O autor do livro "Porta para a Liberdade", Pedro Prostes da Fonseca, descreve os detalhes da fuga que mais marcou o Forte de Peniche, agora em polémica. Como Cunhal fugiu. E como um guarda o ajudou.
O Forte de Peniche, que o Governo pretende concessionar para hotel, ficará para sempre ligado ao dia 3 de janeiro de 1960, quando se deu a mais importante evasão coletiva de presos políticos em Portugal. Eram “só” alguns dos mais importantes quadros do PCP, com Álvaro Cunhal à cabeça. Uma fuga possível graças à cumplicidade do soldado Jorge Alves.
A vida no forte: Chicharro ao almoço, chicharro ao jantar
A noite já caiu e pingos de chuva soltam-se do céu de inverno. Um homem fuma desesperadamente enquanto bate com as suas botas no empedrado do velho Forte de Peniche. É um soldado da GNR e está ali, roído de nervos, para dar fuga a Álvaro Cunhal e a outros nove camaradas. É o final do dia 3 de janeiro de 1960, um domingo que ficará para sempre marcado na história da fortaleza, seja qual for o destino que venha a ter.
Cunhal está preso em Peniche há quase quatro anos, desde que, no dia 27 de julho de 1956, deixou a Penitenciária de Lisboa, levando no “currículo” duas outras passagens pelas cadeias de Salazar (em 1937 e 1940). Já vai com 11 anos ininterruptos atrás das grades.
O líder comunista está detido numa cela individual, junto à dos guardas, onde pinta, escreve e lê. Destrói os olhos pelos esforços que faz na penumbra e à conta disso virá a acabar a vida praticamente cego. Uma vida que, contra toda a lógica, prolongará até 2005, e que bem poderá dever-se ao gesto do soldado Jorge Alves.
Quando Cunhal chegou a Peniche, já cumprira os anos de sentença a que fora condenado. Uma habilidade na lei permitia que, de três em três anos, os presos políticos fossem inquiridos para se perceber se estavam “regenerados”. Se chumbassem neste “exame”, teriam de esperar mais três anos por nova avaliação. Era uma “disciplina” que Cunhal não conseguia ultrapassar – não era do seu ADN colaborar com o inimigo – e o mais natural é que, se não acontecesse a fuga, fosse ficando preso ad eternum, até o regime cair (e se vivesse até lá). Isto, apesar de organizações internacionais intensificarem esforços pela sua libertação.
Se não fosse a fuga espetacular do Forte de Peniche com a cumplicidade de Jorge Alves, o soldado da GNR que o PCP subornou, o destino de Álvaro Cunhal poderia ter sido muito diferente.
A humidade no forte é o pior pesadelo para os presos de Peniche. O mar encapelado de inverno galga as velhas pedras e entra pelas frinchas das janelas da fortificação seiscentista, que desde 1934 é cadeia oficial de segurança máxima do Estado Novo, após ter sido presídio durante as invasões francesas, sanatório para tuberculosos no início do século 20 e depósito de antifascistas na sequência do golpe de 1926. Com o Atlântico a servir de guarda, é uma prisão especialmente segura. Só não totalmente porque Dias Lourenço provara, em 1954, que há sempre forma de escapar quando a vontade se junta à coragem. Bom nadador, atirou-se ao oceano em pleno dezembro e combateu com sucesso o mar revolto até chegar a terra.
Embora tivessem colocado Álvaro Cunhal no terceiro piso de uma ala recentemente construída, e onde a água do mar não chegava, o frio fazia-se sentir de forma implacável, pondo à prova a resistência física de quem desde jovem passou a vida a desafiar o regime. As refeições não ajudavam: “Chicharro ao almoço, chicharro ao jantar”, recordará António Borges Coelho – um dos poucos presos que não alinham na escapadela.
Guarda subornado com 150 contos e um exílio atrás da Cortina de Ferro
No dia 3 de junho de 1960, é também a chuva que se faz sentir. Nada de especial e até dará jeito, pensará Jorge Alves, enquanto, no exterior do espaço prisional, continua insistentemente a dar o sinal para o interior com o bater das botas. Finalmente, a porta de ferro – que poucos metros à frente tem uma guarita da GNR – abre-se. Os presos cumprem com sucesso a missão de anular um guarda prisional que chegara tarde para a rendição. Com a ajuda de um pano embebido em éter, roubam-lhe a chave da porta que dá para o exterior. O crucial posto de sentinela está deserto porque o soldado Alves tomara conta dela em troca de subornos.
