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Seleção e tradução de Júlio Marques Mota
Na sequência da troca de ideias com o Professor Marques Mendes , e como reação às posições por este professor assumidas, mandou-me o colega Stuart Holland o texto que irá integrar esta nova série intitulada “ A responsabilidade da esquerda na trajetória de ascensão do neoliberalismo – algumas grelhas de leitura“.
Li-o atentamente, e interpretei-o como um bom exemplo de como funcionou uma certa esquerda intelectual junto da esquerda oficial que ocupou o centro do arco do poder ao longo de anos. Nesse sentido, achei que seria uma mais valia para quem estuda as questões da União Europeia e traduzi-o. Discordando-se ou não do autor, o que aqui é irrelevante, penso que, no fundo, se trata de mais um texto que pode ser útil a estudantes de mestrado e de doutoramento que se interessem por esta problemática, com uma elucidativa bibliografia sobre alguns dos marcos mais importantes no processo de integração europeia.
Trata-se de um texto com a chancela bem pessoal de Stuart Holland, um observador que esteve em posição bem privilegiada pelas chancelarias para nos poder dar o seu registo, muito pessoal, da luta mais ou menos surda entre dois mundos, o progressista e o neoliberal, no interior da esquerda europeia e, com particular realce, também no interior das Instituições Comunitárias, texto este desenvolvido no quadro do que foi a evolução da integração europeia.
Adicionalmente, trata-se também, pela parte de Stuart Holland, de um revisitar do que foi a sua própria posição pessoal neste longo e silencioso conflito de ideias e de políticas e um registo também do que ele mesmo pensa hoje sobre esses tempos e sobre os atores referidos. Direi mesmo que esta é uma via possível de análise do texto de Stuart Holland.
O texto em si-mesmo, a sua importância, as questões deixadas em aberto ou a que não se deu resposta, levou-me a compilar e a editar uma série de textos que lhe estão direta ou indiretamente ligados, a publicar em A viagem dos Argonautas, que terá como título : “A responsabilidade da esquerda na trajetória de ascensão do neoliberalismo – algumas grelhas de leitura”.
Nesta série constam ainda os seguintes autores: Domenico Mario Nuti, Dani Rodrik, Robert Kuttner, Rawi Abdelal, Nomi Prins, Peter Dorman, François Ruffin , Christiane Taubira.
Não menos curioso e ainda ligado à reação havida com o texto de Domenico Mario Nuti, tomei ontem conhecimento do texto da revista The Economist, intitulado Second Time, Farce: Rulers of the world: Read Karl Marx!
Ora, esta revista é sem dúvida uma referência fundamental, uma das mais sérias acrescente-se, na difusão das ideias do neoliberalismo e o texto denota, também ele e tal como o de Nuti, uma profunda preocupação quanto ao capitalismo de hoje, mesmo que os objetivos de ambos os autores sejam muito diferentes. O curioso desta análise da revista The Economist é a conclusão a que chega, de resto já bem implícita no título do artigo:
“A reação contra o capitalismo está a aumentar – e mais frequentemente sob a forma de raiva populista do que de solidariedade proletária. Até agora, os reformadores liberais estão a mostrar-se tristemente inferiores aos seus antecessores, tanto em termos da sua compreensão da crise como na sua capacidade de gerar soluções.
Eles deveriam usar o 200º aniversário do nascimento de Marx para se reencontrarem com o grande homem – não apenas para compreender as graves falhas que ele brilhantemente identificou no sistema, mas também para se lembrarem do desastre que os espera se não conseguirem enfrentá-las e resolvê-las”.
O texto de Stuart Holland teve pois o mérito de nos chamar a atenção para a importância de criar esta série sobre a trajetória da esquerda, tanto mais necessária ainda se tivermos em conta que a atual arquitetura da União Europeia é ela maioritariamente obra de governos socialistas e sociais-democratas que, pelo que se tem vindo a assistir, tiveram como preocupação máxima ocupar o espaço da direita para provarem que eram, à DIREITA, melhores que a própria direita! Os resultados estão á vista, daí a acusação de Dani Rodrik que Stuart Holland pretende contestar embora me pareça que erra o alvo.
Coimbra, 13 de janeiro de 2019
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[Nota para os Leitores TomDispatch: Eu odeio até mesmo falar nisso, mas chegamos a este momento novamente. O leitor sabe, o momento do final do ano, quando peço a todos os nossos leitores dinheiro para manter este site a funcionar.
Esta não é exatamente a maneira como eu gosto de gastar o meu tempo também, mas são as vossas contribuições que realmente nos permitem continuar vivos. Daí ter escrito um apelo de financiamento para todos os assinantes TomDispatch que começa assim: “Que ano este!
Eu não sei como foi convosco, mas eu estou exausto, vocês sabem por quem e a cobertura mediática dele de notícias falsas. Sim, eu sei, eu sei, … no estilo inimitável do presidente eu deveria ter posto pelo menos seis pontos de exclamação depois daquela frase.
Ainda assim, não penso que fosse uma descrição injusta dizer que eu não apoio as atitudes e crenças de Trump. Eu não insulto. Eu nem sequer twitto…” O apelo inclui, é claro, o expectável mas necessário pedido de doações. (…). Ou, se lhe der na gana, pode ir diretamente à página de doações de TD e dar o seu contributo.
Em contrapartida de uma doação de 100 dólares – 125 dólares se vive fora dos EUA – poderá escolher receber uma cópia assinada de vários livros Dispatch como sinal do nosso agradecimento. Creiam-me, vocês são mesmo importantes. Tom]
Este ano, simplesmente não consegui tirar um facto da cabeça: de acordo com um relatório de 2017 do Instituto de Estudos Políticos, três bilionários – Jeff Bezos, Warren Buffet e Bill Gates – acumularam tanta riqueza quanto a metade da sociedade americana de menores rendimentos. E estamos a falar de 160 milhões de pessoas! (E, ao contrário do nosso presidente, não uso pontos de exclamação de forma leve ou frequentemente.) Ou, como a Oxfam relatou em janeiro deste ano, a riqueza de oito homens – e sim, eram homens (incluindo os três mencionados acima) – era igual à da metade das pessoas neste planeta em 2017. C’um raio, é obra!
