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domingo, 17 de fevereiro de 2019

Ganhou, perdeu e transformou-se num hino: 50 anos depois, esta é a história da “Desfolhada” contada por quem a viveu





A 24 de fevereiro de 1969, a "Desfolhada" ganhava o Festival da Canção. Não conquistou a Eurovisão, mas fez história. Simone de Oliveira e Nuno Nazareth Fernandes recordam-na.
Estavam todos a pensar no mesmo: como é que isto aconteceu, como é que chegámos aqui? “Se eu falhei peço perdão”, desabafa Simone de Oliveira, em letras garrafais, capa do Diário de Lisboa, um dia após a humilhante derrota portuguesa no país vizinho. 

A expectativa com “Desfolhada” era alta, a canção de Nuno Nazareth Fernandes e José Carlos Ary dos Santos, vencedora do Festival RTP da Canção de 1969, de melodia revigorante e lirismo aglutinador, era “considerada a melhor letra pelos jornais estrangeiros” (o nome haveria de ser alterado para “Desfolhada Portuguesa”, para evitar problemas legais com uma obra que já teria o título de “Desfolhada”, esclarece-nos Nazareth Fernandes).
“A minha poesia é de raiz popular. E canto com ela a terra, o sangue, o corpo e espírito do meu país”, defende o poeta em Madrid após revelarem o resultado, a profetizar o que seria a imortalidade desta canção, do fracasso à aclamação, dos céus aos infernos, finalmente um hino à medida da então tragédia dramática do povo português.
No dia anterior, pouco antes da final da Eurovisão, o ambiente era outro. “Sinto-me como o Benfica nas jornadas europeias”, graceja Simone para o repórter do Diário de Lisboa, que descreve um cenário de alegria expectante, camarim repleto de flores, telegramas e dedicatórias. Nervosa, a cantora dá os últimos toques ao vestido verde, rodeada pela comitiva portuguesa, ajusta a capa branca “com três brilhantes a servirem de botões e uma raposa branca na gola”. A confiança era consequência da força da canção, da receção imediata, lugar cativo dentro do imaginário popular, das centenas de pessoas que acenam para o comboio rumo à capital do nosso velho inimigo, pela Estremadura à dentro. “O representante da RTP era o Manuel Jorge Veloso, encarregado de capitanear a excursão”, diz agora ao Observador Mário Martins, então A&R da Valentim de Carvalho. “Ele tinha horror de aviões, tivemos de atravessar o país de comboio”. Era quase certo, o resultado só podia ser risonho, ia ser desta.

A primeira página do Diário de Lisboa de 30 de março de 1969, um dia depois da final do Festival da Eurovisão
“Foi a primeira vez que levámos um instrumento português, tentámos uma coisa diferente, a Simone estava linda, esteve tudo muito bem”, conta-nos o compositor Nuno Nazareth Fernandes. 
“Mas colocaram a fasquia muito elevada e havia muita política anti-Portugal, estávamos no auge da guerra de África”. Depois anunciam o 15.º lugar de “Desfolhada” perante 250 milhões de espectadores, meros quatro pontos, penúltima posição, classificação ainda pior que o ano anterior. Em protesto, Portugal decide não participar na edição seguinte. 
O Diário de Notícias atira a toalha ao chão, acusa a Eurovisão de celebrar a “comédia, o yé-yé, o grande jogo dos lançadores de discos, as afinidades linguísticas e ideológicas, a politiquice”, enquanto O Século não esconde a amargura com o júri, “em função de compadrios, de habilidades de bastidores e de interesses visivelmente comerciais”. 
“Foi uma confusão”, lembra Mário Martins. “Começaram a dizer que Simone foi envenenada”.
Depois da derrota em Madrid, “as pessoas perceberam que alguém tinha feito mal ao país, elas estavam ali por Portugal, pela terra, pelo ‘quem faz um filho, fá-lo por gosto’”, reflete a cantora, na altura estarrecida com as milhares de pessoas “a cantar a ‘Desfolhada’ como se existisse há anos”.
Após o desaire, segue-se um jantar de gala, a inevitável diplomacia festivaleira. “Os países, os maestros, foram pedir-me desculpa, um a um”, relembra-nos hoje, ainda emocionada, a porta-voz da “Desfolhada”, Simone de Oliveira. ~
“A meio do jantar, sabe Deus como, entram uns quarenta estudantes portugueses da capa e batina, fica tudo com a boca aberta”, descreve. Os estudantes “a aproximarem-se e a meteram-me uma capa” foi a última gota para a cantora derrotada: “Chorei tanto”. Lágrimas que se arrastam ao longo do dia seguinte, de orgulho ferido, de volta ao comboio da boa memória, rumo a Santa Apolónia, preparados para enfrentar a fúria do povo, certamente com pedras da calçada nos bolsos.
[a atuação na Eurovisão, em Madrid:]

