Há menos de um mês comprei no sebo do Sr. Fred, o Alfarabista, um exemplar humilde de As Mil e Uma Noites, baseada na tradução de René R. Khawan. A edição contempla apenas uma história, a de “Djulnare-do-Mar”. Mas a compra me levou a pensar na primeira vez que ouvi falar em Sir Richard Francis Burton, um dos tradutores mais famosos do livro.
Descobri Jorge Luís Borges muito cedo, lá pelos 12 anos, pois meu avô paterno (sempre ele) tinha Ficções naquela coleção vermelha inesquecível da Abril Cultural, que herdei após sua morte. (O Sr. Fred me contou uma história adorável sobre Borges e Bioy Casares, mas não vem ao caso agora). No conto “Aleph”, que dá nome a um de seus livros, duas coisas me marcaram quando o li a primeira vez: o trecho final em que Borges fala da perda inexorável de sua memória dos traços de seu amor Beatriz Viterbo (o mito do Aleph como a pedra filosofal da memória e da enciclopédia infinda que transpõe o tempo e o espaço contraposto a finitude, impotência e dissolução humana) e a citação de que o Aleph havia sido descrito em um texto perdido de Richard Francis Burton (que, por sinal, mais parece um personagem do próprio Borges).
Espião, espadachim, soldado, aventureiro, historiador, diplomata, tradutor, etnógrafo, geógrafo, explorador, poeta e sabe-se Allah o que mais, Burton (1821-1890) foi um personagem muito mais complexo e misterioso que muitos heróis e heroínas das histórias que traduziu. Falava cerca de 30 línguas e, dizem, mais de 40 dialetos. Um polímata que poderia ser descrito como um típico homem renascentista em plena era vitoriana.
(Por conta de minhas leituras de Monteiro Lobato na primeira infância eu tinha contraído o germe do fascínio pelos exploradores e aventureiros de todos os tipos, Marco Polo, Champollion, Schliemann, Dr. Livingstone e Stanley, Thomas Edward Lawrence (Lawrence da Arábia) e, tempos depois, fiquei um tempo fixada nas expedições de Amundsen e do azarado Scott ao Polo Sul e em Robert Peary - correndo contra o degelo de Primavera após chegar ao Polo Norte e sobrevivendo, mesmo tendo perdido alguns dedos.
T. E. Lawrence, o Lawrence da Arábia: do mesmo planeta de Burton
Não fosse a biografia de Burton suficiente eu ainda tinha uma atração danada por um certo clima fim do século XIX: Darwin e o Beagle, Phileas Fogg, salas cheias de palmeiras e cortinas de veludo vinho e adamascado, um certo almíscar oriental e africano que perfumou também a pintura, Madame Curie, salões de ópio, os romances de H. R. Haggard, Ela, As Minas do Rei Salomão...Enfim: aquela mistura incomum de ciência e exotismo.)
Minha pequena pesquisa começou nas enciclopédias de meu avô, mas nunca achei nenhuma tradução brasileira de sua versão das Mil e Uma Noites (existem edições de Galland e uma mais recente traduzida direto do árabe por Mamede Mustafá Jarouche). A primeira tradução foi a do orientalista francês Antoine Galland que verteu os textos no inicio do século XVIII e é a mais difundida até hoje. A versão de Burton é considerada por muitos como obscena, mas, é provável que isso signifique apenas que é a menos etnocêntrica. Pesquisadores aceitam que as histórias do livro tiveram sua origem na Índia, foram transpostas para a Pérsia, onde foram acrescidas e arabizadas e, por fim, tiveram seu terceiro ciclo no Egito.
Ilustração do magnífico Maxfield Parrish para uma edição de As Mil e Uma Noites
A se acreditar nos estudiosos, as traduções e transposições das Arabian Nigths (Noites Árabes, um dos títulos alternativos das traduções inglesas) também foram cercadas de magia, fantasia e mistérios: a mais famosa história, “Aladim e a Lâmpada Maravilhosa”, que consta da tradução de Galland, nunca foi encontrada nos originais árabes ou persas – suspeita-se que o próprio Galland a criou. Burton titulou sua tradução de O Livro das Mil Noites e Uma Noite, talvez para reforçar a ideia de infinitude, criação contínua e circularidade. Ele traduziu 17 volumes.
É provável que mais famosa do que a transposição das Mil e Uma Noites tenha sido a tradução de Burton do tratado indiano Kama Sutra de Vatsayana. Ele transpôs outros textos eróticos como O Jardim Perfumado, que fala dos costumes sexuais da África islamizada do século XVI, e elegias do poeta latino Catulo. Espantosamente prolífico, Burton acompanhava suas traduções de ensaios introdutórios e apêndices que são verdadeiros tratados de antropologia cultural. Contrariamente à moral vitoriana, não poupava descrições naturalistas que iam de detalhes anatômicos aos costumes sexuais, falando sem reservas de poligamia, incesto e homossexualismo - e teve peito para publicá-los. Alvo de intenso patrulhamento e inimizades poderosas por suspeita de inclinações anti-imperialistas (em um período no qual o Império Britânico lutava contra insurreições) e ameaçado pelo Ato contra Publicações Obscenas baixado em 1957, criou a Kama Shastra Society para publicar os textos com suas observações na íntegra em pequenas edições de circulação limitada.