E só para vos dar uma ideia de onde e para onde é que estamos a caminhar a uma velocidade supersónica, um relatório da Oxfam de um ano antes assinalava que 62 bilionários tinham na sua posse metade da riqueza do planeta. Imagine isso: passou-se de 62 para oito bilionários num só ano a terem uma riqueza igual a metade da população mundial de menores rendimentos.
Depois, pense no que sabemos sobre a ascensão da classe dos bilionários.
Novamente, de acordo com a Oxfam, um novo bilionário apareceu por cada dois dias em 2017, enquanto 82% da riqueza que está a ser criada neste planeta pertence já ao 1% superior enquanto a metade inferior da população global não viu nenhum ganho de riqueza. Em 2017 (o último ano para o qual temos tais números), a riqueza total da classe dos bilionários do globo inchou cerca de 20%. (E quero que o leitor saiba que, ao contrário do nosso presidente, estou a lutar duramente para conter o desejo de colocar um ou mais pontos de exclamação após cada uma dessas frases.)
A Oxfam divulgou os seus números em janeiro deste ano para coincidir com o encontro anual dos maiores chefões do mundo em Davos, na Suíça. Seguramente, irá fazer o mesmo novamente em janeiro de 2019 e eu tenho calafrios só de pensar sobre o que o próximo conjunto de estatísticas é suscetível de nos mostrar. Enquanto isso, veja o que Nomi Prins, colaboradora regular do blog TomDispatch, autora do recente livro Collusion: How Central Bankers Rigged the World, nos tem a dizer sobre um planeta em que a situação económica real da maioria das pessoas tem uma relação muitíssimo pequena com o que é geralmente publicitado e porque é que, se o leitor acha que a estabilidade já é uma coisa do passado num mundo à Trump, então não viu ainda nada.
Tom
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Por Nomi Prins
Ao entrarmos em 2019, deixando para trás o caos deste ano, uma importante questão permanece sem resposta quando se trata do estado dos cidadãos comuns, não apenas aqui, mas em todo o planeta. Se a economia mundial está realmente em expansão, como muitos políticos afirmam que ela está, porque razão os líderes e os seus partidos em todo o mundo continuam a ser postos fora do poder de uma forma tão radical?
Uma resposta óbvia: a “recuperação” económica pós Grande Recessão foi largamente reservada para os poucos que puderam participar na ascensão dos mercados financeiros naqueles anos, não para a maioria que continuou a trabalhar mais horas, às vezes em vários empregos, para se manter à tona de água.
Por outras palavras, os bons tempos deixaram de imensa gente, como aqueles que lutam para manter até mesmo apenas algumas centenas de dólares nas suas contas bancárias para cobrir uma emergência ou os 80% dos trabalhadores americanos que vivem mês a mês com o seu salário.
Na economia global de hoje, a segurança financeira é cada vez mais propriedade do grupo dos 1%. Não surpreende, portanto, que, como o sentimento de instabilidade económica continuou a crescer na última década, a angústia se tenha transformado em raiva, uma transição que – dos EUA às Filipinas, da Hungria ao Brasil, da Polónia ao México – provocou uma infinidade de reviravoltas eleitorais. No processo, emergiu uma crescente onda de nacionalismo ao estilo dos anos 1930, culpando o “outro” – seja ele um imigrante, um grupo religioso, um país ou o resto do mundo.
Este fenómeno deu-nos uma série de figuras ao estilo de Trump, incluindo, é claro, o próprio Donald Trump, uma abertura para cavalgar uma onda de “populismo” para as alturas do sistema político. Que os antecedentes e os registos de nenhum deles – quer se fale de Donald Trump, ou Viktor Orbán, ou Rodrigo Duterte ou Jair Bolsonaro (entre outros) – refletiam as preocupações diárias das “pessoas comuns”, como a definição clássica de populismo poderia refletir, pouco importa. Mesmo um bilionário poderia, afinal, explorar eficazmente a insegurança económica e usá-la para ascender ao poder supremo.
Ironicamente, como mostrou aquele mestre americano em toda a parte na evocação dos medos dos aprendizes, assumir o mais alto cargo no país é apenas o meio de iniciar um processo de criar ainda mais medo e insegurança. As guerras comerciais de Trump, por exemplo, tipicamente infundiram no mundo mais ansiedade e desconfiança em relação aos EUA, mesmo quando travaram a capacidade dos líderes empresariais internos e das pessoas comuns de planear o futuro. Entretanto, sob a capa dos reputados bons tempos, os danos a esse futuro só se intensificaram. Por outras palavras, já foram lançadas as bases para o que poderia ser uma transformação assustadora, tanto à escala interna como à escala global.
Essa velha crise financeira
Para percebermos como chegámos até aqui, vamos dar um passo atrás. Há apenas uma década, o mundo viveu uma verdadeira crise financeira mundial, um colapso de primeira ordem.
O crescimento económico terminou; as economias em recessão ameaçaram entrar em colapso; inúmeros empregos foram eliminados; as casas foram hipotecadas e muitas vidas ficaram arruinadas. Para as pessoas comuns, o acesso ao crédito desapareceu de repente. Não admira que os medos tenham aumentado. Não admira que, para tantos, tenha deixado de existir um amanhã mais brilhante.
Os detalhes sobre as razões que levaram à Grande Recessão foram, desde então, encobertos pelo tempo e pela rotação partidária. Em setembro deste ano, aquando do 10º aniversário do colapso da empresa global de serviços financeiros Lehman Brothers, os principais canais de informação económica questionavam-se se o mundo poderia estar em risco de outra crise desse tipo.
No entanto, a cobertura desses medos, como de tantos outros tópicos, foi rapidamente posta de lado em favor de prestar ainda mais atenção aos últimos tweets, reclamações, insultos e mentiras de Donald Trump. Porquê? Porque uma tal crise a acontecer, far-nos-ia lembrar que a crise de 2008 rebentou num ano em que, segundo foi afirmado, estávamos a usufruir de uma situação económica em alta de primeira classe e a caminharmos em direção ao mais longo período de mercado bolsista em alta da história de Wall Street. Quando se tratou de “boom versus economia de crescimento brando “, o boom ganhou sem qualquer margem para dúvidas.
No entanto, nada disso mudou uma palha sequer: a maioria das pessoas ainda se sente deixada para trás tanto nos EUA como globalmente. Graças à acumulação massiva de riqueza do grupo dos 1% hábeis a ludibriar o sistema, as raízes de uma crise que não terminou com o fim da Grande Recessão espalharam-se por todo o planeta, enquanto a linha divisória entre os que “não têm” e os que “têm muito” se aprofundou e alargou.