“No comboio avisaram que era melhor termos cautela que estava um bocadinho de gente, nunca esperámos aquilo”, confessa Simone, a garantir que “nunca mais aconteceu ver tanta gente em Santa Apolónia”. 
“Completamente inédito até hoje, aquela quantidade de pessoas por causa de uma canção”, confirma o A&R da Valentim de Carvalho. Abrem-se as portas da carruagem, e do outro lado, um mar de gente, outra dimensão, um universo alternativo onde a “Desfolhada” venceu todas as provas da vida. 
Depois da derrota em Madrid, “as pessoas perceberam que alguém tinha feito mal ao país, elas estavam ali por Portugal, pela terra, pelo ‘quem faz um filho, fá-lo por gosto’”, reflete a cantora, na altura estarrecida com as milhares de pessoas “a cantar a ‘Desfolhada’ como se existisse há anos”. 
Na zona mista, ainda a quente, a RTP está em cima de Simone, questiona-a sobre a “a injustiça da sua classificação”. “São coisas que não tem explicação, aceitam-se ou não se aceitam”, responde. “Paciência”, acrescenta, ou como sentencia o Diário de Lisboa, “o costume, fica para o ano”.

“É preciso começar a partir isto tudo”

O carnaval da Eurovisão não era estranho a Simone de Oliveira, uma figura presente na rádio, na televisão, nos jornais ou nas revistas do seu tempo, como a Plateia e a Flama. Porém, apesar de ser vencedora do Festival RTP da Canção em 1965, faltava libertar-se das amarras das canções compostas por Carlos Nóbrega e Sousa, ultrapassar o preconceito de que era vítima por ser mãe solteira e cantar perante um país “Quem faz um filho, fá-lo por gosto”. 
“A Flama, profundamente católica, tinha um grande drama”, diz Simone sobre o período em que defende “Sol de Inverno” em Nápoles. “Eu tinha recebido um prémio e não queriam meter na capa da revista uma mulher solteira com dois filhos”. Divorciada, a cantora reergueu-se do traumatizante casamento em frente à plateia da Rua do Quelhas, número 2, sede da Emissora Nacional. Atraída pelo paraíso suspenso do palco, distante da humilhação, passa da rádio para a televisão, carreira alavancada pela entrega dramática de composições de Carlos Nóbrega e Sousa. Não era suficiente. A imortalidade estava ao virar da esquina, bastava que os desígnios do destino costurassem o encontro do poeta com o estudante de engenharia.
[“Simone no Festival da Canção de 1965, com “Sol de Inverno”:]

Aos cinco anos, Nuno Nazareth Fernandes é um habitué nos circuitos musicais da capital, presença assídua nas galas do Teatro Nacional de São Carlos, de fraque branco, acompanhado pelos pais músicos. Autodidata, recusa-se a obedecer ao rigoroso solfejo da professora Maria Luís Manso, a motivação para tocar tinha de ser de outra espécie, mais apetitosa. 
“Em frente à janela de meu quarto dava para ver a vivenda do lado, a casa-de-banho que normalmente estava aberta, com uma governanta alemã”. Descarta a possibilidade de arrastar um piano até ao quarto, vai à luta de viola aos ombros, e em longas serenatas, a governanta alemã torna-se no primeiro público das composições de Nuno Nazareth Fernandes. “Era tudo para impressionar as miúdas”.
Nos corredores do Instituto Superior Técnico, Nuno Nazareth desabafa para o colega do lado: “É preciso começar a partir isto tudo”. Assim como a restante geração ié-ié portuguesa, ouvem atentamente o 
“Em Órbita”, do Rádio Clube Português, e pelo meio das cantigas que agitavam o universo anglófono, decidem partir tudo, romper com o vigente nacional cançonetismo, criar melodias pujantes que abanem o país, de frases veladas, que apontassem o dedo aos monstros do regime. O primeiro resultado é 
“O Vento Mudou”, com letra do colega do Técnico, João Magalhães Pereira, e voz de Eduardo Nascimento, vencedores improváveis do Festival RTP da Canção em 1967, dois estudantes e um negro, em pleno Estado Novo. “O país parava mesmo com o festival”, descreve Nuno. “A partir do momento em que as pessoas percebem que havia uma geração que estava a infiltrar-se no festival para, por dentro, conseguir combater um estado de coisas, começaram a acompanhar a sério a competição”.
[“O Vento Mudou”, por Eduardo Nascimento, no Festival de 1967:]

