aldeamento, andava com muita dificuldade. Dos dedos dos pés, mordidos pelas micaias espinhosas, jorrava sangue a cada passo.
Não tinha descanso o Correia, naquele lúgubre fim de tarde.
- Os tipos eram muitos, meu alferes – diz o Bazuca, que , mal chegou da batida final, se encostou, hirto de cansaço, a um pequeno arbusto. -Diz esta gente -apontando para uma dezena de populares de ambos os sexos e variadas idades -que devem ser à volta de setenta. São oriundos de várias bases e só se reuniram para este ataque ao aldeamento do Longote. Além dos que tombaram no rio, encontrámos mais um, logo na margem, e outro já mais longe. Levam feridos, pois há rastos de sangue, devem tê-los carregado. Só lá estava este! - e de dedo em riste apontava para um maconde muito jovem, 16...17 anos, já sob os cuidados do enfermeiro. Não gemia, só lançava, a espaços. Gritos de dor. Tinha a perna bastante ferida, talvez pelo rebentamento de uma das granadas de morteiro.
- Temos de o carregar. Tratem de improvisar duas macas de ramos, pois o velho também não consegue andar e temos de atingir a estrada de manhã cedo. Vamos pernoitar mais à frente. O Alberto, que conhece bem a zona, ainda que nos vá custar, pode guiar-nos mesmo no escuro, para ganharmos algum tempo.
Foi, então, que parte dos fardas pretas começou a rodear o alferes, com um semblante estranho, a passos lentos mas decididos.
- Que quem vocês? Mexam-se que temos que arrancar daqui!...
- Nós queremos dizer-lhe que só carregamos o velho, meu alferes. O turra fica! Morto ou vivo, não interessa. Mas nosso não vai carregar com bandido que matou Manjate!
E travou-se um diálogo acalorado, nada agradável. O Carrilho olhava para o Bazuca, como que pedindo reforço de argumentos, mas aquele, ainda encostado aos arbustos, limitava-se a passar as mãos pelos cabelos desgrenhados....
- Vocês não sabem que é crime abandonarmos um homem ferido, seja quem for? Também gostavam que eles vos fizessem o mesmo? Guerra é guerra, mas o combate já acabou! – insistia o alferes.
- Eles fazem pior! Então porque é que os gajo quando apanha os milícia na picagem mata aqueles que ficam feridos nas armadilhas? Aquele meu primo Silale que ficou escondido na mata, não viu eles darem tiro na cabeça daquela gente?!- explodiu o Capoca.
- E meu alferes já esqueceu o que turras fizeram com seu primo cantineiro lá em Ancuabe, um homem que nem arma tinha e eles mataram junto com senhor Daniel do algodão, lá na estrada de Moja?! – observa o Zé João, num tom mais respeitoso, mas com mal contida raiva.
O Carrilho viu-se perante um dilema que não esperava enfrentar. Aquela atitude de quase insubordinação geral, perante a indiferença comprometedora do furriel e do Correia, tomava foros delicados, de indisciplina.
A muito custo, depois de lhes lançar o ultimato de que pediria para abandonar o G.E. logo que chegassem ao Quartel, caso a recusa de transportar o "turra" ferido, lá o foram carregando, contrariados e vociferando impropérios contra o frelimo que, afinal, era tão só mais uma vítima de guerra, de que pouca culpa também teria. E que, mais do que trazer no peito a ânsia de independência, mais não era do que um joguete de interesses internacionalistas e dos jogos de poder de altas potências.
E a abatida caravana arrancou daquele local sinistro, que ficaria gravado para sempre nas suas memórias.
Local de morte, de desolação, que poderia ser de trabalho e de paz.
Mais um pedaço de vida ficava ali perdido por entre lianas entrelaçadas que as balas raivosas cada mais desuniam.
No lodo das margens daquele rio ficavam enlameados bocados de almas de jovens que pretendiam conseguir o que, viu-se mais tarde, responsáveis não souberam respeitar, indiferentes aos sentimentos duma população que procurava fraternidade e entendimento.
Indignos do sacrifício de tantas vidas foram uns e outros. Uns por teimosia doentia, outros por incompetência e outros, ainda, mais recentes, por pressa e traição vergonhosas, quando decidiram ao total arrepio da vontade das populações.
FIM.

Francisco José Branquinho de Almeida

ultramar.terraweb.biz


Portugal e a NATO



A Política colonial do Estado Novo e os Aliados (1961-1968)[1]

Pedro Manuel Santos *

Este artigo analisa a forma como a diplomacia portuguesa actuou na Aliança Atlântica em defesa da política colonial do regime e quais os obstáculos encontrados ao longo da década de 1960, logo após o eclodir da luta armada em Angola. Destaca também o papel que as duas administrações norte-americanas (Kennedy e Johnson) tiveram no seio da Aliança Atlântica e qual a influência no rumo da política colonial de Portugal e as opiniões dos restantes aliados.
Palavras-chave: NATO, Estado Novo, política colonial, Estados Unidos

Portugal and NATO. The colonial foreign policy of «Estado Novo» and the allies (1961-1968)


This article analyses the way Portuguese diplomacy worked trough NATO to defend the regime’s colonial policy, as well as the obstacles it faced during the 1960’s after the beginning of the armed conflict in Angola. It also emphasizes the role of Kennedy and Johnson administrations in the Atlantic Alliance and in the Portuguese foreign policy development as well as the allies’ perception on Portuguese behaviour.
Keywords: NATO, “Estado Novo”, colonial policy, United States

A posição de Portugal na NATO caracterizou-se desde a formação do Pacto, em 1949, por um anacronismo latente. Era o único aliado cujo regime nunca escondeu a admiração pelos regimes depostos na II Guerra Mundial e cuja filosofia política não se compaginava com a das democracias ocidentais. Foram questões de ordem geopolítica e estratégica que ditaram o convite à adesão de Portugal[2]. As duas consequências imediatas da entrada de Portugal na NATO verificam-se nos acordos assinados com os Estados Unidos em 1951. Em Janeiro, assinou-se o acordo de «Auxílio Mútuo para a Defesa de Portugal e Estados Unidos da América» e em Setembro do mesmo ano o «Acordo de Defesa entre Portugal e os Estados Unidos». Apesar de as disposições do tratado não preverem a utilização do armamento NATO fora da área do Atlântico Norte, Portugal consegue incluir um anexo secreto aos acordos de 1951 que salvaguarda, ainda que ambiguamente, uma possível utilização daquele armamento nas colónias portuguesas. Nas palavras do historiador António Telo, a «participação portuguesa na NATO é um "mal necessário", mas que não vai alterar os conceitos de defesa existentes, pelo que se mantém a prioridade à Península e ao império»[3]. A política colonial do Estado Novo continuaria, portanto, a ser um dos vectores da política externa portuguesa.