Embora os media não tenham prestado muita atenção à desigualdade daí resultante, as estatísticas (quando o leitor as vê) sobre esse aprofundar e alargar de riqueza cada vez maior são impressionantes.
De acordo com a Inequality.org, por exemplo, aqueles com pelo menos US$ 30 milhões em riqueza global tiveram a taxa de crescimento mais rápida de qualquer grupo entre 2016 e 2017.
A dimensão deste clube cresceu 25,5% durante esses anos, para 174.800 associados. Ou se o leitor quiser realmente entender o que é que está a acontecer, considere que, entre 2009 e 2017, o número de bilionários cuja riqueza combinada era maior do que a dos 50% mais pobres do mundo caiu de 380 para apenas oito. E, a propósito, apesar das afirmações do presidente de que todos os outros países estão a querer prejudicar os Estados Unidos, os EUA lideram o grupo quando se trata do crescimento da desigualdade. Como observa o site Inequality.org, o país tem “uma parcela muito maior da riqueza e do rendimento nacional a ser apropriado pelo grupo dos 1% mais ricos do que qualquer outro país”.
Isso, em parte, é devido a uma instituição à qual muitos cidadãos nos EUA normalmente prestam pouca atenção: o banco central dos EUA, o Federal Reserve. Ele ajudou a provocar esse aumento na disparidade de riqueza interna e global ao adotar uma política monetária pós-crise na qual o dinheiro fabricado eletronicamente (por meio de um programa chamado flexibilização quantitativa, ou QE) era disponibilizado aos bancos e grandes empresas a taxas significativamente mais baratas do que aos americanos comuns.
Esse dinheiro, injetado nos mercados financeiros, fez disparar os preços das ações, o que, naturalmente, inchou a riqueza da pequena percentagem da população que realmente possuía ações.
De acordo com o economista Stephen Roach, analizando o Inquérito do FED sobre as finanças dos consumidores, “não é de forma alguma linear concluir que o QE exacerbou as já graves disparidades de rendimento dos Estados Unidos”.
Wall Street, Bancos Centrais e Pessoas Comuns
O que tem estado a acontecer desde então em todo o mundo parece ser uma repetição do que aconteceu na década de 1930. Naquela época, quando o mundo estava a emergir da Grande Depressão, levou muito tempo a que as pessoas voltassem a usufruir de um amplo sentimento de segurança económica.
Em vez disso, o fascismo e outras formas de nacionalismo só ganhavam força à medida que as pessoas se voltavam para o elenco habitual de políticos, quer nos outros países quer em cada um deles. (Se isso vos soar vagamente ao mundo Trumpiano, pode ser que isto seja verdade.)
Na nossa era pós-2008, as pessoas testemunharam milhões de milhões de dólares a fluírem para o resgate de bancos e outros subsídios financeiros, vindos não apenas dos governos, mas também dos principais bancos centrais do mundo. Teoricamente, os bancos privados, como resultado, teriam mais dinheiro e pagariam menos juros para o obter .
Eles emprestariam então esse dinheiro às pessoas comuns. As empresas, grandes e pequenas, aproveitariam esses fundos e, por sua vez, gerariam crescimento económico real graças à expansão económica, com muitas novas contratações e aumentos salariais.
As pessoas teriam então mais dólares nos seus bolsos e, sentindo-se mais seguras financeiramente, gastariam esse dinheiro levando a economia a novas alturas – e todos, é claro, ficariam bem.
Este foi o conto de fadas que foi lançado em todo o mundo. Na verdade, o dinheiro barato também levou a que a dívida tenha aumentado para níveis épicos, enquanto o valor das ações dos bancos subiu, assim como as de todos os tipos de outras empresas, e subiram para níveis que bateram recordes.
Mesmo nos EUA, no entanto, onde é suposto que se regista uma magnífica recuperação desde há anos, o crescimento económico real simplesmente não se materializou nos níveis prometidos.
A 2% ao ano, o crescimento médio do produto interno bruto americano na última década, por exemplo, foi metade da média de 4% ocorrida antes da crise de 2008. Números semelhantes repetiram-se em todo o mundo desenvolvido e na maioria dos mercados emergentes. Entretanto, a dívida global à escala mundial atingiu US$ 247 milhões de milhões no primeiro trimestre de 2018.
Conforme nos mostrou o Instituto de Finanças Internacionais, os países estavam, em média, a contrair de empréstimo cerca de três dólares para cada dólar de bens ou serviços criados.
Consequências Globais
O que o FED (em conjunto com os bancos centrais desde a Europa ao Japão) provocou, de facto, foi um aumento desproporcionado nos mercados de ações e títulos com o dinheiro que todos estes bancos criaram. Esse capital procurava taxas de rentabilidade mais altas e mais rápidas do que poderia ser alcançado em projetos cruciais de infraestrutura ou de fortalecimento do bem-estar social , como a construção de estradas, linhas ferroviárias de alta velocidade, hospitais ou escolas.
O que se seguiu foi tudo menos justo. Como afirmou a anterior Presidente do FED, há quatro anos: “ não é segredo que as últimas décadas de desigualdade crescente podem ser resumidas como ganhos significativos de rendimento e riqueza para aqueles que estão no topo e estagnados padrões de vida para a maioria”. E, é claro, continuar a despejar dinheiro nos níveis mais altos do sistema bancário privado foi tudo menos uma fórmula para fazer marcha atrás.
Em vez disso, à medida que mais cidadãos ficavam para trás, unicamente crescia um sentimento de privação de direitos e amargura com os governos existentes.
Nos EUA, isso significou Donald Trump. No Reino Unido, um descontentamento semelhante foi refletido na votação do Brexit de junho de 2016 para deixar a União Europeia (UE), que para aqueles que se sentiam economicamente esmagados pela política até aí seguida claramente significou como uma bofetada dada tanto à classe política interna como aos dirigentes da União Europeia.
Desde então, vários governos na União Europeia também se deslocaram para a direita populista. Na Alemanha, as recentes eleições oscilaram tanto à direita como à esquerda apenas seis anos depois de, em julho de 2012, o Presidente do Banco Central Europeu (BCE), Mario Draghi, expressar otimismo sobre a capacidade desses bancos protegerem o sistema financeiro, o Euro, e geralmente manter os países da zona euro unidos.