Irrequieto, há um copy de publicidade que é uma presença contagiante, desafogada, que convence em dois tempos o jovem compositor a musicar um jingle. O produto chama-se ‘Love Me Baby’, a função é irrelevante, mera nota de rodapé para o encontro que seria determinante para os rumos da canção portuguesa. 
“O copy era um senhor chamado José Carlos Ary dos Santos, mas a música que fizemos era detestável”, diz-nos o músico sobre a primeira parceria Nuno Nazareth/Ary dos Santos. Em 1969, Ary é um poeta reconhecido, o livro Insofrimento In Sofrimento é mais um capítulo transgressor de uma carreira literária de duas décadas, e “Desfolhada” não seria uma estreia como letrista, nem o seu último texto musicado. De “Tourada” a “Lisboa Menina e Moça”, Ary torna-se um expoente máximo da consagração da composição popular portuguesa. 
Até hoje, é um letrista — “um poeta”, como corrige o parceiro — a descobrir. A propósito: neste 2019, ainda sem data de lançamento, vamos poder ouvir duas parcerias inéditas de Ary dos Santos com Alain Oulman, “Da Torre Mais Alta” e “Amêndoa Amarga”, na voz de Amália Rodrigues, gravados pouco depois de “Desfolhada”.

24 de fevereiro de 1969: José Carlos Ary dos Santos, Simone de Oliveira e Nuno Nazareth Fernandes festejam a vitória no Festival RTP da Canção com "Desfolhada"
“O José Carlos era um homem de extremos, intratável com a maior parte das pessoas, e muito próximo dos amigos, e era mesmo um génio. Era incapaz de assobiar, não tinha um mínimo de ouvido musical, e conseguia fazer poesias perfeitas para música”, conta Nuno sobre o outro grande interveniente desta história, que morre de forma traumática em 1984. “É uma pessoa de quem tenho uma eterna saudade, para mim não era um autor de letras, era um amigo”, realça Simone, acrescentando que “podia ser extraordinariamente agradável, podia ser insuportável, se não gostava da pessoa, dizia-lhe imediatamente na cara”. 
A cantora de “Desfolhada” teria a responsabilidade, “o privilégio”, de guardar a chave de casa de Ary no caso de qualquer emergência. “Foi alguém que me conheceu muito bem, de tal maneira que fui a única a quem ele não disse que estava doente”.

“Com meia garrafa de whisky era notável, com uma garrafa era genial”

A “Desfolhada”, assim como as posteriores canções da parceria, deu os primeiros passos na casa de Nuno Nazareth, na reclusão contemplativa que dá azo às desenvolturas da alma. “Claramente decidi fazer aquela melodia, percebi que isto tinha abanado com 
‘O Vento Mudou’, e depois com o ‘Verão’ de Carlos Mendes, e que tinha de continuar a entrar por aí”. Ou seja, em frente era o caminho, pela rutura, pelas melodias exuberantes de uma juventude vigorada, uma geração que, da primeira aragem ao escaldão do verão, ansiava pela mudança drástica, longe do tempo invernoso. O rompimento seria à bruta, a “partir tudo”, uma marcha galopante a correr atrás do país que não se cumpriu. 
“A ‘Desfolhada’ é também muito influenciada pela música eslava, por Rachmaninoff”, acrescenta. “Tem umas nostalgia profundamente russa, que é próxima de Portugal”.
[“Verão”, por Carlos Mendes:]