Ao contrário do que acontecia no fórum das Nações Unidas, a política colonial portuguesa nunca foi alvo de ataques dos aliados no seio da Aliança. A NATO funcionava como um refúgio dos ataques internacionais. Salazar tentou optimizar esta situação, garantindo para Portugal apoios que pudessem contrariar os «ventos de mudança» que se adivinhavam em África.
Este artigo tem por objectivo mostrar a forma como a diplomacia portuguesa actuou na Aliança Atlântica em defesa da política colonial do regime e quais os obstáculos encontrados ao longo da década de 1960, logo após o eclodir da luta armada em Angola. Também se destacará o papel que as duas administrações norte-americanas (Kennedy e Johnson) tiveram no seio da Aliança Atlântica e até que ponto é que isso influenciou o rumo da política colonial de Portugal e as opiniões dos restantes aliados.

A SOLIDARIEDADE ATLÂNTICA E AS VOTAÇÕES NA ONU


Após o início das revoltas nacionalistas em Angola, a 4 de Fevereiro e a 15 de Março de 1961, Portugal continuava a debater-se com as resoluções anticolonialistas na ONU. Na mesma altura, a Libéria apresentava uma queixa contra a política colonial portuguesa no Conselho de Segurança. Na sessão do Conselho do Atlântico Norte, a 3 de Março de 1961, Portugal procura concitar o apoio atlântico para as votações em Nova York. O objectivo português era criar um «bloco NATO» que desse garantias de não fazer aprovar as resoluções contra a política colonial do Estado Novo. Ante este desígnio, Averell Harriman[4] foi claro: «seria mau promover um bloco NATO», uma vez que não existem «blocos de países», mas sim «países individuais cada qual com o seu ponto de vista particular». Após esta tirada, acrescentou que «Portugal não podia contar que todos partilhassem plenamente o seu ponto de vista, tal como os Estados Unidos não esperavam que as suas atitudes merecessem sempre o apoio dos restantes aliados». Temendo a posição desfavorável da novel Administração norte-americana, António de Faria, embaixador de Portugal na NATO, lança um repto a Harriman: «Se alguma das nossas províncias ultramarinas viesse a ser atacada e a tivéssemos de perder em face da indiferença dos nossos aliados, seriam inevitáveis acontecimentos de maior gravidade em Portugal e nenhum Governo poderia manter-nos na Aliança Atlântica.»[5] Estava iniciado o debate sobre a solidariedade atlântica, ou a falta dela, nas questões referentes a assuntos de um aliado NATO.





O problema colonial português não passou despercebido no Conselho. O embaixador holandês na NATO, Dirk Stikker, aconselhou António de Faria a procurar «elementos americanos importantes e influentes capazes de melhor compreensão» da política externa portuguesa. Era o caso de Dean Acheson, com quem Portugal «deveria entrar em contacto e que agora presidia [a um] grupo nomeado por Kennedy para estudar a posição americana e eventuais reformas na NATO»[6]. Por último, o embaixador aconselhava Portugal a não fazer nada que comprometesse a segurança e defesa da Europa e que nem sequer pensasse em sair do Pacto. Esta advertência fazia-a como amigo de Portugal.
Os restantes aliados sentiam que a hostilidade americana podia ser contraproducente e a votação americana na ONU, em Março de 1961, não deixou ninguém indiferente na NATO. No dia 20 de Março de 1961, Casardi, secretário-geral interino que substituíra Spaak após o pedido de demissão do belga, em Fevereiro de 1961, perguntava a Faria se Portugal estava interessado em levar a questão de Angola a discussão no Conselho da NATO ou se preferia o embaixador português que fosse ele a levantá-la[7]. Tudo isto porquê? Porque o embaixador italiano considerava que os Estados Unidos não tinham respeitado as disposições contidas no parágrafo 3.º, alínea c, do «Relatório dos Três Sábios». Nesta alínea encontra-se a seguinte disposição: «Nenhum governo deve adoptar uma política definitiva ou fazer declarações políticas marcantes sobre questões importantes para a Aliança ou para um qualquer dos seus membros sem a consulta prévia, excepto se houver impossibilidade material demonstrável.»[8] Ou seja, os Estados Unidos deviam ter consultado previamente os países membros da Aliança. Isso dava garantia moral e jurídica ao apoio que Portugal necessitava para discutir a questão no Conselho da NATO.





A 20 de Abril, numa longa exposição ao Conselho, António de Faria comunica aos restantes parceiros a mágoa e a desilusão do seu país relativamente às votações na ONU. Relembrou aos presentes que à questão da ONU, se Portugal administrava algum território que se enquadrasse na definição de território não-autónomo, o Governo português respondera sempre que não. Esses territórios eram parte integrante da Nação, logo, qualquer interferência das Nações Unidas seria vista como ingerência nos assuntos internos do país, o que ia contra a Carta das Nações Unidas. As províncias ultramarinas, na óptica do Estado Novo, davam garantias económicas e condições geoestratégicas para uma defesa contra o comunismo mundial. Esta posição ficou atestada nas palavras do representante português: «nós recusamos esta demissão [abandono da defesa das possessões africanas], esta traição dos valores morais, aos quais desejamos ficar agarrados.» Segundo Faria, adoptar posições que conduzissem a «novos Congos» era o que os Estados Unidos estavam a fazer quando propugnavam pela autodeterminação dos povos africanos. No final da sua exposição, o representante português lançou um apelo em nome do seu Governo para que «os países amigos e aliados não assumam uma posição de hostilidade para com Portugal». Caso «não lhes seja possível votar a seu favor, ao menos que se abstenham e que os seus representantes evitem fazer 






declarações públicas desfavoráveis»[9].