Tal como o FED nos EUA, o BCE passou a fabricar dinheiro, acrescentando mais US$ 3 milhões de milhões aos seus registos, dinheiro este que seria utilizado para comprar títulos de países e empresas escolhidas. Esse estímulo artificial, também, só teve como efeito o aumento da desigualdade dentro e entre os países da Europa. Entretanto, as negociações sobre o Brexit permanecem ruinosamente geradoras de discórdia, ameaçando despedaçar a Grã-Bretanha.
Nem uma tal história é cativa da região do Atlântico Norte. No Brasil, onde a presidente de esquerda Dilma Rouseff foi destituída do poder em 2016, o seu sucessor Michel Temer liderou a queda do crescimento económico e a escalada do desemprego. Isso, por sua vez, levou à vitória eleitoral do seu próprio Donald Trump, o candidato nacionalista de extrema-direita Jair Bolsonaro, que ganhou com 55,2% dos votos contra um pano de fundo de descontentamento popular. No verdadeiro estilo trumpiano, Bolsonaro está disposto tanto contra a própria ideia de mudança climática como contra os acordos comerciais multilaterais.
No México, os eleitores insatisfeitos também rejeitaram os políticos conhecidos, mas virando à esquerda pela primeira vez em 70 anos. O novo presidente Andrés Manuel López Obrador, popularmente conhecido pelas suas iniciais AMLO, prometeu colocar as necessidades dos mexicanos comuns em primeiro lugar. No entanto, ele tem que enfrentar os EUA – e os caprichos de Donald Trump e o seu “grande muro” -, o que pode dificultar esses esforços.
Quando AMLO tomou posse, no 1º de Dezembro, estava a desenrolar-se a cimeira dos líderes mundiais do G20 na Argentina. Aqui, no meio de um cenário brilhante de poder e influência, a guerra comercial entre os EUA e a crescente superpotência mundial, a China, ficou ainda mais clara. Enquanto o seu presidente, Xi Jinping, com o seu poder totalmente consolidado no meio de uma vaga de nacionalismo chinês e podendo tornar-se o líder mais antigo em exercício do seu país, enfrenta um cenário internacional que teria surpreendido e confundido Mao Tse Tung.
Embora Trump tenha declarado que o seu encontro com Xi foi um sucesso porque os dois lados concordaram numa trégua tarifária de 90 dias, a sua nomeação imediata de um defensor de uma linha dura anti-chinesa, Robert Lighthizer, para liderar as negociações, um tweet no qual ele se referiu a si mesmo como um “Homem das Tarifas”, e notícias de que os EUA haviam solicitado que o Canadá prendesse e extraditasse um executivo de uma importante empresa tecnológica chinesa, levaram o Dow Jones a registar o seu quarto maior mergulho na história e depois a flutuar de forma selvagem conforme os temores económicos de um futuro de
“Qualquer Coisa de Grande” aumentavam. Mais incerteza e desconfiança, foi este o resultado dessa reunião.
De facto, estamos agora a viver num mundo cujos principais líderes, especialmente o presidente dos Estados Unidos, permanecem voluntariamente alheios aos seus problemas de longo prazo, colocando políticas como a desregulamentação, falsas soluções nacionalistas e aumento de lucros para os já grotescamente ricos à frente das vidas futuras da grande massa de cidadãos.
Pensemos nos protestos dos coletes amarelos que eclodiram em França, onde os manifestantes que se identificam com partidos políticos de esquerda e de direita pedem a demissão do neoliberal Presidente francês Emmanuel Macron. Muitos deles, de cidades de província financeiramente arrasadas, estão em cólera contra o facto de o seu poder de compra ter caído tão baixo que mal conseguem fazer face às despesas de fim-de-mês.
Em última análise, o que transcende a geografia e a geopolítica é um nível de descontentamento económico latente provocado pela economia do século XXI e por um alargar da desigualdade global do tamanho do Grand Canyon que continua ainda a aumentar. Sejam os protestos à esquerda ou à direita, o que continua a estar no centro da questão é a forma como as políticas fracassadas e as medidas paliativas postas em prática em todo o mundo já não funcionam, no que se refere aos que, de uma maneira ou de outra, não pertencem ao grupo dos 1%.
As pessoas de Washington a Paris, de Londres a Pequim, compreendem cada vez mais que as suas circunstâncias económicas não estão a melhorar e não é provável que melhorem num futuro presentemente imaginável, tendo em conta os que estão agora no poder.
Uma Receita Perigosa
A crise financeira de 2008 estimulou inicialmente uma política de resgate dos bancos com dinheiro barato que não foi criado para apoiar as economias das gentes comuns, da Main Street, mas para apoiar os mercados que enriqueceram uns poucos.
Como resultado, um grande número de pessoas sentiram cada vez mais que estavam a ser deixadas para trás e voltaram-se contra os seus líderes e, às vezes, uns contra os outros também.
Esta situação foi então explorada por um conjunto de políticos auto-designados do povo, incluindo uma personalidade bilionária da TV que capitalizou sobre um medo cada vez mais difundido de um futuro em risco. As suas promessas de prosperidade económica estavam envoltas em banalidades populistas, normalmente (mas nem sempre) de direita. Perdidos nessa mudança relativamente aos partidos políticos anteriormente dominantes e aos sistemas que os acompanhavam, houve uma verdadeira forma de populismo, que genuinamente colocou as necessidades da maioria das pessoas acima dos interesses das elites, a querer construir coisas reais, incluindo infraestruturas, a promoção da distribuição orgânica da riqueza e a estabilização das economias acima dos interesses dos mercados financeiros.
Entretanto, o que temos é, naturalmente, uma receita para um mundo cada vez mais instável e perverso.
Um especial agradecimento ao investigador Craig Wilson pelo seu magnifico trabalho e contributo para este texto.
Seleção e tradução de Júlio Marques Mota
Introdução
Na sequência da troca de ideias com o Professor Marques Mendes , e como reação às posições por este professor assumidas, mandou-me o colega Stuart Holland o texto que irá integrar esta nova série intitulada “ A responsabilidade da esquerda na trajetória de ascensão do neoliberalismo – algumas grelhas de leitura“.