“O Nuno tinha o hábito de andar com gravador a tiracolo”, explica Mário Martins, que entendeu o potencial daquela melodia, e consente a entrega do diamante a lapidar para as mãos de Ary dos Santos, com larga vista sobre o Tejo, na Rua do Alecrim. 
“O Nuno sentava-se no chão, agarrava a viola, e o outro desatava a escrever”, descreve Simone sobre a dinâmica da parceria, duas pessoas aparentemente com pouco em comum e que, estranhamente, “faziam sempre a coisa acontecer, às vezes as músicas saíam de rajada”. Um copo ou dois na mão, era a afinação necessária do poeta para calibrar os versos. “Com meia garrafa de whisky era notável, com uma garrafa de whisky era genial”, assegura a cantora. Delineia uma estratégia infalível para ganhar o festival. 
“A ideia era apanhar todas as capitais de distrito de Portugal, aquilo foi feito para ganhar o festival com os mecanismos que havia na altura”, revela Nuno sobre a letra de “Desfolhada”. “Só que o José Carlos consegue apanhar todas as imagens para ganharmos os votos e com um toque político muito grande”.
“É trigo loiro, é além Tejo
O meu país neste momento
O sol o queima, o vento o beija
Seara louca em movimento”
A rebelião silenciosa de um povo terreno, agrário, fazia-se ouvir, alto e bom som, nos trechos da letra de Ary dos Santos. Talvez deslumbrada pelo aparente patriotismo geográfico da canção, a censura altera apenas uma palavra. “Quando diz ‘Casca de noz desamparada’, na letra original era ‘Casca de nós desamparada’, de resto a censura era muito burra para perceber”, atesta Nuno. 
“Conhecia o texto da ‘Desfolhada’, que saiu da televisão à sorrelfa, foi o José Mensurado que a mostrou numa boite, num papel de embrulho”, conta Simone. “Perguntei quem escreveu aquilo, e ele disse ‘foi o poeta comunista que escreve para a Amália’”. É aparente a crescente preocupação do letrista com o estado do país, com o potencial renovador da reforma agrária, fruto da sua aproximação clandestina ao Partido Comunista Português. 
“Mas eles nunca o deixaram entrar no partido porque era homossexual, o que foi um grande desgosto para Ary, ele chorou muito, só foi aceite anos depois”, denuncia Nuno.
“A Simone era de trato difícil, andava sempre às turras, não lhe passavam os discos na rádio, felizmente sempre lhe valeu o talento extraordinário”, sugere Mário como possível razão da cantora não ser imediatamente pretendida. “Se a ‘Desfolhada’ tivesse sido cantada por outra pessoa que não a Simone não teria tido o impacto que teve”, afirma sem rodeios o compositor. “Era a música certa, com a letra certa, para a pessoa certa”.
De pouco valeu armar a entrada sagaz de “Corpo de linho/ Lábios de mosto”, introduzir um plano sensual da mulher orgulhosamente despida, a exibir com vigor o “Meu corpo lindo/ Meu fogo posto”. De pouco valeu ainda a mágoa lírica transfigurada para as serras, o pinho verde, o país que, “neste momento”, naquele momento, estava preparado para desfolhar a espiga, ser a “seara louca em movimento”. 
Tudo foi tempo perdido para o poeta: porque após o festival, somente uma frase de “Desfolhada” escoava como um alento, um alarme, nos ouvidos da população portuguesa: “Quem faz um filho, fá-lo por gosto”.
“Havia uma sociedade patriarcal onde a mulher era segundo plano”, realça Nuno, a lembrar que “a Simone a dizer aquilo foi uma bofetada na hipocrisia portuguesa, nas linhas de pensamento do Estado Novo”. “Quando mostram depois o poema para eu cantar, não disse que já o conhecia, perguntaram: ‘És capaz de cantar isto, quem faz um filho, fá-lo por gosto?’ ‘Sou’”, narra-nos Simone. “Se pensar que eu tive filhos sem ser casada, nunca teria problemas em cantar aquilo”. 
“No dia a seguir ao festival parecia que o país inteiro tinha ficado ofendido”, acrescenta Mário Martins. Hoje, talvez não esteja tão distante de nós este estado patriarcal em que Simone bateu de frente. “Num espetáculo grande em Leiria, que fiz com Jorge Machado, um homem levanta-se e começa aos gritos, chamou-me de tudo, de puta para cima, aconteceu várias vezes, em vários sítios”.

