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Fernando Frazão, o motorista de pesados que ficou conhecido por levar Marcelo Rebelo de Sousa à pendura, em dezembro de 2018, para que o Presidente ficasse a conhecer por dentro as condições de trabalho da sua classe, diz-se agora traído pelo Chefe de Estado.
Dois dias antes da greve de agosto que mobilizou camionistas de dois sindicatos independentes, este motorista que, como a maioria do povo português, olha para o Presidente à procura de consolo espiritual, enviou-lhe uma carta particular a alertá-lo para as consequências de uma luta que podia levar à paralisação do país, falando até em ‘revolução’.
Mas a missiva acabou por ir parar aos serviços secretos, à Procuradoria-geral da República e à comunicação social. E o homem, que em termos políticos anda às apalpadelas e se revê em figuras tão díspares como John Kennedy, Francisco Sá Carneiro e Álvaro Cunhal, de repente, passou a ser visto como um perigoso subversivo disposto a destruir a sociedade.
Contactado ontem pelo SOL, Marcelo Rebelo de Sousa confirmou ter reencaminhado o email que recebera do motorista para o primeiro-ministro. O Presidente da República explicou ter considerado um discurso genuíno e representativo do que se estava a passar, uma vez que Fernando Frazão nem sequer sindicalizado era.
O Chefe de Estado disse que lhe pareceu relevante que o Governo tivesse a noção do sentimento dos motoristas. E salientou ainda que juridicamente não viu ali qualquer problema, como, lembra, a PGR viria a confirmar mais tarde. Esclareceu também que quando a carta foi divulgada nos media se apressou a contactar Fernando, para lhe dizer ser alheio a tal fuga.
Logo após a chamada do SOL, a assessora do presidente da República entrou em contacto com Fernando para perceber se tinha ficado ‘chateado’ com o que se passara, ao que este respondeu afirmativamente.
Em novas declarações ao SOL, Fernando desmentiu inclusivamente a informação avançada pelo Presidente da República, de que não era sindicalizado: «Sou o número 1000 do SIMM».
Jornalistas do Sol acompanharam Fernando durante um dia de trabalho na última semana e traçam o perfil do ‘temível revolucionário’.
Podia conduzir o veículo de 40 toneladas de olhos fechados. Ganhou intimidade com camiões como este quando era ainda catraio. Mas Fernando (ou ‘King’, como é conhecido no meio) não tira os olhos da estrada. Sempre foi um homem de grandes entusiasmos, mas agora está desiludido e talvez por isso aparente uma estranha tranquilidade. Não é apenas o fracasso da greve dos motoristas em agosto que o anda a moer.
Tudo começou com a carta para o Presidente da República.
Fernando segue pelo IC2 com o Presidente
O dia abrira a portada ao nascer do sol quando Fernando, após ter carregado 25 toneladas de borracha triturada, própria para a construção de relvado sintético ou pavimentos, saiu de Santarém com destino a uma fábrica nos arredores do Porto. Pela IC2, foge às portagens e às SCUTS, menos uma despesa para o patrão que assim lho determina.
Enquanto desfia a história da sua vida, com altos e baixos como a estrada nacional, a expressão do rosto mantém-se inalterável. A meio do trajeto, o bom humor muda-lhe as feições. Aproxima-se de Condeixa-a-Nova, uma vila no distrito de Coimbra. Com uma gargalhada irreprimível, aponta na direção de um restaurante à beira da estrada: «O almoço com o Senhor Presidente esteve para ser aqui».
Como se tivesse nascido para uma missão especial, Fernando raramente aplica o singular: «Eu tinha escolhido este sítio porque queria mesmo que ele percebesse como é difícil a vida dos motoristas. E este era o local ideal. Nós nunca sabemos quando chegamos a casa, dormimos muitas vezes na estrada, somos assaltados e, em Portugal, é raro encontrar parques seguros.
Este aqui tem câmaras de vigilância e casas de banho onde podemos fazer a nossa higiene e os preços da comida são em conta». Estaciona no parque do Restinova, conhecido entre os motoristas como o restaurante do Amor: «Diz-se que tem quartos na zona de cima e raparigas para secar os bolsos dos motoristas».
Pouco tempo antes de Marcelo ter aceitado o convite de Fernando para fazer a viagem e conhecer os problemas do setor, uma das empregadas brasileiras desaparecera misteriosamente do restaurante e a PJ estava a investigar o caso.