Li-o atentamente, e interpretei-o como um bom exemplo de como funcionou uma certa esquerda intelectual junto da esquerda oficial que ocupou o centro do arco do poder ao longo de anos. Nesse sentido, achei que seria uma mais valia para quem estuda as questões da União Europeia e traduzi-o. Discordando-se ou não do autor, o que aqui é irrelevante, penso que, no fundo, se trata de mais um texto que pode ser útil a estudantes de mestrado e de doutoramento que se interessem por esta problemática, com uma elucidativa bibliografia sobre alguns dos marcos mais importantes no processo de integração europeia.
Trata-se de um texto com a chancela bem pessoal de Stuart Holland, um observador que esteve em posição bem privilegiada pelas chancelarias para nos poder dar o seu registo, muito pessoal, da luta mais ou menos surda entre dois mundos, o progressista e o neoliberal, no interior da esquerda europeia e, com particular realce, também no interior das Instituições Comunitárias, texto este desenvolvido no quadro do que foi a evolução da integração europeia.
Adicionalmente, trata-se também, pela parte de Stuart Holland, de um revisitar do que foi a sua própria posição pessoal neste longo e silencioso conflito de ideias e de políticas e um registo também do que ele mesmo pensa hoje sobre esses tempos e sobre os atores referidos. Direi mesmo que esta é uma via possível de análise do texto de Stuart Holland.
O texto em si-mesmo, a sua importância, as questões deixadas em aberto ou a que não se deu resposta, levou-me a compilar e a editar uma série de textos que lhe estão direta ou indiretamente ligados, a publicar em A viagem dos Argonautas, que terá como título : “A responsabilidade da esquerda na trajetória de ascensão do neoliberalismo – algumas grelhas de leitura”.
Nesta série constam ainda os seguintes autores: Domenico Mario Nuti, Dani Rodrik, Robert Kuttner, Rawi Abdelal, Nomi Prins, Peter Dorman, François Ruffin , Christiane Taubira.
Não menos curioso e ainda ligado à reação havida com o texto de Domenico Mario Nuti, tomei ontem conhecimento do texto da revista The Economist, intitulado Second Time, Farce: Rulers of the world: Read Karl Marx!
Ora, esta revista é sem dúvida uma referência fundamental, uma das mais sérias acrescente-se, na difusão das ideias do neoliberalismo e o texto denota, também ele e tal como o de Nuti, uma profunda preocupação quanto ao capitalismo de hoje, mesmo que os objetivos de ambos os autores sejam muito diferentes. O curioso desta análise da revista The Economist é a conclusão a que chega, de resto já bem implícita no título do artigo:
“A reação contra o capitalismo está a aumentar – e mais frequentemente sob a forma de raiva populista do que de solidariedade proletária. Até agora, os reformadores liberais estão a mostrar-se tristemente inferiores aos seus antecessores, tanto em termos da sua compreensão da crise como na sua capacidade de gerar soluções.
Eles deveriam usar o 200º aniversário do nascimento de Marx para se reencontrarem com o grande homem – não apenas para compreender as graves falhas que ele brilhantemente identificou no sistema, mas também para se lembrarem do desastre que os espera se não conseguirem enfrentá-las e resolvê-las”.
O texto de Stuart Holland teve pois o mérito de nos chamar a atenção para a importância de criar esta série sobre a trajetória da esquerda, tanto mais necessária ainda se tivermos em conta que a atual arquitetura da União Europeia é ela maioritariamente obra de governos socialistas e sociais-democratas que, pelo que se tem vindo a assistir, tiveram como preocupação máxima ocupar o espaço da direita para provarem que eram, à DIREITA, melhores que a própria direita! Os resultados estão á vista, daí a acusação de Dani Rodrik que Stuart Holland pretende contestar embora me pareça que erra o alvo.
Coimbra, 13 de janeiro de 2019
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1. A leitura de Nomi Prins – Um mundo que é propriedade do grupo dos 1%
Publicado por em 13 de dezembro de 2018[Nota para os Leitores TomDispatch: Eu odeio até mesmo falar nisso, mas chegamos a este momento novamente. O leitor sabe, o momento do final do ano, quando peço a todos os nossos leitores dinheiro para manter este site a funcionar.
Esta não é exatamente a maneira como eu gosto de gastar o meu tempo também, mas são as vossas contribuições que realmente nos permitem continuar vivos. Daí ter escrito um apelo de financiamento para todos os assinantes TomDispatch que começa assim: “Que ano este!
Eu não sei como foi convosco, mas eu estou exausto, vocês sabem por quem e a cobertura mediática dele de notícias falsas. Sim, eu sei, eu sei, … no estilo inimitável do presidente eu deveria ter posto pelo menos seis pontos de exclamação depois daquela frase.
Ainda assim, não penso que fosse uma descrição injusta dizer que eu não apoio as atitudes e crenças de Trump. Eu não insulto. Eu nem sequer twitto…” O apelo inclui, é claro, o expectável mas necessário pedido de doações. (…). Ou, se lhe der na gana, pode ir diretamente à página de doações de TD e dar o seu contributo.
Em contrapartida de uma doação de 100 dólares – 125 dólares se vive fora dos EUA – poderá escolher receber uma cópia assinada de vários livros Dispatch como sinal do nosso agradecimento. Creiam-me, vocês são mesmo importantes. Tom]
Este ano, simplesmente não consegui tirar um facto da cabeça: de acordo com um relatório de 2017 do Instituto de Estudos Políticos, três bilionários – Jeff Bezos, Warren Buffet e Bill Gates – acumularam tanta riqueza quanto a metade da sociedade americana de menores rendimentos. E estamos a falar de 160 milhões de pessoas! (E, ao contrário do nosso presidente, não uso pontos de exclamação de forma leve ou frequentemente.) Ou, como a Oxfam relatou em janeiro deste ano, a riqueza de oito homens – e sim, eram homens (incluindo os três mencionados acima) – era igual à da metade das pessoas neste planeta em 2017. C’um raio, é obra!
E só para vos dar uma ideia de onde e para onde é que estamos a caminhar a uma velocidade supersónica, um relatório da Oxfam de um ano antes assinalava que 62 bilionários tinham na sua posse metade da riqueza do planeta. Imagine isso: passou-se de 62 para oito bilionários num só ano a terem uma riqueza igual a metade da população mundial de menores rendimentos.