Em suma, Portugal passava assim o ónus da questão para os seus parceiros atlânticos: a defesa do Ocidente começava com a coesão da Aliança e para tal teriam de ser os aliados a mostrar que desejavam tanto essa defesa como Portugal. Com esta declaração, António de Faria reiterava a ideia de que se os aliados não estivessem de acordo com a política ultramarina portuguesa, pelo menos deviam abster-se de a criticar publicamente sob pena de isso violar o espírito de coesão e unidade da Aliança.
O embaixador americano, Thomas Finletter, contraria esta visão, dizendo que as posições recentes da administração americana tinham como propósito último «contribuir para um Portugal mais solidamente estruturado» e «fortalecer a Aliança, colectiva e individualmente». Este paradoxo evidente apenas se sentia na maneira como os objectivos eram alcançados, uma vez que o princípio era o mesmo. A NATO constituía o «fecho da abóbada da política americana, mas os americanos eram também obrigados a tomar em consideração as outras pedras»[10]. Tornava-se claro que os Estados Unidos ampliavam o jogo da Guerra Fria a uma escala global. O embaixador português «ataca» as declarações de Finletter com a citação de um princípio geral da consulta entre os países da NATO apresentada pelos Estados Unidos, no qual se diz que «o processo de consulta política requer a aceitação do facto de que possa haver alturas em que os aliados têm que "concordar em discordar", actuando aquele com a máxima discrição, maturidade e consideração pelos outros»[11]. Ironiza mesmo a falta de tacto dos americanos por não terem usado um princípio seu em Nova York. Conclui a réplica com o apelo à solidariedade dos aliados, que era o mínimo que podiam fazer.





De todos os parceiros, o americano era aquele que mais evidenciava afastamento face à política ultramarina de Portugal. Dentre os parceiros, aqueles que mais apoiavam Portugal pareciam ser a França, a Itália e a Bélgica. Isto indiciava que o equilíbrio de poderes na Aliança se definia entre as potências continentais europeias e a potência do outro lado do Atlântico, tendo o Reino Unido um papel de fiel da balança. Os britânicos manifestaram-se sempre prudentes e esperaram sempre para ver que consequências se retirariam da situação criada.

O FALHANÇO DO MULTILATERALISMO


Depois de comunicada a Salazar a nova orientação política para África da Administração Kennedy, em Março de 1961, os norte-americanos procuraram reunir apoio político na Europa. Não esquecendo a solidariedade atlântica, os Estados Unidos encetaram diligências junto dos governos nacionais da França e do Reino Unido. Para esse apoio ser efectivo, os governos francês e britânico deviam fazer o mesmo que o Governo americano fizera: demarcar-se do apoio à política colonial portuguesa. A razão da abordagem a estes dois parceiros europeus não tem só que ver com a sua posição na NATO, mas também se deve ao facto de pertencerem ao Conselho de Segurança da ONU. Dado que os Estados Unidos queriam conjugar as posições destas duas organizações internacionais, seria mais fácil pôr em prática um plano de coacção política se esta se fizesse através de aliados, mormente no fórum da NATO, obtendo para isso o apoio dos países mais importantes na Aliança.
É de iniciativa norte-americana o encontro tripartido, em Londres, a 4 de Maio de 1961, que marca o início do desencontro de posições dentro da Aliança. Washington convoca a França e o Reino Unido para um encontro onde se possa concertar uma posição comum a apresentar no próximo Conselho Ministerial da NATO, que decorreria no dia 8 de Maio, em Oslo. O objectivo deste encontro era congregar um apoio político que se pudesse manifestar através de démarches privadas da política colonial portuguesa. Para isso, os Estados Unidos «contavam com o Reino Unido e a França, com toda a sua experiência em matérias africanas, para melhor aconselhamento». O Reino Unido mostrou-se prudente na decisão de condenar a política colonial de Portugal, o seu mais antigo aliado, e a França revelou um cepticismo, senão mesmo oposição à ideia americana de se demarcar politicamente de um aliado na Europa[12].





A pretensão dos Estados Unidos centrava-se no papel que cabia à ONU na resolução do conflito colonial na África portuguesa. Para o representante norte-americano, a intervenção da ONU era «inevitável» caso «a situação se deteriorasse na África portuguesa». Mas antes de se chegar a esse ponto, era necessário que a França e o Reino Unido fizessem valer a sua influência política em Lisboa e mostrar a Salazar a premência das reformas nas colónias. Tornava-se óbvio que os Estados Unidos não queriam utilizar o fórum da NATO para discutir o colonialismo do Estado Novo, pois o bloco afro-asiático na ONU estava a ser aliciado pela URSS. Era mais fácil agora o Ocidente aproximar-se dos novos países africanos, saídos do jugo colonial, e procurar minimizar as consequências no futuro do que confrontá-los directamente com um apoio a um país colonialista. Isto mesmo é comunicado aos aliados neste encontro tripartido: «Se o Ocidente tentar e falhar em manter o assunto Angola fora da ONU, então perderemos muita da influência sobre a situação.»[13] Como era de crer que Portugal dificilmente aguentaria uma guerra em Angola sem o apoio dos principais aliados, era preferível aproximarem-se desses países africanos, apoiando os movimentos nacionalistas, por forma a anteciparem-se à URSS. Caso isto não acontecesse, os Estados Unidos preconizavam mesmo um «severo revés» nas relações com os países africanos[14].
Quer a França quer o Reino Unido mostraram-se relutantes em aceitar uma intervenção da ONU, pois consideravam-na contrária à Carta. Para eles, os acontecimentos em Angola eram da competência interna de Portugal e «[uma intervenção da ONU em territórios portugueses]só tornaria as coisas piores». Para os Estados Unidos, esta posição só favoreceria os soviéticos, pois deixava «toda a iniciativa e acção para os países africanos. Isto, consideravam os Estados Unidos, não é uma decisão acertada». Todavia, ficou acordado por todos que por ora não se devia pressionar os portugueses no Conselho do Atlântico Norte. Ou seja, os três aliados de Portugal preferiram deixar na penumbra as resoluções deste encontro por forma a não beliscar a coesão e unidade da Aliança, já que entre eles não se conseguiu chegar a um acordo unívoco, e isso mesmo foi cumprido na cimeira da NATO, em Oslo. Neste encontro, Portugal conseguiu o benefício da dúvida na resolução dos conflitos em Angola, contando inclusivamente com o apoio militar da Aliança.