Quando o motorista, uns dias antes do encontro com o Chefe de Estado, recebe a sua assessora, a ex-jornalista da SIC Maria João Ruela, e o corpo de segurança do Presidente para preparar o programa, deu-lhes conta da fama do local: «Como eles não viram qualquer inconveniente, reservei o restaurante. Só que um dia antes do encontro, a SIC deu uma nova notícia sobre a brasileira que continuava desaparecida e, à noitinha, telefonaram-me para se mudar o restaurante onde o Senhor Presidente, antes da viagem, se ia reunir com camionistas da Associação dos Motoristas do Asfalto».
Ao balcão, bebericando um café, o homem afunda-se nos seus pensamentos. O ano de 2008 provoca na sua mente um complexo de recordações agradáveis e dolorosas. Nos primeiros dias de junho daquele ano, os camionistas, em protesto contra o aumento dos combustíveis, mostravam que podiam deixar o país KO.
As estradas principais foram bloqueadas por centenas de camiões, as prateleiras dos supermercados ficaram vazias e os postos de gasolina a zeros. A história, por norma, repete-se ou então são os homens que não mudam: também dessa vez as autoridades escoltam caravanas de emergência de combustíveis, mas os camiões foram apedrejados e alguns queimados.
A 13 de junho, Fernando estava num dos piquetes de greve em Alcanena. Esse dia ainda o persegue. A dois passos de si, morria um vizinho e amigo: José Aurélio, homem de alguma idade que nunca fora dado a grandes vendavais e aderira pela primeira vez a uma greve. Estava no piquete com Fernando e tentavam impedir um dos colegas de circular. De repente, chegou o dono da transportadora que pretendia pôr o camião em marcha. Aurélio, exaltado, pendurou-se no vidro. O outro assustou-se e arrancou. Fernando viu-o cair e ser esmagado pelo pesado: «Morreu a olhar para mim. Nesse momento, jurei que não ia parar enquanto não modificasse a realidade dos motoristas».
Ao terceiro dia de paralisação daquele ano de 2008, com uma morte como pano de fundo, o protesto acabou com um acordo entre a ainda embrionária Associação Nacional de Transportadoras Portuguesas (ANTP), a Associação Nacional de Transportadores Públicos Rodoviários de Mercadorias (ANTRAM) e o Governo de José Sócrates – que então chegou a declarar que sentira «o Estado vulnerável».
Fernando, que foi acumulando razões para desconfiar da relojoaria política, faz o saldo histórico: «A maior parte das medidas desse acordo não foi cumprida. Veja que, até ao ano passado, quando a FECTRANS (Federação dos Sindicatos de Transportes e Comunicações, afeta à CGTP) negociou com a ANTRAM o novo contrato coletivo de trabalho, o nosso salário ainda estava em escudos. Há vinte anos que não éramos aumentados».
A promessa que fizera ao colega que morreu tornou uma ideia fixa e Fernando constituiu, com dois colegas igualmente descontentes que conhecera no Facebook, a Associação Motoristas do Asfalto. É através da mesma rede social que Fernando mantém os motoristas informados sobre os seus direitos, sobretudo em termos da legislação imposta pela Comunidade Europeia. A associação foi mobilizando motoristas e, em março de 2018, um ano antes da greve que abanaria o país, Fernando apostou na criação do Movimento União de Motoristas.
Convocou então um plenário no Carregado, onde conseguiu reunir mais de uma centena de motoristas, entre os quais alguns camionistas de matérias perigosas que só mais tarde formariam o sindicato que até há pouco tempo teve como principal rosto Pedro Pardal Henriques, o Sindicato Nacional dos Motoristas de Matérias Perigosas.
Baixar os braços parecia-lhe inconcebível. Fernando queria dar vapor ao movimento e lembra-se então de atrair para a sua causa Marcelo Rebelo de Sousa, que, sempre a marcar presença no palco mediático, se transformara numa personagem familiar, e envia-lhe um e-mail.
No início de setembro de 2018, através da assessora de imprensa do Presidente, teve a confirmação de que este aceitara o seu convite. O motorista, que tinha por ele uma devoção quase mítica, na sua simplicidade, escreve-lhe pela segunda vez, desta para lhe agradecer: «Não lhe vou esconder que fiquei radiante em saber que lhe iria mostrar a minha profissão, motorista de pesados de mercadorias, e que Deus o tinha posto no meu caminho (…)». Até aí desconhecedor das fraquezas congénitas do Homem, agora admite: «Na altura acreditei que ele ia fazer alguma coisa pelos motoristas. Enganei-me».