Simone de Oliveira, fotografada em casa: “É espantoso como, 50 anos depois, as pessoas sabem a canção de fio a pavio”, diz (Foto: João Porfírio)
“Na altura Portugal estava numa grande encruzilhada, foi um ano muito complicado, ao mesmo tempo espetacular, ainda bem que aconteceu a ‘Desfolhada’”. Há 50 anos, conforme Nuno Nazareth explica, o país atravessava um momento particular e fraturante da sua história. 
O cenário era pautado pelas primeiras eleições legislativas após a saída de Salazar da Presidência do Conselho, a decorrerem no aparente, e efémero, clima primaveril sob Marcelo Caetano. Na RTP, o último Presidente do Conselho do Estado Novo apresentava semanalmente o seu projeto para o país, enquanto Raul Solnado, Carlos Cruz e Fialho Gouveia davam asas à canção portuguesa no reformador “Zip-Zip”. 
O momento angustiante — e belo — da “Pedra Filosofal” foi porventura o número mais arriscado do programa, com Manuel Freire a garantir que eles não sabiam o que é um sonho, que estávamos no limite, ou como cantou José Afonso neste mesmo ano, cuidado que “Qualquer dia/ Qualquer dia”.

“A música certa, com a letra certa, para a pessoa certa”

No Candelabro, restaurante de Simone de Oliveira em Lisboa, na Artilharia 1, entram Nuno Nazareth acompanhado de Ary dos Santos, Mário Martins e a restante comitiva portuguesa que em breve estaria vitoriosa a caminho de Madrid. “Desfolhada” tinha sido aceite na fase preliminar do Festival RTP da Canção, mas faltava um pequeno detalhe: um intérprete. No fim da lista estava Simone. 
Habitualmente, entre as editoras e autores, tentava definir-se o intérprete ideal, distribuir convites, e com sorte, aproveitar o palco mediático para revelar uma nova voz. A escolha do cantor é um passo determinante no certame, o sim-ou-sopas definitivo, sendo um exemplo célebre de ensopado, a redenção falha de “Canção De Madrugar”, talvez onde se conjugaram melhor os ingredientes da parceria Nuno/Ary, segundo lugar no festival de 1970. Simone de Oliveira era mesmo a quarta escolha. Madalena Iglésias recusa-se a cantar o trecho controverso e a atriz Elisa Lisboa, então desconhecida, não se encaixa no perfil. Segue-se, porque não, a mulher do orquestrador Jorge Machado, Verónica, que não consegue tomar conta da estrutura vocal da exigente canção. 
“A única solução viável passou para alguém que ao menos cantasse bem”, confessa o responsável da Valentim de Carvalho.

"Na altura Portugal estava numa encruzilhada, foi um ano muito complicado, ao mesmo tempo espetacular, ainda bem que aconteceu a 'Desfolhada'", confessa Nuno Nazareth Fernandes (Foto: João Porfírio)
“Já cantava desde os 19, tive o ‘Sol de Inverno’, a carreira estava bem, estava confortável, mas mesmo assim fui a quarta escolha para o festival”, responde Simone sobre o convite inesperado à mesa do Candelabro. 
“A Simone era de trato difícil, andava sempre às turras, não lhe passavam os discos na rádio, felizmente sempre lhe valeu o talento extraordinário”, sugere Mário como possível razão da cantora não ser imediatamente pretendida. “Se a ‘Desfolhada’ tivesse sido cantada por outra pessoa que não a Simone não teria tido o impacto que teve”, afirma sem rodeios o compositor. “Era a música certa, com a letra certa, para a pessoa certa”.
Segundo os especialistas, o forte candidato à vitória é a “Cantiga” de Fernando Tordo, e pelos cafés aperta-se expectante o povo português, a desertificar os teatros e cinemas de Lisboa. No palco do Teatro São Luiz, dia 25 de fevereiro, é a estreia do Festival RTP da Canção fora de Lumiar. 
O Chiado veste-se a rigor, são espalhados cartazes com os cantores finalistas, tudo alinhado e afinado para, nas palavras do Diário de Notícias, “um espetáculo digno de inaugurar a televisão a cores”, com lucros remetidos para a Liga Portuguesa Contra o Cancro.
Uma pilha de nervos, Simone de Oliveira arrepende-se à última da hora, alinha o penteado deslumbrante, a condizer com a voz que em breve encantariam Portugal. “Eu era a primeira, e sabia muito mal a letra, tive muito pouco tempo para aprender”. “Primeira canção, ‘Desfolhada’”, começa a apresentadora Lourdes Norberto. “Canta Simone de Oliveira, dirige a orquestra Ferrer Trindade”. “Pode-se ver no vídeo, o ritmo que o Ferrer imprime, ele está contente”, relembra Nuno. “O São Luiz foi abaixo, não esperava”, admite a cantora que tinha como certa a vitória de Maria da Fé e “Vento do Norte”. “Quando comecei a ver a pontuação foi maravilhoso”.
[a interpretação de “Desfolhada” por Simone de Oliveira, no Festival da Canção de 1969:]