Alves havia sido recrutado pelos operacionais do PCP que estavam presos com Cunhal – os mais perigosos, politicamente falando, segundo o parecer das autoridades. Gosta de beber, tem ódio à GNR por nunca conseguir trepar de posto, apesar de ser sempre o melhor nos testes escritos. Além do mais, confidencia à família que sente pena dos reclusos. Argumentos que pesam para se deixar levar pelo canto da sereia feito por um dos prisioneiros, Joaquim Gomes.
A polémica concessão do Forte de Peniche
O Forte de Peniche faz parte de uma lista de 12 monumentos que o Governo tenciona concessionar a privados por períodos que vão de 30 a 50 anos. Ana Mendes Godinho, secretária de Estado do Turismo, disse esta semana que em causa está o “desenvolvimento de atividades económicas a partir do património existente”. A governante chegou a dizer que não esperava reações negativas por causa da antiga prisão do Estado Novo ser transformada em unidade hoteleira: “Penso que todos temos a noção de que o património não pode estar sem uso e só temos a ganhar com o facto de ser requalificado e usado por todos”.
Mas houve já muitas manifestações públicas contra esta decisão. Apesar do presidente da câmara de Peniche — um independente eleito em listas da CDU — ser a favor da concessão, o PCP reagiu argumentando que “a política do património não pode estar sujeita ou subordinada ao ‘mercado’ e à política de turismo”. Em comunicado, os comunistas acusaram o Governo de ignorar o “simbolismo” e a “importância histórica e cultural daquele espaço”. Socialistas como Manuel Alegre e Francisco Assis concordaram em denunciar a mesma medida. Já existe, também, uma petição online a circular contra a transformação da fortaleza em hotel.
Em Estórias e Emoções de uma vida de Luta (edições Avante!, 2001), Joaquim Gomes recordará essa “sedução”: “No começo de cada comissão mensal de serviço, os guardas da GNR, pelo menos no Forte de Peniche, costumavam fazer, em grupo, uma espécie de reconhecimento, com o propósito de verem a cara dos presos e, possivelmente, também para os presos verem a sua. Num dia em que isto se repetiu, estando nós na chamada hora de recreio, os olhares que os guardas nos lançavam eram frios e distantes, para não dizer inamistosos. Porém, dessa vez, pareceu-me e creio também a um outro camarada, que no olhar de um dos guardas haveria algo diferente em relação a nós. Considerada esta situação no organismo responsável, e como não havia nada a perder, decidiu-se tentar dirigir a palavra ao dito guarda (…). Por ter fixado o guarda e porque a cela em que me encontrava estava bem situada para o fazer, coube-me a mim fazê-lo. Iniciei o contacto com um simples cumprimento, a que o guarda, de seu nome Alves, respondeu prontamente. Às minhas curtas palavras de apresentação, ele correspondeu amistosamente, tendo acabado por manifestar a sua discordância por haver em Portugal presos e perseguidos por motivos políticos, declarando a sua admiração por Álvaro Cunhal e informando ainda que tinha apoiado a candidatura de Humberto Delgado, razão pela qual se considerava perseguido pelos superiores, especialmente no que respeitava à sua promoção. Neste período mensal de serviço ainda voltámos a falar uma ou duas vezes. A partir destas curtas conversas foi-se reforçando a confiança entre nós (…) e foi decidido propor-lhe um contacto com um camarada no exterior, o que ele aceitou, ainda que manifestando as suas preocupações quanto à confiança que podia ter na pessoa que o viria a contactar. Garantindo-lhe toda a confiança, só então nos deu o seu nome e morada”.
Jorge Alves está comprado e a partir daí monta-se a estratégia de fuga. No exterior, a operação era comandada por Joaquim Pires Jorge; no interior, por Jaime Serra. São-lhe prometidos 150 contos e a saída para um país da cortina de ferro. A família – mulher e dois filhos menores – é incluída no “negócio”. Alves escolhe a Roménia, por lá se falar algo mais semelhante ao português.
Até 3 de janeiro, o soldado ainda irá criar dores de cabeça ao aparelho comunista no exterior, ao ponto de se discutir se se deve ou não abortar a operação. Com o dinheiro do suborno e bem bebido gaba-se nas tabernas de que vai libertar Cunhal. Sorte a dos comunistas de ninguém lhe dar crédito.
