Guilhermina Adelaide, a gatuna pianista
Roubava o que estava à mão enquanto dava lições de piano. Como nunca foi apanhada, passou a atacar ourivesarias. E começou a dar nas vistas, apesar de se conseguir safar atirando as culpas para o filho. Foi presa várias vezes, mas o pior aconteceu quando se ligou ao Mesquita. Este é o segundo caso da série “Crime à Segunda”, que o Expresso está a publicar sobre criminosas portuguesas
Acontecia a mãe bater-lhe, mas José António sabia que era apenas para evitar que chamassem a polícia. Guilhermina Adelaide, mais conhecida por "a pianista", usava o filho menor nos roubos de roupas, tecidos e joias que depois vendia ou empenhava. Presa por diversas vezes, conseguiu livrar-se de ir a julgamento até que arranjou um amante e... foi degredada.
O país andava entusiasmado com os últimos acontecimentos no Parlamento: na sessão de sábado 7 de maio de 1887, um deputado exaltado dera uma bofetada ao ministro da Marinha quando se discutia o incidente com marinheiros bêbedos no Arsenal. A dada altura, Henrique de Macedo, de 44 anos, levantou-se para proferir na cara de Ferreira de Almeida, de 40: "Não tenho medo do senhor, nem aqui nem lá fora". Disse-o por três vezes. Nas duas primeiras, o deputado respondeu-lhe por palavras, à terceira foi com a mão.
Seis horas depois, o autor da bofetada era metido na cadeia por quatro meses. A ordem de prisão foi assinada pelo próprio ministro do governo do Partido Progressista. Perguntará o leitor: e o que é que resultou deste "estranho incidente"? "Um ministro fora do poder e um deputado fora da Câmara: um conselheiro da coroa saído dos conselhos da dita coroa, e um oficial de marinha encarcerado nos ferros de el-rei: dois homens ao mar", lê-se numa crónica na revista literária e artística "Ilustração Portuguesa", de maio de 1887, em que se critica ainda o facto de o deputado estar preso "sem culpa formada e sem intimidação de culpa".
O deputado da oposição, também oficial da marinha, no tempo do rei dom Luís e do "primeiro-ministro" José Luciano de Castro foi detido mais rapidamente do que Guilhermina Adelaide, cuja prisão o matutino "O Século" apenas noticiaria dois dias depois. Há muito que esta professora de piano, bem vestida, elegante e simpática roubava casas e lojas lisboetas. Todavia, até à véspera do dia da bofetada, conseguira passar despercebida.
Era "uma industriosa", como titularam os jornais, mas foi um sinete de ágata com incrustações de prata dourada, no valor de cinco libras, que a tramou. Nos primeiros dias desse mesmo mês de maio, o senhor Coimbra, que possuía um bazar na rua do Alecrim, em Lisboa, fez queixa à polícia de que lhe desaparecera um desses objetos com que se imprimia no lacre brasões ou iniciais para autenticar ou garantir a inviolabilidade de cartas, encomendas e afins.
O cabo Loureiro, encarregado de investigar o furto, percorreu os caminhos habituais dos ladrões e encontrou o sinete no ourives Abranches, que lhe explicou tê-lo acabado de comprar (por menos de metade do valor) a uma mulher que prometera voltar para lhe vender uma medalha e outros objetos, os quais disse estarem empenhados e serem de uma senhora muito nobre, como conta o "Diário Ilustrado".
Guilhermina voltou à ourivesaria no dia seguinte, conforme previsto, mas o negócio saiu-lhe mal. Abranches chamou o cabo e a professora de piano e bordados foi detida. E levada para o Governo Civil, onde a apalpadeira - era tempo sem mulheres-polícia - lhe descobriu "uma cautela do Montepio Geral" referente a um alfinete de ouro com brilhantes que empenhara depois de o surripiar.
Palavra passa palavra, e outros comerciantes começaram a perceber como é que estavam a ser roubados, em especial os ourives da rua Larga de S. Roque (atual rua da Misericórdia) e da Praça de Dom Pedro V (Jardim do Príncipe Real), as maiores vítimas da pianista. Guilhermina Adelaide, acompanhada do filho de dez anos, entrava numa loja, fosse de ouro e prata ou de fazendas, dizia querer ver determinada coisa, depois ia pedindo mais; no ínterim, enquanto o caixeiro ia e vinha, o rapaz guardava no bolso o que a mãe lhe indicava.
Guilhermina Adelaide ia dizendo ao lojista ter sido "encarregada da escolha por uma pessoa de alta posição", para justificar no final porque não comprava nada, após lhe exporem tanta mercadoria no balcão - alegava que andava só a ver para informar eventuais compradores. A maior parte dos comerciantes, ludibriados sem no imediato se aperceberem, apenas a considerava uma "freguesa maçadora".