Simone de Oliveira, Nuno Nazareth e José Carlos Ary dos Santos sobem ao pódio improvisado, no Largo do Camões, e sob as barbas de poeta épico, sob os olhos do regime, têm o momento notável das suas vidas captado por Eduardo Gageiro. A legenda da fotografia, título do Século ilustrado, acerta na mouche: “Quem ganha um festival, ganha-o com gosto”. “Mexeu com este país todo”, reflete Simone. 
“É espantoso como, 50 anos depois, as pessoas sabem a canção de fio a pavio”. “Desfolhada” é lançada num EP com mais dois temas de Nuno Nazareth e Ary dos Santos, com arranjos de Joaquim Luís Gomes, “Cinco Pedras Cinco Quadras” e “Avé-Maria Do Povo”. Depois de Madrid, depois da chegada apoteótica em Santa Apolónia, a parceria do poeta e o ex-aluno do Técnico seriam uma constante na carreira de Simone. As Palavras Que Eu Cantei, por exemplo, álbum de 76, é composto quase por inteiro pela dupla, que nessa altura já contava com “Menina”, a segunda vitória no Festival RTP da Canção, em 1971. No entanto, até Simone de Oliveira ser presença consagrada no palco, ainda teria de descer aos infernos, incorporar a heroína trágica da canção portuguesa, fénix renascida de voz rouca.
“Tanto cantei que perco a voz, por excesso de trabalho e voz mal colocada”, lembra ainda sensibilizada. “Tinha laringites e faringites, e tinha um contrato com aquele senhor, que rasgava as recomendações dos médicos à minha frente”.
“Depois de Madrid, lembro-me de ter dito à Simone que ela podia ter um problema com a voz, estava a forçar muito”, recorda Nuno sobre a temporada ininterrupta de concertos após o sucesso arrebatador da “Desfolhada”, com outros, como Mário Martins, a expressar preocupação pela inevitabilidade. “Quando ela canta dava tudo”, confirma. 
Enclausurada às exigências contratuais do empresário Marcos Vidal, continuou a cantar, a dar tudo, até ao dia fatídico, na Madeira, quando a voz se desliga, “como se fosse um interruptor”. “Tanto cantei que perco a voz, por excesso de trabalho e voz mal colocada”, lembra ainda sensibilizada. “Tinha laringites e faringites, e tinha um contrato com aquele senhor, que rasgava as recomendações dos médicos à minha frente”.


Poucos meses depois de suspender o país em louvação, Simone estava sem voz, sem futuro, com dois filhos para alimentar. “Foi a melhor coisa que me aconteceu, tinha ficado a menina dos festivais, não cantaria até hoje”, indica satisfeita, com Nuno a concordar que “o que perdeu em potência, ganhou em interpretação”. A limitação na extensão da voz seria o alento para explorar outros caminhos, as nuances das canções, e claro, continuar a cantar 
“Desfolhada” eternamente, numa memória infinita da final no Teatro São Luiz, a reação do Portugal conservador, a humilhação em Madrid, a apoteose e a descida aos infernos.
Contam-se com uma mão as canções que são indissociáveis da história de Portugal. “Queiram ou não queiram, a ‘Desfolhada’ existe, faz 50 anos, e este país sabe a ‘Desfolhada’ como um hino”.
fotografia de João Porfírio.
https://observador.pt

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