Fernando vai no segundo café, mas o cansaço não se desprega do seu olhar, como se fosse alérgico à cafeína. O tempo tem nele o efeito de uma descarga elétrica. Olha para o relógio, as horas travam-lhe o ritmo das recordações: tem de entregar a carga antes das 13h e volta à estrada. Chega à fábrica meia hora antes do previsto, mas já não há ninguém para o receber. Ali, almoça-se cedo. Faz marcha atrás. Um quilómetro depois, estaciona o camião, debaixo de uma sombra.
Com traquejo em viagens internacionais, por países onde o preço das refeições é incomportável para aquilo que ganha, Fernando aprendeu a desenrascar-se. Num pequeno fogão a gás, despacha o almoço. A conversa solta-se, as memórias conduzem-no. Três meses após a viagem com o Presidente, foi Marcelo quem o convidou para uma visita a Belém.
Corria o mês de abril e o recém-criado sindicato dos motoristas de matérias perigosas, SNMMP, dera a volta do avesso ao país que entrara quase em asfixia.
O Governo perdera o controlo da situação. Fernando, sem pressentir que se colocava numa situação vulnerável, corre para Lisboa: o Presidente quer saber o que o motorista pensa da situação. «Disse-lhe que a culpa era da FECTRANS, que ficou a renegociar sozinha o Contrato Coletivo de Trabalho Vertical (CCTV) para 2020 com a ANTRAM, que só prejudica os motoristas aceitando um salário-base inferior ao que foi proposto».
Fernando baixa a guarda
Fernando nunca teve qualquer formação política, sendo até eclético nas figuras que admira. «Gosto de Kennedy, por exemplo, e de Sá Carneiro. Não é por acaso que foram mortos». Mas fora no Partido Comunista Português que sempre votara até aí. Chegara aí por intuição, como os cavalos procuram a água, e não por obediência a qualquer cartilha. Por isso, o ressentimento com o sindicato ligado ao PCP: «Se o Cunhal fosse vivo, dava três voltas na tumba ao ver que a FECTRANS não está do lado dos trabalhadores. Votei sempre no PCP porque pensava que estavam do nosso lado. Agora, ponho lá uma cruz, para não fazer pior».
O lugar de destaque que parecera ter ganho junto de Marcelo leva Fernando a baixar a guarda. A greve terminara ao terceiro dia, com o Governo, assustado, a intermediar as partes, e a promessa entre a associação patronal e o sindicato de se sentarem à mesa para negociar. Mas o guião acabou como de costume. Um mês depois, já estavam desentendidos, a ANTRAN, que se comprometera a aumentar o salário-base dos motoristas de forma escalonada até 2022, dava o dito por não dito e era marcada nova greve. Cirúrgica: em agosto, mês de férias para a maioria dos portugueses e época alta do turismo.
Três dias antes do início da nova greve, Fernando, que desenvolvera uma afeição pelo Presidente e esperava reciprocidade, vê-se na obrigação moral de lhe enviar nova missiva. Tem o contacto da assessora de Marcelo e, via Whatsapp, combina o envio da epístola. Foi numa sexta-feira, os ponteiros do relógio assinalavam 16h38, quando a Belém chega a previsão do motorista do que poderia acontecer com a nova paralisação dos motoristas. Passado uma hora, Maria João Ruela confirma-lhe que o Presidente recebera a sua carta.
A leitura é demorada apesar do motorista não acrescentar nada de novo ao que já tivera oportunidade de discutir com o Presidente da República: «Os motoristas estão determinados a avançar com a greve se as propostas não forem aceites. Em janeiro deste ano e depois em abril, quando estive com o Senhor Presidente e conversamos sobre os problemas e dificuldades que esta profissão enfrenta, alertei também para possíveis situações se uma greve geral de motoristas fosse para a frente. O que na altura previ está na iminência de acontecer, pois após a greve iniciada pelos motoristas de combustíveis, outros motoristas identificaram-se com a luta dos colegas e decidiram juntar-se a esta luta».
Fernando, imbuído de espírito revolucionário, fazia cálculos com base em lições históricas: «Desta forma, mais uma vez, quero alertá-lo para o que poderá vir a acontecer e, como tal, gostaria de dar o exemplo do Chile ou do Brasil, 26 dias foi quanto a greve durou no Chile, o Governo caiu. Mas olhando para nós, uma greve dessas dimensões seria um desastre nacional».