Depois, pense no que sabemos sobre a ascensão da classe dos bilionários.
Novamente, de acordo com a Oxfam, um novo bilionário apareceu por cada dois dias em 2017, enquanto 82% da riqueza que está a ser criada neste planeta pertence já ao 1% superior enquanto a metade inferior da população global não viu nenhum ganho de riqueza. Em 2017 (o último ano para o qual temos tais números), a riqueza total da classe dos bilionários do globo inchou cerca de 20%. (E quero que o leitor saiba que, ao contrário do nosso presidente, estou a lutar duramente para conter o desejo de colocar um ou mais pontos de exclamação após cada uma dessas frases.)
A Oxfam divulgou os seus números em janeiro deste ano para coincidir com o encontro anual dos maiores chefões do mundo em Davos, na Suíça. Seguramente, irá fazer o mesmo novamente em janeiro de 2019 e eu tenho calafrios só de pensar sobre o que o próximo conjunto de estatísticas é suscetível de nos mostrar. Enquanto isso, veja o que Nomi Prins, colaboradora regular do blog TomDispatch, autora do recente livro Collusion: How Central Bankers Rigged the World, nos tem a dizer sobre um planeta em que a situação económica real da maioria das pessoas tem uma relação muitíssimo pequena com o que é geralmente publicitado e porque é que, se o leitor acha que a estabilidade já é uma coisa do passado num mundo à Trump, então não viu ainda nada.
Tom
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Wall Street, bancos e cidadãos em fúria
A Diferença na Desigualdade num Planeta cada vez mais extremoPor Nomi Prins
Ao entrarmos em 2019, deixando para trás o caos deste ano, uma importante questão permanece sem resposta quando se trata do estado dos cidadãos comuns, não apenas aqui, mas em todo o planeta. Se a economia mundial está realmente em expansão, como muitos políticos afirmam que ela está, porque razão os líderes e os seus partidos em todo o mundo continuam a ser postos fora do poder de uma forma tão radical?
Uma resposta óbvia: a “recuperação” económica pós Grande Recessão foi largamente reservada para os poucos que puderam participar na ascensão dos mercados financeiros naqueles anos, não para a maioria que continuou a trabalhar mais horas, às vezes em vários empregos, para se manter à tona de água.
Por outras palavras, os bons tempos deixaram de imensa gente, como aqueles que lutam para manter até mesmo apenas algumas centenas de dólares nas suas contas bancárias para cobrir uma emergência ou os 80% dos trabalhadores americanos que vivem mês a mês com o seu salário.
Na economia global de hoje, a segurança financeira é cada vez mais propriedade do grupo dos 1%. Não surpreende, portanto, que, como o sentimento de instabilidade económica continuou a crescer na última década, a angústia se tenha transformado em raiva, uma transição que – dos EUA às Filipinas, da Hungria ao Brasil, da Polónia ao México – provocou uma infinidade de reviravoltas eleitorais. No processo, emergiu uma crescente onda de nacionalismo ao estilo dos anos 1930, culpando o “outro” – seja ele um imigrante, um grupo religioso, um país ou o resto do mundo.
Este fenómeno deu-nos uma série de figuras ao estilo de Trump, incluindo, é claro, o próprio Donald Trump, uma abertura para cavalgar uma onda de “populismo” para as alturas do sistema político. Que os antecedentes e os registos de nenhum deles – quer se fale de Donald Trump, ou Viktor Orbán, ou Rodrigo Duterte ou Jair Bolsonaro (entre outros) – refletiam as preocupações diárias das “pessoas comuns”, como a definição clássica de populismo poderia refletir, pouco importa. Mesmo um bilionário poderia, afinal, explorar eficazmente a insegurança económica e usá-la para ascender ao poder supremo.
Ironicamente, como mostrou aquele mestre americano em toda a parte na evocação dos medos dos aprendizes, assumir o mais alto cargo no país é apenas o meio de iniciar um processo de criar ainda mais medo e insegurança. As guerras comerciais de Trump, por exemplo, tipicamente infundiram no mundo mais ansiedade e desconfiança em relação aos EUA, mesmo quando travaram a capacidade dos líderes empresariais internos e das pessoas comuns de planear o futuro. Entretanto, sob a capa dos reputados bons tempos, os danos a esse futuro só se intensificaram. Por outras palavras, já foram lançadas as bases para o que poderia ser uma transformação assustadora, tanto à escala interna como à escala global.
Essa velha crise financeira
Para percebermos como chegámos até aqui, vamos dar um passo atrás. Há apenas uma década, o mundo viveu uma verdadeira crise financeira mundial, um colapso de primeira ordem.
O crescimento económico terminou; as economias em recessão ameaçaram entrar em colapso; inúmeros empregos foram eliminados; as casas foram hipotecadas e muitas vidas ficaram arruinadas. Para as pessoas comuns, o acesso ao crédito desapareceu de repente. Não admira que os medos tenham aumentado. Não admira que, para tantos, tenha deixado de existir um amanhã mais brilhante.
Os detalhes sobre as razões que levaram à Grande Recessão foram, desde então, encobertos pelo tempo e pela rotação partidária. Em setembro deste ano, aquando do 10º aniversário do colapso da empresa global de serviços financeiros Lehman Brothers, os principais canais de informação económica questionavam-se se o mundo poderia estar em risco de outra crise desse tipo.
No entanto, a cobertura desses medos, como de tantos outros tópicos, foi rapidamente posta de lado em favor de prestar ainda mais atenção aos últimos tweets, reclamações, insultos e mentiras de Donald Trump. Porquê? Porque uma tal crise a acontecer, far-nos-ia lembrar que a crise de 2008 rebentou num ano em que, segundo foi afirmado, estávamos a usufruir de uma situação económica em alta de primeira classe e a caminharmos em direção ao mais longo período de mercado bolsista em alta da história de Wall Street. Quando se tratou de “boom versus economia de crescimento brando “, o boom ganhou sem qualquer margem para dúvidas.
No entanto, nada disso mudou uma palha sequer: a maioria das pessoas ainda se sente deixada para trás tanto nos EUA como globalmente. Graças à acumulação massiva de riqueza do grupo dos 1% hábeis a ludibriar o sistema, as raízes de uma crise que não terminou com o fim da Grande Recessão espalharam-se por todo o planeta, enquanto a linha divisória entre os que “não têm” e os que “têm muito” se aprofundou e alargou.