O ARMAMENTO NATO E A CIMEIRA DE OSLO


A primeira prova de fogo de Franco Nogueira – que entrara para os Negócios Estrangeiros, a 4 de Maio de 1961, no seguimento da remodelação governamental após o golpe falhado de Botelho Moniz no mês anterior – deu-se em Oslo, na cimeira realizada entre os dias 8 e 10 de Maio de 1961. Era a reunião ministerial da NATO e Portugal apresentava aos aliados a concretização das diligências necessárias para a retirada temporária das suas tropas afectas à NATO. Esta cimeira foi fundamental para a execução da política externa portuguesa por duas razões. Em primeiro lugar, a nível bilateral com os Estados Unidos, Portugal confirma o novo rumo dado à política externa da Administração Kennedy, reiterada pelo secretário de Estado, Dean Rusk, num encontro ocorrido à margem da reunião com o novo ministro português. Em segundo lugar, pelo consentimento dado pelos aliados à retirada temporária do armamento NATO. Para tal foi importante a argumentação utilizada por Portugal nas suas declarações aos aliados.
Numa sessão anterior à Cimeira de Oslo, a 3 de Maio de 1961, António de Faria comunicava aos aliados que o Governo português, «por razões imperiosas de ordem nacional», se viu obrigado a alterar a sua contribuição militar e a desviar «as escoltas oceânicas reservadas e afectas ao SACLANT» para África, bem como algumas forças (subunidades militares) afectas ao SACEUR. 




Reafirmando sempre o carácter provisório destas medidas, Faria concluiu a sua declaração destacando «a urgência em nos defendermos contra as acções exteriores e garantir a paz em determinadas partes do território nacional ultramarino». Houve por parte dos aliados um consenso quanto a esta questão. Segundo o embaixador, «nenhum representante permanente fez comentários»[15]. Estava gerado um consenso momentâneo à volta da questão ultramarina portuguesa.
Dias depois, na cimeira ministerial, em Oslo, Franco Nogueira confirmou estes dados e citou os exemplos recentes da França – na Argélia  e da Bélgica – no Congo – para justificar por si só o uso do armamento afecto à NATO numa situação de claro perigo de insegurança para uma nação aliada[16]. Ou seja, estando iminente a degradação de uma situação que poderia degenerar em perigo para a segurança de um país aliado, Portugal reclamava a igualdade de direitos dos aliados: o que se aplicava a um, devia aplicar-se a todos[17]. Nesta cimeira, Nogueira não esconde o desagrado português relativamente à ONU, chegando ao ponto de considerar ridículo que mais de metade do financiamento daquela organização viesse de países da NATO. Segundo o ministro, esses países fariam melhor em aplicar essas verbas em países subdesenvolvidos da própria Aliança para uma melhor e mais eficaz defesa do Ocidente. Mais uma vez se nota o interesse da diplomacia portuguesa em utilizar o fórum da NATO para constituir um bloco de defesa em Nova York. O ministro critica directamente os aliados na NATO que não têm dado o apoio que um parceiro atlântico por natureza merece. «Não se pode falar de solidariedade atlântica quando ataques daqueles do género da ONU são endossados por países da nossa Aliança.»[18] Isto é, o ministro português joga emocionalmente com a questão da solidariedade atlântica, não deixando de vincar aliás que uma Aliança sem coesão e unidade de nada serviria ao Ocidente. Todas as fraquezas que os aliados pudessem demonstrar seriam aproveitadas pela União Soviética. Por isso, tornava-se necessário que todos se unissem e fossem solidários com um país aliado que se dizia vítima de ataques de onde nunca suspeitariam que existissem.






Portugal desejava que a discussão sobre a questão ultramarina portuguesa fosse desviada da ONU, onde lhe eram claramente desfavoráveis as suas posições, para uma organização internacional onde tinha uma voz que era ouvida e onde sabia que podia contar com fortes apoios. Assim, o Estado Novo consegue que o Conselho do Atlântico conceda o seu aval ao apoio necessário para preservar a segurança de um aliado. Este apoio provém da habilidosa argumentação portuguesa que concita os dois maiores medos dos parceiros atlânticos: a falta de coesão numa decisão que envolve um aliado, que poderia ser aproveitada politicamente pela URSS, e a repetição de novos focos de instabilidade em África, caso não se agisse imediatamente em prol da segurança do território.

A POSIÇÃO DOS ALIADOS NO SEIO DA NATO


Os Estados Unidos, ou melhor, a Administração Kennedy, constituíram indubitavelmente o principal obstáculo à prossecução da política colonial portuguesa no início da década de 1960[19]. Num relatório elaborado por Dean Acheson, a pedido de Kennedy, sobre o papel da NATO na nova política externa norte-americana, o antigo secretário de Estado de Truman foi peremptório: «a inoperância da ONU na resolução dos problemas só provocaria divisões na Aliança.»[20] Para Acheson, não hostilizar um aliado num organismo internacional só beneficiará a coesão e unidade da Aliança. A melhor maneira de resolver um problema de um aliado é trazê-lo à discussão no Conselho do Atlântico e proceder a uma consulta genuína entre os contendores. Essa consulta genuína «pode muito bem ser dolorosa e áspera», mas é a única maneira de ser «coerente com os princípios de tornar a Comunidade Atlântica um instrumento efectivo para uma acção comum»[21].