Longe de imaginar que estas palavras seriam interpretadas como um incitamento à revolta, Fernando traça o cenário socioeconómico do que poderá acontecer com o prolongamento da greve: «No terceiro dia as fábricas terão de parar quer pela falta de matéria-prima como pelo não escoamento do produto acabado; centrais termoelétricas reduzirão a potência e poderá dar-se uma crise energética instalando-se o caos.
A população vai revoltar-se e muito seguramente lhe digo que está muito iminente uma revolução civil, que pode não ser tão civilizada como o 25 de Abril de 1974».
A realidade transporta-o ao presente. A seguir ao almoço, Fernando volta à estrada e entra na fábrica. À 13h45, com o sol a pique e a temperatura nos 33 graus, a desfazê-lo em água, retira a lona do camião e as traves que seguram a mercadoria e a borracha triturada é descarregada por um dos trabalhadores da fábrica.
O cérebro do motorista funciona como um arquivo que armazena a pior informação: «E tenho sorte porque, na maior parte das vezes – e apesar de ser proibido, a não ser que esteja numa adenda do contrato –, sou eu quem, sem formação, depois de conduzir horas a fio, descarrega o camião».
Continua a cronometrar o tempo como se este fosse um seu refém. Tem de seguir para outra empresa, em Arcozelo, a 16 quilómetros, para carregar de novo: «Por este andar, já não vou dormir a casa hoje». Num parque ali perto, de uma das lojas de eletrónica e eletrodomésticos da rede Rádio Popular, outros camionistas, sem local para se abrigarem, acabam por adormecer encolhidos no banco, enquanto esperam que haja gente disponível para fazer a descarga.
Fernando, que já correu mundo e pode fazer comparações, estabelece diferenças: «Já muitos camionistas morreram por terem adormecido no camião em dias de altas temperaturas. Em Inglaterra, por exemplo, há pontos de descarga com bilhar, plasmas, casas de banho e ar condicionado, claro». Adivinha que a espera vai ser longa: «Querem poupar na mão-de-obra, não saímos daqui tão cedo. E ainda tenho de fazer a distribuição da carga em cinco locais».
Presidente envia carta ao primeiro-ministro
Enquanto engana o tempo, regressa à dinâmica dos factos. Sete horas depois de ter enviado a carta a Marcelo, pelas 23h19, a assessora do Presidente envia-lhe uma mensagem: «O Presidente leu e enviou a sua carta ao primeiro-ministro». Sem que lhe tocassem as campainhas de alarme no cérebro, Fernando responde: «Obrigado, mas está tudo na iminência de parar».
E, como um espetador inocente, acrescenta referindo-se ao Governo, patrões e os dois sindicatos envolvidos: «Eu percebo as quatro partes». Fernando só veio a aperceber-se do imbróglio que se criara à sua volta uma semana depois. O Governo, prevenido, usara todas as armas para esmagar os grevistas. E, para descredibilizar mais os sindicatos, a carta de Fernando chega ao Expresso, que relata: Motorista que em janeiro transportou Marcelo escreveu um e-mail a ameaçar com uma greve que provocaria uma ‘revolução civil’.
Governo mandou para PGR e secretas. O título escondia a quem a carta fora dirigida na realidade, referindo-se apenas a uma «estrutura do topo do Estado».
A notícia que transformava o motorista num perigoso subversivo é repetida durante o dia pela SIC Notícias. Fernando estava a leste, quando recebe um telefonema e escuta uma voz conhecida. Era Marcelo a desvincular-se da fuga de informação: «Desculpe, ó Fernando, mas eu não tenho nada a ver com isso».
O Governo chegou a enviar epístola para à Procuradoria-Geral da República para que investigasse se estava em causa uma ameaça contra o Estado mas esta não precisou de tempo para pensar: a carta não passava de um mero desabafo. Independentemente das emoções, as linhas do seu rosto não se alteram. Regressa ao camião, após cinco horas de espera. Às 21h, mais de 12 horas depois de ter saído de Santarém, está de novo a entregar mercadoria em Coimbra e ainda lhe faltam quatro destinos. Passam-lhe para as mãos um porta paletes manual e é ele, desta vez, quem faz a descarga. Arrasta com ele um cansaço de quase duas décadas, como se fosse uma doença crónica. Leva com ele uma carga com o valor de mais de uma centena de milhares de euros e, receando assaltos, não quer dormir na estrada. Arranca, por isso, para local seguro. No parque do restaurante do ‘Amor’, estaciona o camião entre dezenas de outros.