Guarda cúmplice entra em pânico. Cunhal grita para GNR se controlar
Jorge Alves está às 19 horas em ponto na hora e sítio previstos: junto da porta que dá acesso ao terceiro piso da nova ala prisional. Como previamente combinado, compete-lhe passar os presos debaixo do seu capote, um a um, por uma rampa, até um muro onde uma velha figueira servirá de escada para um terreno que terá de ser transposto, em corrida desenfreada, pelos fugitivos. O primeiro a sair lança uma corda – que ficará presa para uso dos seguintes –, por onde todos irão descer pelos 20 metros da muralha até chegarem à rua. Dois carros os esperam, com Lindim Ramos e Carlos Plácido de Sousa agarrados aos volantes.
Durante a fuga, Álvaro Cunhal perde parte do manuscrito de um romance que tinha criado na prisão: A Mulher do Lenço Negro. Viria a ser publicado com o título: Até Amanhã, Camaradas.
Tudo começa por correr bem. O primeiro a ver-se fora da prisão é Jaime Serra. O segundo, Álvaro Cunhal. Leva consigo um manuscrito num bolso interior do casaco, mas na precipitação da fuga perde parte dele. É um romance com o nome A Mulher do Lenço Negro – que após a revolução será publicado com o título Até Amanhã, Camaradas.
Continuam a sair presos. O terceiro é Guilherme Carvalho, que se fere numa perna por ter largado a corda cedo demais. Grita de dores, mas o som desfaz-se no barulho do mar. Meio livro perdido e uma perna a sangrar… o balanço poderia ser pior. E esteve para sê-lo, quando o quarto fugitivo, Joaquim Gomes, sai da ala prisional. Alves percebe que foi enganado. Haviam-lhe falado em três homens e continuam a aparecer cabeças. Francisco Miguel, Pedro Soares, Rogério de Carvalho, Francisco Martins Rodrigues, Carlos Costa e José Carlos estão impacientes na fila (Jaime Serra e Carlos Costa são os únicos do grupo que ainda estão vivos).
O soldado entra em pânico, larga a sua missão e começa ele próprio a descer pela corda, fazendo um barulho enorme com as botas a bater nas paredes da muralha. Já na rua corre pela vila para se entregar, mas, perseguido por Joaquim Gomes, acaba por ser travado. Enfiam-no num carro onde já está Cunhal e para o sossegar dão-lhe a beber uma garrafa de vinho.
Este contratempo gera algum caos. Um dos carros, o conduzido por Carlos Plácido de Sousa, arranca cheio. Cunhal ainda tem de gritar para que Alves se controle. O automóvel de Lindim Ramos segue com dois passageiros a menos, mas todos conseguem escapar. Um verdadeiro milagre, presenciado por moradores das casas de Peniche próximas ao forte.
Descoberta a fuga, as horas que se seguem são de grande alvoroço. As operações stop que de imediato são mandadas erguer nas saídas de Peniche já de nada servem. Cunhal irá passar essa noite em São João do Estoril, em casa de Pires Jorge.
Oliveira Salazar reúne-se com o ministro da Presidência, Pedro Teotónio Pereira, na manhã do dia 5. Quer saber a razão da fuga e o porquê de a polícia não ter conseguido capturá-los.
Oliveira Salazar reúne-se com o ministro da Presidência, Pedro Teotónio Pereira, na manhã do dia 5. Quer saber a razão da fuga e o porquê de a polícia não ter conseguido capturá-los.
A imprensa portuguesa, coagida pela censura, só no dia 7 faz eco da evasão, sem referir nomes — dois dias depois de o diário francês L`Humanité, conhecedor da situação por um comunicado emitido pelo Partido Comunista Português, dar a notícia, embora ainda de forma cautelosa: “Corre o rumor em Lisboa que uma dezena de prisioneiros políticos, entre os quais o secretário-geral do Partido Comunista clandestino, Álvaro Cunhal, ter-se-ão evadido da fortaleza de Peniche, onde estavam detidos.Nenhuma confirmação pôde até agora ser obtida das autoridades. Mas é um facto que a polícia efetuou buscas domiciliárias em Peniche, como nos arredores, nas últimas 48 horas”.
Percebe-se rapidamente, pelo seu desaparecimento, que Jorge Alves está metido ao barulho, e a sua família é de imediato “apertada” na sede da PIDE, na rua António Maria Cardoso (hoje condomínio de luxo…).