Um outro relatório é entregue a Kennedy na mesma altura. Apresentado a 12 de Julho de 1961, o relatório do Grupo de Trabalho Presidencial (Presidential Task Force on Portuguese Territories in Africa) explanava a situação interna das colónias portuguesas e preconizava algumas medidas a adoptar pelos Estados Unidos a fim de se resolverem os conflitos em Angola. De acordo com o relatório, «os portugueses não iriam restabelecer a ordem nos próximos tempos» e «as suas tropas não conseguiriam ter sucesso em eliminar a actividade rebelde no Norte [de Angola]», onde se verificavam com maior intensidade os ataques dos nacionalistas da UPA[22]. Este ponto era já sinónimo de que era urgente pacificar a zona, pois o tempo corria contra os Estados Unidos.
Não obstante os Estados Unidos reconhecerem que a sua «influência em Portugal e dentro da NATO é limitada»[23], a atitude africana devia ser acarinhada sem que se pusesse em perigo o uso da Base das Lajes. É este o maior óbice dos Estados Unidos. Segundo as prospectivas militares do relatório, uma oposição frontal e hostil a Portugal provocaria graves danos políticos à coesão da Aliança Atlântica, podendo mesmo dar-se o caso da retirada de Portugal da NATO e a perda da Base das Lajes. Esta situação traria graves consequências para o dispositivo militar norte-americano de defesa da Europa e do Médio Oriente. A solução deste dilema passava pela congregação de apoios, no seio da NATO, dentre aqueles países que condenavam publicamente o colonialismo e apoiavam a autodeterminação dos povos africanos e os países escandinavos pareciam ser os parceiros ideais, pois tinham sido unânimes em apoiar a resolução da ONU, que condenava a actuação portuguesa em Angola, e a votar favoravelmente na Assembleia Geral contra a política colonial portuguesa[24].



Os grandes aliados da Administração Kennedy no seio da Aliança foram os nórdicos. Importantes sectores da política norueguesa e dinamarquesa defendiam publicamente a saída de Portugal da NATO. Na Noruega, os jornais afirmavam que «Portugal comprometia os seus aliados com a sua política em Angola» que «não promovia a paz e a segurança [no continente africano]». Para os noruegueses, «a Carta da NATO devia ser revista para tornar uma tal política incompatível com a participação [de Portugal] na Aliança Atlântica»[25]. Os dinamarqueses, por seu turno, pronunciavam-se «em termos francamente violentos contra a presença de Portugal na Aliança Atlântica, criticando a política seguida por este governo tanto na ONU como na NATO». Havia mesmo nos círculos governamentais quem defendesse a expulsão de Portugal da NATO, justificando que o «relativo enfraquecimento militar da Aliança, resultante da exclusão de Portugal, seria compensado pelo reforço moral que à mesma adviria de tal exclusão, dado que a moral é mais importante do que os canhões»[26].
Contrariando estas posições extremadas, a Bélgica e o Reino Unido apresentaram quase sempre uma «neutralidade benévola» no que dizia respeito à política colonial de Salazar. Por exemplo, o embaixador belga, Spaak, era da opinião de que Portugal devia «fazer todo o possível por liquidar o terrorismo em Angola antes da próxima Assembleia das Nações Unidas, de maneira a poder anunciar até lá reformas sociais, económicas e políticas nos territórios ultramarinos». Se Portugal instituísse reformas nas suas colónias, Spaak supunha mesmo «que a maior parte dos membros da NATO, que têm sido adversos, mudariam de atitude colocando-se ao nosso lado»[27].
O embaixador britânico, Stanley Tomlinson, afirmava não ser «provável que o seu Governo se associasse às críticas exageradas feitas contra Portugal», por cujas dificuldades tinha «uma profunda simpatia». Para o Reino Unido, a questão colonial portuguesa era «delicada», uma vez que «a apreciação britânica da natureza e do poder das forças em África divergia da apreciação feita por Portugal». O que estava em causa não era o apoio a um aliado, mas sim o apoio a uma política diferente da de um aliado. Quando Franco Nogueira anunciou as reformas ultramarinas, em Setembro de 1961, o embaixador britânico afirmou que estas «seriam insuficientes para pôr termo ao estado actual de agitação se não fossem seguidas de outras com objectivo político». Mais uma vez se comprova a maneira subtil de como os britânicos defendiam uma maior autonomia política para as colónias sem o afirmarem abertamente. Esta posição ambígua do Reino Unido iria pautar toda a actuação diplomática ao longo da década de 1960[28].
É um propósito egoísta e calculista que está na base do apoio francês a Portugal: De Gaulle queria autonomizar o poder do seu país em oposição à supremacia exercida pelos Estados Unidos no quadro da aliança e para tal usou Portugal como referência em África e possível ponto de apoio estratégico na Europa. O apoio diplomático francês na NATO foi visível durante toda a década de 1960. Esta união política entre De Gaulle e Salazar, ambos defensores de estratégias e objectivos muito próprios, prosseguiu pari passu durante os esforços diplomáticos portugueses para a defesa dos seus interesses em África. Após o deflagrar dos conflitos em Angola, quando Portugal reclamava nas reuniões do Conselho solidariedade para com um aliado que estava a ser atacado no seu território, a França expressou-lhe todo o seu apoio. Às críticas dos aliados de que Portugal praticava um regime de opressão nas colónias, o representante francês na NATO dizia que «era absurdo pretender» tal coisa. Portugal praticava sim um regime de «integração multirracial». O embaixador francês relembra ao Conselho que a França apoiara na ONU a argumentação portuguesa, pois acreditava que, «nos termos actuais da Carta, não se podia obrigar Portugal a prestar informações sobre as suas províncias ultramarinas»[29]. Em síntese, estes dois aliados convergiram na opinião de que algo tinha de ser feito para se alterar o quadro político e defensivo da organização numa fase importante da Guerra Fria. França e Portugal estiveram sempre lado a lado nas reuniões do Conselho da NATO, reflectindo a aliança desenvolvida desde o final dos anos de 1950. Até à queda de Salazar, a França foi indubitavelmente o grande apoio externo das campanhas portuguesas em África[30].
Um outro apoio importante à política colonial do Estado Novo na década de 1960, mas que não se manifestou abertamente na NATO, foi a República Federal da Alemanha (RFA). Este aliado nunca mostrou um apoio militante à política externa de Portugal nos conselhos da NATO, ao contrário da França. A actuação alemã pautava-se mesmo pela neutralidade quando em causa estavam as críticas à política colonial de Salazar. Face às invectivas dos parceiros no Conselho, os representantes alemães fizeram sempre de fiel da balança, uma vez que tinham a consciência de que Portugal era um aliado demasiado valioso para se enxovalhar diplomaticamente. O representante alemão, Von Plenke, argumentava numa reunião do Conselho que as divergências existentes entre os parceiros atlânticos não se deviam mostrar publicamente para não beneficiar os adversários. Declarava mesmo que o seu país «nada faria para criticar publicamente Portugal», atitude que se prolongaria por toda a década de 1960[31].
Grosso modo, estas eram as posições mais vincadas entre os aliados. Para Portugal, a falta de solidariedade dos aliados traduzia-se na prática num isolamento no seio da NATO. Esta ideia é confirmada por Salazar quando lhe chega às mãos um relatório, classificado de muito secreto, dos serviços portugueses de informação versando a política ultramarina portuguesa e a NATO. Aí ficamos a saber que os «Estados Unidos já informaram vários países da NATO acerca da proposta da Noruega no sentido de ser revista a permanência de Portugal como membro daquela organização». Esta informação, sublinhada a lápis azul por Salazar, indica o quão distante Portugal se encontrava das posições de alguns parceiros atlânticos. Também o Reino Unido, a Dinamarca e a Holanda tinham sido informados pelos Estados Unidos da intenção norueguesa de afastar Portugal da NATO, enquanto que a Turquia manifestava aos próprios Estados Unidos o pesar pelo descrédito de o Pacto «se continuar a identificar com países profundamente "colonialistas"», acentuando que é «favorável a uma revisão dos Estatutos da organização se houver interesse em que continue como membro»[32].