Embora os media não tenham prestado muita atenção à desigualdade daí resultante, as estatísticas (quando o leitor as vê) sobre esse aprofundar e alargar de riqueza cada vez maior são impressionantes.
De acordo com a Inequality.org, por exemplo, aqueles com pelo menos US$ 30 milhões em riqueza global tiveram a taxa de crescimento mais rápida de qualquer grupo entre 2016 e 2017.
A dimensão deste clube cresceu 25,5% durante esses anos, para 174.800 associados. Ou se o leitor quiser realmente entender o que é que está a acontecer, considere que, entre 2009 e 2017, o número de bilionários cuja riqueza combinada era maior do que a dos 50% mais pobres do mundo caiu de 380 para apenas oito. E, a propósito, apesar das afirmações do presidente de que todos os outros países estão a querer prejudicar os Estados Unidos, os EUA lideram o grupo quando se trata do crescimento da desigualdade. Como observa o site Inequality.org, o país tem “uma parcela muito maior da riqueza e do rendimento nacional a ser apropriado pelo grupo dos 1% mais ricos do que qualquer outro país”.
Isso, em parte, é devido a uma instituição à qual muitos cidadãos nos EUA normalmente prestam pouca atenção: o banco central dos EUA, o Federal Reserve. Ele ajudou a provocar esse aumento na disparidade de riqueza interna e global ao adotar uma política monetária pós-crise na qual o dinheiro fabricado eletronicamente (por meio de um programa chamado flexibilização quantitativa, ou QE) era disponibilizado aos bancos e grandes empresas a taxas significativamente mais baratas do que aos americanos comuns.
Esse dinheiro, injetado nos mercados financeiros, fez disparar os preços das ações, o que, naturalmente, inchou a riqueza da pequena percentagem da população que realmente possuía ações.
De acordo com o economista Stephen Roach, analizando o Inquérito do FED sobre as finanças dos consumidores, “não é de forma alguma linear concluir que o QE exacerbou as já graves disparidades de rendimento dos Estados Unidos”.
Wall Street, Bancos Centrais e Pessoas Comuns
O que tem estado a acontecer desde então em todo o mundo parece ser uma repetição do que aconteceu na década de 1930. Naquela época, quando o mundo estava a emergir da Grande Depressão, levou muito tempo a que as pessoas voltassem a usufruir de um amplo sentimento de segurança económica.
Em vez disso, o fascismo e outras formas de nacionalismo só ganhavam força à medida que as pessoas se voltavam para o elenco habitual de políticos, quer nos outros países quer em cada um deles. (Se isso vos soar vagamente ao mundo Trumpiano, pode ser que isto seja verdade.)
Na nossa era pós-2008, as pessoas testemunharam milhões de milhões de dólares a fluírem para o resgate de bancos e outros subsídios financeiros, vindos não apenas dos governos, mas também dos principais bancos centrais do mundo. Teoricamente, os bancos privados, como resultado, teriam mais dinheiro e pagariam menos juros para o obter .
Eles emprestariam então esse dinheiro às pessoas comuns. As empresas, grandes e pequenas, aproveitariam esses fundos e, por sua vez, gerariam crescimento económico real graças à expansão económica, com muitas novas contratações e aumentos salariais.
As pessoas teriam então mais dólares nos seus bolsos e, sentindo-se mais seguras financeiramente, gastariam esse dinheiro levando a economia a novas alturas – e todos, é claro, ficariam bem.
Este foi o conto de fadas que foi lançado em todo o mundo. Na verdade, o dinheiro barato também levou a que a dívida tenha aumentado para níveis épicos, enquanto o valor das ações dos bancos subiu, assim como as de todos os tipos de outras empresas, e subiram para níveis que bateram recordes.
Mesmo nos EUA, no entanto, onde é suposto que se regista uma magnífica recuperação desde há anos, o crescimento económico real simplesmente não se materializou nos níveis prometidos.
A 2% ao ano, o crescimento médio do produto interno bruto americano na última década, por exemplo, foi metade da média de 4% ocorrida antes da crise de 2008. Números semelhantes repetiram-se em todo o mundo desenvolvido e na maioria dos mercados emergentes. Entretanto, a dívida global à escala mundial atingiu US$ 247 milhões de milhões no primeiro trimestre de 2018.
Conforme nos mostrou o Instituto de Finanças Internacionais, os países estavam, em média, a contrair de empréstimo cerca de três dólares para cada dólar de bens ou serviços criados.
Consequências Globais
O que o FED (em conjunto com os bancos centrais desde a Europa ao Japão) provocou, de facto, foi um aumento desproporcionado nos mercados de ações e títulos com o dinheiro que todos estes bancos criaram. Esse capital procurava taxas de rentabilidade mais altas e mais rápidas do que poderia ser alcançado em projetos cruciais de infraestrutura ou de fortalecimento do bem-estar social , como a construção de estradas, linhas ferroviárias de alta velocidade, hospitais ou escolas.
O que se seguiu foi tudo menos justo. Como afirmou a anterior Presidente do FED, há quatro anos: “ não é segredo que as últimas décadas de desigualdade crescente podem ser resumidas como ganhos significativos de rendimento e riqueza para aqueles que estão no topo e estagnados padrões de vida para a maioria”. E, é claro, continuar a despejar dinheiro nos níveis mais altos do sistema bancário privado foi tudo menos uma fórmula para fazer marcha atrás.
Em vez disso, à medida que mais cidadãos ficavam para trás, unicamente crescia um sentimento de privação de direitos e amargura com os governos existentes.
Nos EUA, isso significou Donald Trump. No Reino Unido, um descontentamento semelhante foi refletido na votação do Brexit de junho de 2016 para deixar a União Europeia (UE), que para aqueles que se sentiam economicamente esmagados pela política até aí seguida claramente significou como uma bofetada dada tanto à classe política interna como aos dirigentes da União Europeia.
Desde então, vários governos na União Europeia também se deslocaram para a direita populista. Na Alemanha, as recentes eleições oscilaram tanto à direita como à esquerda apenas seis anos depois de, em julho de 2012, o Presidente do Banco Central Europeu (BCE), Mario Draghi, expressar otimismo sobre a capacidade desses bancos protegerem o sistema financeiro, o Euro, e geralmente manter os países da zona euro unidos.