Nesta sua vida de errâncias, costuma ter como companhia o ‘Faísca’, um gatinho amarelo que, hoje, para dar o lugar a outros, ficou em casa. Os animais são um conforto quando a solidão, por vezes, atinge extremos insuportáveis.
O entusiasmo com que antigamente falava do Presidente da República já não transparece: «Perdi a confiança. Nunca pensei que ele reencaminhasse a carta para o Costa, muito menos que viesse a ser investigado pela secreta. Ainda por cima, houve colegas que me acusaram do fracasso da greve, por causa da carta».
Dois dias antes da greve de agosto que mobilizou camionistas de dois sindicatos independentes, este motorista que, como a maioria do povo português, olha para o Presidente à procura de consolo espiritual, enviou-lhe uma carta particular a alertá-lo para as consequências de uma luta que podia levar à paralisação do país, falando até em ‘revolução’.
Mas a missiva acabou por ir parar aos serviços secretos, à Procuradoria-geral da República e à comunicação social. E o homem, que em termos políticos anda às apalpadelas e se revê em figuras tão díspares como John Kennedy, Francisco Sá Carneiro e Álvaro Cunhal, de repente, passou a ser visto como um perigoso subversivo disposto a destruir a sociedade.
Contactado ontem pelo SOL, Marcelo Rebelo de Sousa confirmou ter reencaminhado o email que recebera do motorista para o primeiro-ministro. O Presidente da República explicou ter considerado um discurso genuíno e representativo do que se estava a passar, uma vez que Fernando Frazão nem sequer sindicalizado era.
O Chefe de Estado disse que lhe pareceu relevante que o Governo tivesse a noção do sentimento dos motoristas. E salientou ainda que juridicamente não viu ali qualquer problema, como, lembra, a PGR viria a confirmar mais tarde. Esclareceu também que quando a carta foi divulgada nos media se apressou a contactar Fernando, para lhe dizer ser alheio a tal fuga.
Logo após a chamada do SOL, a assessora do presidente da República entrou em contacto com Fernando para perceber se tinha ficado ‘chateado’ com o que se passara, ao que este respondeu afirmativamente.
Em novas declarações ao SOL, Fernando desmentiu inclusivamente a informação avançada pelo Presidente da República, de que não era sindicalizado: «Sou o número 1000 do SIMM».
Jornalistas do Sol acompanharam Fernando durante um dia de trabalho na última semana e traçam o perfil do ‘temível revolucionário’.
Podia conduzir o veículo de 40 toneladas de olhos fechados. Ganhou intimidade com camiões como este quando era ainda catraio. Mas Fernando (ou ‘King’, como é conhecido no meio) não tira os olhos da estrada. Sempre foi um homem de grandes entusiasmos, mas agora está desiludido e talvez por isso aparente uma estranha tranquilidade. Não é apenas o fracasso da greve dos motoristas em agosto que o anda a moer.
Tudo começou com a carta para o Presidente da República.
Fernando segue pelo IC2 com o Presidente
O dia abrira a portada ao nascer do sol quando Fernando, após ter carregado 25 toneladas de borracha triturada, própria para a construção de relvado sintético ou pavimentos, saiu de Santarém com destino a uma fábrica nos arredores do Porto. Pela IC2, foge às portagens e às SCUTS, menos uma despesa para o patrão que assim lho determina.
Enquanto desfia a história da sua vida, com altos e baixos como a estrada nacional, a expressão do rosto mantém-se inalterável. A meio do trajeto, o bom humor muda-lhe as feições. Aproxima-se de Condeixa-a-Nova, uma vila no distrito de Coimbra. Com uma gargalhada irreprimível, aponta na direção de um restaurante à beira da estrada: «O almoço com o Senhor Presidente esteve para ser aqui».
Como se tivesse nascido para uma missão especial, Fernando raramente aplica o singular: «Eu tinha escolhido este sítio porque queria mesmo que ele percebesse como é difícil a vida dos motoristas. E este era o local ideal. Nós nunca sabemos quando chegamos a casa, dormimos muitas vezes na estrada, somos assaltados e, em Portugal, é raro encontrar parques seguros.