A ADMINISTRAÇÃO JOHNSON E O SUAVIZAR DE POSIÇÕES

O abrandar da pressão americana sobre a política colonial de Salazar acontece durante a Administração Johnson. Uma das suas causas foi o maior envolvimento militar e político dos Estados Unidos no Vietname. Portugal viu nesse facto uma excelente oportunidade para fazer vingar o seu argumento de que era preciso combater o comunismo internacional em toda a extensão do globo. Durante os quatro anos da Administração de Lyndon Johnson (1964-1968) – não incluindo aqui o período subsequente à morte de Kennedy, em Novembro de 1963 – não se registaram grandes diligências diplomáticas, se compararmos com aquelas que se registaram durante a Administração Kennedy, para inflectir o rumo da política externa portuguesa no que toca a África. A única tentativa digna desse nome foi o Plano Anderson, apresentado em 1965, pelo embaixador americano em Lisboa, George Anderson, a Salazar[33].
Os americanos logo depreendem que, «num futuro imediato, nenhuma probabilidade de mudança» existia «na atitude e determinação do Governo português» relativamente às colónias africanas. Perante este cenário, o embaixador Anderson recomendava que os Estados Unidos não forçassem a imposição e optassem por ser «tão liberais quanto possível na autorização de licenças de exportação para equipamento militar destinado a Portugal, à excepção de armas letais e aviões de guerra»[34]Esta posição do embaixador americano foi sendo moldada e incrementada pelas visitas oferecidas pelo Estado português às colónias africanas, tornando-se este diplomata a posteriori um defensor da política colonial de Salazar. O historiador americano David Dickson concretiza: «a entrega de armamento continuava a aumentar e a política da Administração [Johnson] começou a girar em torno da aceitação da persistente influência política dos portugueses»[35].
Johnson não perdeu então muito tempo com a questão colonial do Estado Novo. Em Julho de 1964, a Embaixada em Lisboa dava o mote: «parece haver pouco a ganhar e algo a perder em pressionar muito insistentemente com uma linha de análise que os portugueses não estão preparados para acreditar ou aceitar».[36] Recorde-se que os Acordos dos Açores tinham sido suspensos por Salazar no final de 1962 até que a política norte-americana fosse mais favorável a Portugal. Constatando que o regime português era impermeável à argumentação a favor da descolonização, a Administração Johnson preferiu não desgastar mais o seu capital político junto de Salazar, numa altura em que os Estados Unidos procuravam sensibilizar os aliados da NATO para o problema do Vietname.
Esse esforço diplomático estendeu-se ao Conselho do Atlântico. A argumentação diplomática para reclamar apoio na NATO era quase uma cópia dos argumentos utilizados pelos portugueses no início das insurreições em Angola, em 1961. Veja-se o caso na cimeira da NATO, em Londres, em Maio de 1965, quando Dean Rusk criticou «com aspereza a falta de solidariedade global dos membros da Aliança que enfraquece esta perante a ameaça global aos membros da Aliança»[37]. Ou seja, os americanos utilizavam o argumento da solidariedade dos aliados para reclamar apoio numa altura em que, segundo eles, defendiam os interesses do mundo livre no Sudeste Asiático. A Aliança ouvia pela segunda vez e num espaço de quatro anos a mesma argumentação. Portugal sentia que os norte-americanos afinavam pelo mesmo diapasão e isso não deixou de ser reclamado como uma vitória da diplomacia salazarista. Em Portugal, transmitia-se oficialmente a ideia de que os americanos, «tão rígidos na interpretação da letra do Pacto», procuravam o apoio dos aliados na NATO «para as dificuldades com que se deparavam no Vietname», ainda que tal apoio não se concretizasse. Criticava-se mesmo a atitude dos Estados Unidos que, agora, por necessitarem de apoio para a prossecução da sua política no Vietname, utilizavam o «critério da solidariedade global e universal como único meio para fazer frente com sucesso a uma ofensiva global e universal»[38].
Em meados de 1966, a hostilidade americana face à política colonial portuguesa desaparecera por completo. Uma das explicações para tal comportamento pode ser corroborada pelo relatório produzido nesse ano pelo segundo-secretário da Embaixada em Lisboa, Everett Briggs. Neste relatório, a recomendação principal prendia-se com o abandono de qualquer iniciativa em relação a Portugal e às suas colónias – os Estados Unidos deviam optar pela aproximação pragmática em detrimento da aproximação ideológica no que tocava às questões africanas. Os últimos anos das relações luso-americanas tinham sido manchados pelo confronto ideológico de duas posições antagónicas com prejuízo para os Estados Unidos, já que o Acordo das Lajes não fora renovado. Segundo Briggs, «a insistência na autodeterminação como solução prática para a África portuguesa era inútil e irrealista». A solução passava pelo reconhecimento público das mudanças introduzidas pelos portugueses em África, logo após as insurreições nacionalistas. Isso seria certamente valorizado pelo Governo português e a Administração americana readquiriria o capital político necessário para a renovação dos Acordos dos Açores. A recomendação de Briggs inspirava-se nos resultados das tentativas pretéritas para inflectir o rumo colonial de Salazar, desde as restrições à venda de armamento militar, passando pela posição assumida pelos Estados Unidos nas Nações Unidas, que a nada conduziram. Em última análise, o que os Estados Unidos deviam fazer era assegurar que Portugal preparava as colónias para um futuro melhor, quer do ponto de vista económico quer do ponto de vista social, sem se preocuparem «excessivamente com o desenvolvimento político dessas áreas no presente»[39].