Se o comerciante ou o caixeiro, como se denominava o empregado de balcão, desconfiava do miúdo ou dava pelo furto, "a mulher ralhava com o filho, chegando mesmo a bater-lhe, mostrando-se muito indignada, pedia desculpa, e retirava-se em paz. Quando não davam pela maroteira punha-se a andar tendo feito um bom negócio", lê-se no "Diário Ilustrado" de 7 de maio de 1887.
PRESA, SOLTA, PRESA, SOLTA... SEMPRE LADRA
Do Governo Civil, Guilhermina Adelaide, de 27 anos, foi transferida para o Aljube e a criança para o antigo convento das Mónicas, transformado em casa de correção de rapazes, já que não apareceu ninguém para pagar a fiança. Dez dias volvidos, a professora estava cá fora, retomando a sua vida normal, ou seja, o crime. Cinco meses depois, a 6 de setembro, mais ou menos quando o esbofeteado ex-ministro da Marinha resolveu desafiar para um duelo o deputado Ferreira de Almeida, é presa de novo, suspeita de "uma fornada de crimes".
Desta vez, a segunda, a professora esteve no Aljube sete dias. Ao que parece, tinha uma certa ligação com um advogado cheio de arte que conseguia desfazer o processo antes de o escrivão o organizar a tempo de não ultrapassar os oito dias de prisão preventiva. "Seja como for, a verdade é que a criminosa tão depressa era presa pela polícia como liberta pela justiça... por falta de provas", conta Ferraz de Macedo na revista "Galeria de Criminosos Célebres em Portugal: história da criminologia contemporânea", começada a publicar em 1896.
No início do ano de 1888, a 3 de janeiro, Guilhermina voltou a ser detida, por furto de um corpo de vestido e de um chapéu da casa de duas modistas na baixa de Lisboa, numa área que parece ser das suas preferidas, especialmente depois de se tornar demasiado conhecida dos comerciantes do Bairro Alto. Desta feita, teve azar e ficou 13 meses no Aljube, local no bairro de Alfama que desde a era dos árabes na Península Ibérica tem servido de prisão, "muito embora o tempo lhe tenha atribuído características diferentes", como explica Eliana Catarina Gonçalves de Oliveira na sua dissertação de mestrado em História Contemporânea.
"No período medieval foi prisão para os delinquentes em matéria eclesiástica, vertente que se prolongou até à implantação do liberalismo no século XIX, altura em que se extinguiu o foro eclesiástico e todos os cidadãos passaram a ter uma justiça comum. Entre os finais do século XIX e inícios do século XX, o edifício do Aljube serviu de prisão de mulheres", resume a autora da tese "Aljube, uma história política".
Na época de Guilhermina Adelaide, o edifício situado um pouco mais acima da prisão para homens no Limoeiro, de quem vai da baixa para o castelo de S. Jorge, serve de estabelecimento prisional para criminosas comuns. "Até à data do seu encerramento em 1965 - adianta Eliana de Oliveira - o Estado Novo usava o Aljube como cadeia para encarcerar os presos políticos na fase instrutória dos processos." Por isso é, desde 2015, o museu da "Resistência e Liberdade", com o qual se pretende, como afirma a direção, "assegurar que o nosso futuro não seja amputado do nosso passado".
Francisco Ferraz de Macedo, que nasceu para ser alfaiate como o pai mas acabou por se formar em farmácia e em medicina, conheceu Guilhermina Adelaide: "Quem a visse por então, aí nos anos 1887 ou 1888, alta, delgada, fisionomia atraente, vestida com elegância e até com luxo; quem a ouvisse falar com aquela facilidade e largueza de expressão de quem sabe muito bem o que dizer, não julgaria estar diante de uma mulher padecendo de todos os vícios até à escala do crime".
"Esta mulher tinha recebido uma educação aprimorada, no sentido que estas duas palavras em conjunto possam ter, tratando-se de maiores ou menores habilitações literárias realçadas pelas prendas com que é de uso dotar as meninas nascidas num certo meio de abastança", afirma o investigador, conhecido pela sua coleção de mais de mil crânios e mais de cem esqueletos humanos.
"A pianista" ou "A Cepa", como a polícia e os jornais a tratavam, era uma mulher inteligente, com alguma cultura, falava línguas, sabia bordar e tocar o instrumento que, à época, qualquer menina de família devia saber aprender. Terá sido no domicílio das suas alunas que começou a roubar, ganhando o à-vontade de quem não é apanhado. E não o foi, durante uns anos. Os donos das casas davam pela falta de objetos ou de roupas, mas nunca desconfiavam da professora de piano cheia de maneiras e "excelente aparência".
Ferraz de Macedo também conheceu o marido da pianista - aliás, é por causa de respeitar esse "honesto comerciante de província" que não divulga os apelidos da criminosa. No entanto, os jornais não os poupam: Guilhermina Adelaide Couto Melo Araújo e Cepa, de nome completo, casou cedo, aos 17 anos, provavelmente (assim acontecia) por conveniência da família ou porque já estava grávida. Se José António tinha dez anos quando Guilhermina deu entrada nas Mónicas, significa que nasceu no ano do casamento, isto é, em 1877.