Edição de Vikran com desenhos de Grisset pode ser lida em http://ebooks.adelaide.edu.au/b/burton/richard/b97v/
Traduziu ainda contos hindus como Vikram e o Vampiro e a Lírica e Os Lusíadas de Camões, entre outras obras. Mas, em paralelo a suas traduções (quiçá recriações), escreveu livros sobre falcoaria e sobre a arte da espada, estudos sobre arte etrusca, relatos antropológicos e geográficos variados de suas viagens e aventuras. Em um Relato Pessoal de Uma Peregrinação de Meca a Medina, sua primeira aventura que ganhou repercussão, ele conta como foi o primeiro ocidental a entrar na cidade sagrada muçulmana disfarçado de médico afegão.
Ilustração de um dos livros sobre falcoaria escritos por Burton
Quando foi cônsul no Brasil, em Santos, viajou pelo interior de Minas Gerais e pelo Rio São Francisco, chegando até Paulo Afonso na divisa da Bahia com Alagoas. No Brasil, além de um livro sobre as Highlands, traduziu a “aventura” de Hans Staden entre os índios – livro em cujo ensaio introdutório discorre sobre etnias indígenas e costumes do interior e das zonas citadinas. (Uma curiosidade: sua esposa, Isabel Burton, traduziu Iracema de José de Alencar).
A vida de Burton, como já dito, foi cercada de mistérios e escândalos. Conta-se que em conversa com um padre ele teria dito: “Senhor, tenho orgulho de dizer que cometi cada um dos pecados do Decálogo”. Tendo-o feito ou não, não se pode negar que ele tinha uma concepção moral imensamente flexível e ideias bem exóticas até para um antropólogo do século XIX. Uma delas era a teoria da “Zona Sotádica” que sustentava, sem nenhum tom crítico ou etnocêntrico, que a “pederastia” ou o “amor de um homem mais velho por um jovem” era endêmica e “bem tolerada” em boa parte do planeta – leia-se vastas áreas da Europa, inclusive toda a Península Ibérica e a Itália, o Norte da África, boa parte da Ásia e toda a extensão das Américas do Sul, Central e do Norte. O nome “sotádico” deriva de um poeta satírico grego do século III, famoso por seus versos homoeróticos. O conceito é desenvolvido com mais fôlego por Burton no ensaio final do décimo volume das Mil e Uma Noites, publicado em 1886, intitulado de forma pouquíssimo sutil de “Pederastia”.
Foto mostra cicatriz que Burton ganhou quando teve o rosto atravessado por uma lança somali Preocupada com a reputação do marido, Isabel insistiu em um funeral católico e queimou a maior parte de sua produção não publicada que considerou pornográfica, inclusive uma nova tradução do Jardim Perfumado em que ele havia incluído um novo capitulo sobre “o amor entre iguais”. Em termos religiosos, tudo indica que Burton se inclinava ao agnosticismo, a despeito de seu forte misticismo. Usuário de ópio e haxixe e radicalmente identificado com os costumes do Oriente, conta-se que quando trabalhou para a Companhia das Índias Orientais foi iniciado em uma seita brâmane altamente esotérica – sendo tratado por seus pares como membro de uma casta superior. Posteriormente teria aderido ao segmento místico do islamismo tornando-se adepto do sufismo (diz-se também que um de seus disfarces prediletos era o de dervixe). O poema místico sufi Kasidah, que Burton alegou ser da autoria de Haji Abdu El-Yezdi, é reconhecido como obra do próprio. Abaixo um pequeno trecho que traduzi (recriei) do inglês.
Onde está sua alma, besta selvagem
Que foi desviada das florestas primevas?
Que forma tem, que local habita, que papel desempenha no plano da natureza?
Esta alma [aqui está] para decifrar um mistério
Quem deseja a vã dualidade?
Não serei eu suficiente a mim mesmo?
Que tipo de coisa necessita de um eu no interior do próprio eu?
Em paralelo a sua vida fora dos padrões Burton foi membro da Royal Geographic Society, nomeado cônsul britânico na ilha de Fernando Po, Santos, Damasco e, por fim, em Trieste, e foi declarado Cavaleiro pela Rainha Vitória em 1886. Mas o episódio que contribuiu de forma definitiva para sua fama foi a expedição (na realidade duas expedições) em busca da nascente do Nilo Branco juntamente com o militar e explorador John Speke.
Depois de meses de aventuras dignas de um Indiana Jones, ele finalmente “descobriu” o Lago Tanganica, acreditando ter chegado ao fim de sua busca. Doentes e cansados, Burton e Speke decidiram então dividir a expedição e o último rumou para o Norte onde acabou por “encontrar” o Lago Vitória, a verdadeira nascente. O retorno de Speke a Londres na surdina antes de Burton para assumir os louros da descoberta e os desentendimentos entre eles deram origem a uma querela que culminou na morte acidental de Speke (que foi considerada suicídio). A história da expedição e da disputa na Royal Society é contada no filme de Bob Rafelson As Montanhas da Lua.
VÍDEO
Recursos
Sites com informações e obras de Burton (em inglês)
http://www.burtoniana.org/index.html (site excepcional com fac-símiles de toda a obra de Burton, muitos de edições prínceps)
© obvious: http://lounge.obviousmag.org/ordem_no_ruido/2013/04/burton-o-homem-das-mil-faces-e-uma-face.html#ixzz4OUmTRR7F
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