A EXTENSÃO DO TRATADO AO ATLÂNTICO SUL


A extensão geográfica do Pacto ao Atlântico Sul foi sempre invocada por Portugal desde 1949. Durante as negociações para a adesão, Salazar procurou integrar na área de defesa o Atlântico Sul, tendo em vista designadamente os portos de Angola e o arquipélago de Cabo Verde e consequente defesa das possessões europeias em África[40]. Mas a proposta portuguesa para a inclusão das colónias africanas na zona de aplicação do tratado foi recusada durante as negociações. Os aliados europeus e norte-americanos não estavam dispostos a patrocinar essa defesa do império colonial português[41].
O problema dos limites geográficos do Pacto não foi exclusivo dos portugueses. Também a França e a Bélgica se fizeram ouvir na NATO. No caso da Bélgica, a crise no Congo levou Bruxelas a utilizar a retórica dos «interesses comuns de segurança consagrados no Pacto na esperança de que os outros aliados, incluindo o líder da Aliança, fosse solidário e apoiante [no restabelecimento da ordem numa zona fora do tratado]». Tal como invocou a França durante a crise do Suez, em 1956[42].
O que importa salientar aqui é a insistência com que Portugal utilizou o argumento da extensão geográfica do tratado. Numa altura em que o armamento já tinha sido enviado para África, Vasco da Cunha comunicava aos seus pares que Portugal se vira obrigado «por motivos imperiosos de ordem nacional a reduzir consideravelmente os seus compromissos NATO». Esta decisão ponderada pelos governantes portugueses tinha por móbil a defesa da «integridade nacional» de Portugal. O embaixador não deixou de referir também que todo o esforço que Portugal estava a fazer fora do tratado «tend[ia] a preservar para o mundo livre as regiões que em tempos de guerra seriam da mais alta importância do ponto de vista estratégico»[43]. A ideia de que o Atlântico Sul devia ser guarnecido militarmente, por forma a não permitir qualquer avanço das forças comunistas pelo flanco sul, era uma ideia continuamente utilizada por Portugal.
Houve um momento na história da Aliança em que este argumento chegou a ser considerado. Na sequência da crise dos mísseis de Cuba, em Outubro de 1962, foi produzido um relatório (Documento MC100) pela Comissão Militar da NATO com uma estimativa de ameaça a longo prazo. Neste documento, apontavam-se «as áreas do oceano Atlântico como uma linha de comunicações vital para os membros da Aliança» e alertava-se para o perigo de os soviéticos conseguirem uma supremacia em áreas que naquele momento estavam nas mãos de aliados[44]. Era clara a referência à importância das bases portuguesas no Atlântico Sul em caso de guerra. Depois da crise de Cuba, os altos comandos da NATO ponderavam todas as hipóteses e Portugal aproveitou este facto para mais uma vez reivindicar o valor estratégico das suas possessões em África. Por esta altura, o tom das críticas dos aliados revelava-se cada vez mais fugaz e intermitente. Já não havia a pressão diplomática que houvera logo após a irrupção nacionalista em Angola.
Em 1964, Portugal expunha mais uma vez as suas reflexões estratégicas no que diz respeito ao Atlântico Sul, relembrando que nunca impôs limites geográficos à acção da NATO e que era em defesa dos valores ocidentais, os mesmos que os Estados Unidos reclamavam na guerra do Vietname, que os portugueses combatiam em África. Reclamava-se, então, uma alteração dos estatutos da Aliança que se «deveriam inspirar nos valores» ocidentais, cuja crise de mentalidade no Ocidente não lhes permitia ver o perigo evidente, pois «havia falta de coragem para assumir a defesa desses valores»[45]. Esta tese foi debatida ad nauseam entre os aliados. Portugal concluía que «a Aliança, tal como existia, tinha uma utilidade muito restrita», utilidade que podia vir a ser irrisória «se o comunismo conseguisse levar avante a vasta manobra de flanqueamento […] através da Ásia e da África»[46]. Este acenar do perigo comunista, aliado à conjuntura do momento, começou a ganhar alguma aceitação e permitiu mitigar os ataques à política colonial de Salazar dentro da organização.