O exílio e o suicídio de Jorge Alves. Cunhal fica para a história como o herói
A mulher e os cunhados do guarda cúmplice dos fugitivos serão mesmo detidos durante três meses, por terem encoberto o dinheiro que o PCP dera a Alves. Nesse período, Cunhal refugia-se numa casa na aldeia do Penedo, arredores de Sintra, com Isaura Moreira — com quem terá uma filha. Por razões de segurança acabará por abandonar esse local e residir uns meses em Lisboa, seguindo depois para o Porto.
Quanto a Jorge Alves, só em maio é “passado” para Espanha, depois para França e finalmente escala na Checoslováquia para chegar ao destino final: Bucareste. Irá ter a companhia da família em outubro do ano seguinte, quando Cunhal – que entretanto é efetivamente eleito secretário-geral do PCP (março de 1961) – já está a salvo na União Soviética, onde é recebido como herói. Afinal, não é todos os dias que um alto dirigente comunista consegue escapar de uma prisão “fascista”.
Em Bucareste, na Roménia, Jorge Alves continua alcoólico e é agressivo para a mulher. A vida do antigo GNR acabará em tragédia. Depois do 25 e Abril, durante um Governo Provisório, a viúva será recebida friamente por Cunhal em São Bento.
Em Bucareste, Jorge Alves acentua a sua condição de alcoólico e torna-se agressivo para Emília, a mulher, que se queixa ao controlador do partido comunista romeno. A situação assume tamanha gravidade que Cunhal vê-se forçado a ir a casa de Alves meter-lhe juízo. Diz-lhe: “Ó meu amigo, ou você entra na linha ou levamos a sua família”. Alves promete que doravante se portará bem, mas reincide no comportamento agressor.
Com a ajuda do aparelho romeno, num dia de 1967 a família de Jorge Alves escapa para uma outra localidade do país. Alves não suporta a separação e acaba por lançar uma corda ao ramo de uma árvore eenforca-se num jardim central de Bucareste.
A mulher e os filhos ainda ficam na Roménia até 1970, sempre amparados com trabalho e dinheiro, partindo depois para França onde têm familiares.
Já a seguir ao 25 de abril, é Álvaro Cunhal ministro Sem Pasta do I Governo Provisório, Emília dá uma entrevista ao jornal O Século, publicada na edição de 7 de junho de 1974. Queixa-se ao repórter de ter ido a São Bento e de Cunhal não a ter querido receber.
Já a seguir ao 25 de abril, é Álvaro Cunhal ministro Sem Pasta do I Governo Provisório, Emília dá uma entrevista ao jornal O Século, publicada na edição de 7 de junho de 1974. Queixa-se ao repórter de ter ido a São Bento e de Cunhal não a ter querido receber.
O líder comunista sabe da entrevista e decide chamá-la. “No seu gabinete de São Bento, Álvaro Cunhal cultivava um ar respeitoso, quase religioso. Falava-se a meia voz e andava-se como que em bicos de pés”, relataria Carlos Brito em Álvaro Cunhal – Sete Fôlegos de um Combatente (Edições Nelson de Matos, 2010).
Emília não se impressiona com o ambiente e é sem rodeios que lhe pede casa e trabalho. Cunhal, de semblante carregado, nega-lhe as pretensões, alegando que, após a família ter deixado a Roménia para um país ocidental, o contrato cessou e que o PCP nada lhe deve.
Emília não se impressiona com o ambiente e é sem rodeios que lhe pede casa e trabalho. Cunhal, de semblante carregado, nega-lhe as pretensões, alegando que, após a família ter deixado a Roménia para um país ocidental, o contrato cessou e que o PCP nada lhe deve.
No último dia de agosto de 1974, Cunhal regressa a Peniche, agora como homem livre. Num comício com cerca de cinco mil pessoas (estimativa dos jornais da época), agradece a quem viu a fuga e não deu o alarme, e acaba a dar uma palavra “ao corajoso militar que arriscou a liberdade e a vida” para ajudá-lo a alcançar a liberdade.
Nunca profere o nome Jorge Alves e não esclarece a importância decisiva que o soldado teve na fuga. O herói é um e é só ele: Álvaro Barreirinhas Cunhal.
Pedro Prostes da Fonseca é jornalista e autor do livro “A Porta para a Liberdade”, sobre a importância do guarda Jorge Alves na fuga de Álvaro Cunhal do Forte de Peniche .
observador.pt
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