Tal como o FED nos EUA, o BCE passou a fabricar dinheiro, acrescentando mais US$ 3 milhões de milhões aos seus registos, dinheiro este que seria utilizado para comprar títulos de países e empresas escolhidas. Esse estímulo artificial, também, só teve como efeito o aumento da desigualdade dentro e entre os países da Europa. Entretanto, as negociações sobre o Brexit permanecem ruinosamente geradoras de discórdia, ameaçando despedaçar a Grã-Bretanha.
Nem uma tal história é cativa da região do Atlântico Norte. No Brasil, onde a presidente de esquerda Dilma Rouseff foi destituída do poder em 2016, o seu sucessor Michel Temer liderou a queda do crescimento económico e a escalada do desemprego. Isso, por sua vez, levou à vitória eleitoral do seu próprio Donald Trump, o candidato nacionalista de extrema-direita Jair Bolsonaro, que ganhou com 55,2% dos votos contra um pano de fundo de descontentamento popular. No verdadeiro estilo trumpiano, Bolsonaro está disposto tanto contra a própria ideia de mudança climática como contra os acordos comerciais multilaterais.
No México, os eleitores insatisfeitos também rejeitaram os políticos conhecidos, mas virando à esquerda pela primeira vez em 70 anos. O novo presidente Andrés Manuel López Obrador, popularmente conhecido pelas suas iniciais AMLO, prometeu colocar as necessidades dos mexicanos comuns em primeiro lugar. No entanto, ele tem que enfrentar os EUA – e os caprichos de Donald Trump e o seu “grande muro” -, o que pode dificultar esses esforços.
Quando AMLO tomou posse, no 1º de Dezembro, estava a desenrolar-se a cimeira dos líderes mundiais do G20 na Argentina. Aqui, no meio de um cenário brilhante de poder e influência, a guerra comercial entre os EUA e a crescente superpotência mundial, a China, ficou ainda mais clara. Enquanto o seu presidente, Xi Jinping, com o seu poder totalmente consolidado no meio de uma vaga de nacionalismo chinês e podendo tornar-se o líder mais antigo em exercício do seu país, enfrenta um cenário internacional que teria surpreendido e confundido Mao Tse Tung.
Embora Trump tenha declarado que o seu encontro com Xi foi um sucesso porque os dois lados concordaram numa trégua tarifária de 90 dias, a sua nomeação imediata de um defensor de uma linha dura anti-chinesa, Robert Lighthizer, para liderar as negociações, um tweet no qual ele se referiu a si mesmo como um “Homem das Tarifas”, e notícias de que os EUA haviam solicitado que o Canadá prendesse e extraditasse um executivo de uma importante empresa tecnológica chinesa, levaram o Dow Jones a registar o seu quarto maior mergulho na história e depois a flutuar de forma selvagem conforme os temores económicos de um futuro de
“Qualquer Coisa de Grande” aumentavam. Mais incerteza e desconfiança, foi este o resultado dessa reunião.
De facto, estamos agora a viver num mundo cujos principais líderes, especialmente o presidente dos Estados Unidos, permanecem voluntariamente alheios aos seus problemas de longo prazo, colocando políticas como a desregulamentação, falsas soluções nacionalistas e aumento de lucros para os já grotescamente ricos à frente das vidas futuras da grande massa de cidadãos.
Pensemos nos protestos dos coletes amarelos que eclodiram em França, onde os manifestantes que se identificam com partidos políticos de esquerda e de direita pedem a demissão do neoliberal Presidente francês Emmanuel Macron. Muitos deles, de cidades de província financeiramente arrasadas, estão em cólera contra o facto de o seu poder de compra ter caído tão baixo que mal conseguem fazer face às despesas de fim-de-mês.
Em última análise, o que transcende a geografia e a geopolítica é um nível de descontentamento económico latente provocado pela economia do século XXI e por um alargar da desigualdade global do tamanho do Grand Canyon que continua ainda a aumentar. Sejam os protestos à esquerda ou à direita, o que continua a estar no centro da questão é a forma como as políticas fracassadas e as medidas paliativas postas em prática em todo o mundo já não funcionam, no que se refere aos que, de uma maneira ou de outra, não pertencem ao grupo dos 1%.
As pessoas de Washington a Paris, de Londres a Pequim, compreendem cada vez mais que as suas circunstâncias económicas não estão a melhorar e não é provável que melhorem num futuro presentemente imaginável, tendo em conta os que estão agora no poder.
Uma Receita Perigosa
A crise financeira de 2008 estimulou inicialmente uma política de resgate dos bancos com dinheiro barato que não foi criado para apoiar as economias das gentes comuns, da Main Street, mas para apoiar os mercados que enriqueceram uns poucos.
Como resultado, um grande número de pessoas sentiram cada vez mais que estavam a ser deixadas para trás e voltaram-se contra os seus líderes e, às vezes, uns contra os outros também.
Esta situação foi então explorada por um conjunto de políticos auto-designados do povo, incluindo uma personalidade bilionária da TV que capitalizou sobre um medo cada vez mais difundido de um futuro em risco. As suas promessas de prosperidade económica estavam envoltas em banalidades populistas, normalmente (mas nem sempre) de direita. Perdidos nessa mudança relativamente aos partidos políticos anteriormente dominantes e aos sistemas que os acompanhavam, houve uma verdadeira forma de populismo, que genuinamente colocou as necessidades da maioria das pessoas acima dos interesses das elites, a querer construir coisas reais, incluindo infraestruturas, a promoção da distribuição orgânica da riqueza e a estabilização das economias acima dos interesses dos mercados financeiros.
Entretanto, o que temos é, naturalmente, uma receita para um mundo cada vez mais instável e perverso.
Um especial agradecimento ao investigador Craig Wilson pelo seu magnifico trabalho e contributo para este texto.
Texto disponível em http://www.tomdispatch.com/post/176507/tomgram%3A_nomi_prins%2C_a_world_that_is_the_property_of_the_1%25/
Nomi Prins é colaboradora regular de TomDispatch. O seu último livro é Collusion: How Central Bankers Rigged the World (Nation Books). Dos seus outros seis livros o mais recente é All the Presidents’ Bankers: The Hidden Alliances That Drive American Power. Nomi Prins foi uma executiva de Wall Street.
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