O marido, cujo nome se evaporou no tempo, quando soube não quis acreditar. Casou apaixonado pelo "anjo de candura" que a rapariga parecia ser e viveu feliz os primeiros anos de matrimónio. Quando se foi apercebendo de que vivia no engano, deixou-se sugar pelo desgosto e pela própria mulher. Perdeu tudo - “a honra, os meios de ganhar a vida e até a razão!” -, e, segundo constou, passou a viver da caridade de alguém amigo.
"Felizmente para esse infeliz, a idiotia primeiro e depois a morte privaram-no de assistir ao desenrolar de todo o pungitivo drama de que foi protagonista sua mulher", escreveu Ferraz de Macedo, homem de ciência e de teorias avançadas no campo da criminologia, estudioso de diversos casos do século XIX.
A FAMIGERADA CEPA E O MESQUITA
Ao invés de a afastar do crime, as estadas na prisão levaram Guilhermina Adelaide a refinar o talento com as convivas do Aljube e a envolver-se, nos períodos de soltura, com gente marginal. Ainda não era viúva quando se apaixonou por um ladrão especialista em arrombamentos, conhecido por Mesquita.
Quando saiu da cadeia, ao fim de mais de um ano, Guilhermina resistiu apenas um mês e pouco em liberdade. Numa loja da mesma rua onde roubara o chapéu à mademoiselle Clément, "empalmou um corte de fazenda para calças de homem". Se calhar roubou para vestir o Mesquita, mas perdera a destreza para entalar o roubo no vestido ou escondê-lo debaixo da capa, como dantes era perita.
O falhanço valeu-lhe mais quatro meses atrás das grades. Foi solta a 16 de agosto de 1889. Neste ano, irá aguentar-se em liberdade, não contará para a estatística das prisões, não será uma das 11.940 pessoas presas, menos 422 do que no ano anterior, numa Lisboa com cerca de 300 mil habitantes.
Já não é tão fácil roubar como dantes. Os comerciantes atravessam um período de crise provocado pelas dificuldades financeiras que afetam o reino, o que os torna mais sensíveis à gatunagem disfarçada. O poder de compra diminuiu, associado ao aumento de impostos e ao corte nos ordenados; o crime amenta, assim como a experiência das vítimas. Há mais queixas de furtos.
A vida também se complica para Guilhermina. Já se tornou demasiado conhecida dos possíveis alvos e da polícia, mas tem de sobreviver. Então, viúva e sem a tutela do filho, foi morar com o seu namorado Mesquita. Aguentou dez meses "tocando piano pelos cafés refilões sem que a polícia tivesse conhecimento de alguma nova partida da ladra", elucida Ferraz de Macedo. De facto, não se ouve falar dela durante esse tempo: ou conseguia fazer a coisa bem feita ou dedicou-se mesmo ao trabalho.
Em Outubro de 1890, porém, tudo voltou ao mesmo mas para pior. O casal mudou-se para um quarto andar do nº 17 da rua da Padaria, que liga a rua dos Bacalhoeiros ao largo de Santo António da Sé, e reparou que a mulher a quem subalugaram o quarto possuía papéis que valiam dinheiro, e uma boa quantia.
A arrendadora era, de facto, inquilina desse quarto andar, mas recebia outros "hóspedes". Ora, quando deu por falta das três inscrições de dívida pública, desconfiou que o ladrão fosse um deles e não esperou para fazer queixa à polícia. As chamadas inscrições valiam 300 mil-réis, o vencimento anual dos contadores dos tribunais administrativos, uma espécie de auditores de contas.
O comissário da primeira divisão, ao saber que entre os hóspedes se encontravam "a famigerada Cepa e o Mesquita", mandou logo dois polícias "deter os dois figurões", noticiou o "Diário Ilustrado", acrescentando: "O Mesquita, porém, que é fadista de marca, pegou numa garrafa e deu com ela na cabeça do 107, ferindo-o gravemente na testa. Um burburinho diabólico, que acabou pela prisão da Cepa e do Mesquita".
Já no comissariado, Guilhermina negou o roubo, como sempre fizera quando era apanhada. O seu companheiro também se disse inocente, mas no dia 22 de outubro de 1890 ela dava entrada no Aljube e ele no Limoeiro, atualmente o Centro de Estudos Judiciários. Os dois são condenados, sem apelo nem agravo, ao degredo em África. A pianista foi deportada para Angola no dia 6 de maio de 1892, morrerá poucos anos depois.
Como diz o criminologista desse tempo, Ferraz de Macedo, "os gatunos têm um lado de semelhança com os toureiros: por mais hábeis, por mais cautos e peritos que sejam, lá vem um dia em que são colhidos".
expresso.sapo.pt
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