A INSTALAÇÃO DO IBERLANT EM 1967


A instalação do IBERLANT (Iberian Atlantic Command / Comando Ibérico do Atlântico), em Lisboa, em Fevereiro de 1967, constituiu talvez o maior endosso político da Aliança ao regime de Salazar após o início das guerras de África. Um ano antes, Salazar tomara conhecimento das duras críticas de De Gaulle ao comando militar da Aliança e à forma como aquela estava a lidar com a ameaça nuclear soviética. No relatório entregue ao ditador, duas hipóteses são aventadas para as objecções francesas à NATO: primeira, as ameaças que o mundo enfrentava, em especial a Europa, e que estiveram na génese do Pacto, em 1949, eram de outra natureza; e segunda, os aliados deviam manter as suas obrigações militares do Pacto face à ameaça comum, mas «não são necessárias nem desejáveis a existência de uma força integrada e uma estrutura de comando»[47].
O endurecimento militar norte-americano no Vietname viera confirmar as fragilidades da Aliança num momento crítico e De Gaulle aproveitou essa janela de oportunidade para reclamar um maior protagonismo na Europa para a França. O general queria, entre outras coisas, que o seu país tivesse um maior ascendente político nos comandos da Aliança. Um subterfúgio utilizado por De Gaulle foi o argumento da transferência do comando das bases americanas em França para os franceses.
Dada a impossibilidade de ver cumpridos os seus desejos, o chefe de Estado francês informa o Conselho no dia 12 de Março de 1966 que a França se retirava da estrutura militar da NATO, embora se mantivesse como membro da aliança política. «Estremece[u] o mundo ocidental»[48], nas palavras de Franco Nogueira. À primeira vista, e fazendo fé no comentário do ministro português, Portugal vê na decisão francesa uma consequência terrível e inevitável da evolução política da Aliança ao longo da década de 1960. Em Junho do mesmo ano, num encontro realizado em Bruxelas, os catorze aliados voltavam a debater o problema da França e fica decidido a transferência da sede da NATO para a Bélgica. Para os britânicos e americanos não fazia sentido a França integrar o quadro político da Aliança sem estar integrado no sistema de defesa militar. A esta observação contrapuseram-se Portugal, Canadá, Itália e os países escandinavos. Franco Nogueira confrontou mesmo os restantes aliados com a actual crise da Aliança, dizendo que esta era «uma consequência natural da crise política» existente na NATO e que «se traduzia na ausência de solidariedade revelada entre os aliados em quase todos os problemas» fora do âmbito do tratado[49].
Uma consequência directa para benefício português da retirada da França da estrutura militar da NATO foi a instalação do IBERLANT, em Lisboa. Quando, em 1958, a NATO decidiu criar um novo comando para o Atlântico e mar Mediterrâneo, a França e o Reino Unido disputaram entre si a sede e a chefia deste comando naval. Como não se chegou a um acordo, a criação do IBERLANT ficou adiada e passados oito anos a solução de compromisso passou pela entrega do novo comando a um almirante americano, Edwin S. Miller. Era mais uma ferroada da Aliança na ambição de De Gaulle. Os franceses tomaram esta decisão como uma afronta ao prestígio militar das suas forças. A saída da França da estrutura militar da NATO consumou-se com a retirada das forças militares francesas da RFA, a 1 de Julho de 1966, dando De Gaulle um prazo até 1 de Abril de 1967 para as forças americanas e canadianas se retirarem do território francês.
O comando do IBERLANT foi colocado em Lisboa[50] devido à sua posição geográfica e por via de considerações políticas relativas às tensões no Norte de África e mar Mediterrâneo. Mesmo aqueles aliados que sempre criticaram Portugal – os nórdicos, por exemplo –, não se manifestaram contra esta decisão da Aliança. Nada nos é transmitido dessas embaixadas, o que nos leva a supor que esses países distinguiram os interesses gerais dos interesses particulares. O que estava em causa na instalação do novo comando em Lisboa não era uma cedência particular a um aliado, que desde o início da década se encontrava marginalizado no seio da Aliança, mas uma estratégia funcional da própria Aliança. Em todo o caso, é justo dizer que o IBERLANT funcionou como um paliativo para as críticas mais ferozes dos adversários de Portugal.

CONCLUSÕES

Portugal beneficiou a todos os níveis do estatuto de parceiro atlântico. A maior vantagem foi a utilização de armamento afecto às operações militares da NATO nas repressões das revoltas nacionalistas, ocorridas no início da década de 1960. Salazar confundiu as contas dos aliados enviando para África armamento destinado aos planos defensivos da Aliança, bem como equipamento considerado «obsoleto». Da parte dos aliados, poucos se mostraram empenhados em escrutinar de perto essa situação. Sem essa tolerância, o País teria sentido muito mais dificuldades em prosseguir com a guerra no ultramar.
Para além do contínuo fornecimento de armamento NATO, a política colonial de Salazar conseguiu aguentar-se em África sobretudo graças aos apoios bilaterais de países aliados, cuja plataforma de entendimento foi o fórum da Aliança. Corroborando as palavras de António Costa Pinto, «a condição de membro da Aliança Atlântica pode ter sido irrelevante e incómoda para os restantes parceiros, mas foi um poderoso instrumento de estabilidade da Ditadura portuguesa, oferecendo-lhe um escudo protector na sua derradeira aventura colonial»[51].
As oportunidades de contacto e consulta oferecidas pela NATO permitiram a Portugal fortalecer as relações bilaterais entre aqueles aliados que partilhavam o seu ponto de vista acerca do ultramar e quiseram aproveitar esse apoio para interesse próprio, como foi o caso da França do general De Gaulle. Contrariamente à Administração Kennedy, os parceiros atlânticos nunca tentaram influenciar o rumo da política colonial do Estado Novo através da Aliança. Com Johnson no poder, essa intenção foi-se esvaindo ao longo da década e as últimas diligências visando uma inflexão da política ultramarina de Lisboa revestiram-se de um carácter mais discreto e bilateral.


Um aspecto que nunca chegou a ser equacionado por Salazar ao longo da década de 1960 foi a possível saída de Portugal da Aliança. Havia, no entanto, a convicção de que a organização devia cumprir o que estava consignado – defender o Ocidente da ameaça comunista nem que para isso fosse necessário combater em África. A tentativa de defesa de Portugal em África traduziu-se desde o início do Pacto no desejo de estender o tratado ao Atlântico Sul. Christopher Coker também defende esta ideia: «Longe do desejo da retirada da NATO e dos seus compromissos políticos e militares, Portugal desejava estendê-los.»[52] Como é sabido, Portugal nunca foi capaz de persuadir os seus aliados da bondade dos seus argumentos e a NATO – prudentemente – soube manter-se afastada dos seus conflitos em África.

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