Este aqui tem câmaras de vigilância e casas de banho onde podemos fazer a nossa higiene e os preços da comida são em conta». Estaciona no parque do Restinova, conhecido entre os motoristas como o restaurante do Amor: «Diz-se que tem quartos na zona de cima e raparigas para secar os bolsos dos motoristas».
Pouco tempo antes de Marcelo ter aceitado o convite de Fernando para fazer a viagem e conhecer os problemas do setor, uma das empregadas brasileiras desaparecera misteriosamente do restaurante e a PJ estava a investigar o caso.
Quando o motorista, uns dias antes do encontro com o Chefe de Estado, recebe a sua assessora, a ex-jornalista da SIC Maria João Ruela, e o corpo de segurança do Presidente para preparar o programa, deu-lhes conta da fama do local: «Como eles não viram qualquer inconveniente, reservei o restaurante. Só que um dia antes do encontro, a SIC deu uma nova notícia sobre a brasileira que continuava desaparecida e, à noitinha, telefonaram-me para se mudar o restaurante onde o Senhor Presidente, antes da viagem, se ia reunir com camionistas da Associação dos Motoristas do Asfalto».
Ao balcão, bebericando um café, o homem afunda-se nos seus pensamentos. O ano de 2008 provoca na sua mente um complexo de recordações agradáveis e dolorosas. Nos primeiros dias de junho daquele ano, os camionistas, em protesto contra o aumento dos combustíveis, mostravam que podiam deixar o país KO.
As estradas principais foram bloqueadas por centenas de camiões, as prateleiras dos supermercados ficaram vazias e os postos de gasolina a zeros. A história, por norma, repete-se ou então são os homens que não mudam: também dessa vez as autoridades escoltam caravanas de emergência de combustíveis, mas os camiões foram apedrejados e alguns queimados.
A 13 de junho, Fernando estava num dos piquetes de greve em Alcanena. Esse dia ainda o persegue. A dois passos de si, morria um vizinho e amigo: José Aurélio, homem de alguma idade que nunca fora dado a grandes vendavais e aderira pela primeira vez a uma greve. Estava no piquete com Fernando e tentavam impedir um dos colegas de circular. De repente, chegou o dono da transportadora que pretendia pôr o camião em marcha. Aurélio, exaltado, pendurou-se no vidro. O outro assustou-se e arrancou. Fernando viu-o cair e ser esmagado pelo pesado: «Morreu a olhar para mim. Nesse momento, jurei que não ia parar enquanto não modificasse a realidade dos motoristas».
Ao terceiro dia de paralisação daquele ano de 2008, com uma morte como pano de fundo, o protesto acabou com um acordo entre a ainda embrionária Associação Nacional de Transportadoras Portuguesas (ANTP), a Associação Nacional de Transportadores Públicos Rodoviários de Mercadorias (ANTRAM) e o Governo de José Sócrates – que então chegou a declarar que sentira «o Estado vulnerável».
Fernando, que foi acumulando razões para desconfiar da relojoaria política, faz o saldo histórico: «A maior parte das medidas desse acordo não foi cumprida. Veja que, até ao ano passado, quando a FECTRANS (Federação dos Sindicatos de Transportes e Comunicações, afeta à CGTP) negociou com a ANTRAM o novo contrato coletivo de trabalho, o nosso salário ainda estava em escudos. Há vinte anos que não éramos aumentados».
A promessa que fizera ao colega que morreu tornou uma ideia fixa e Fernando constituiu, com dois colegas igualmente descontentes que conhecera no Facebook, a Associação Motoristas do Asfalto. É através da mesma rede social que Fernando mantém os motoristas informados sobre os seus direitos, sobretudo em termos da legislação imposta pela Comunidade Europeia. A associação foi mobilizando motoristas e, em março de 2018, um ano antes da greve que abanaria o país, Fernando apostou na criação do Movimento União de Motoristas.
Convocou então um plenário no Carregado, onde conseguiu reunir mais de uma centena de motoristas, entre os quais alguns camionistas de matérias perigosas que só mais tarde formariam o sindicato que até há pouco tempo teve como principal rosto Pedro Pardal Henriques, o Sindicato Nacional dos Motoristas de Matérias Perigosas.
Baixar os braços parecia-lhe inconcebível. Fernando queria dar vapor ao movimento e lembra-se então de atrair para a sua causa Marcelo Rebelo de Sousa, que, sempre a marcar presença no palco mediático, se transformara numa personagem familiar, e envia-lhe um e-mail.
No início de setembro de 2018, através da assessora de imprensa do Presidente, teve a confirmação de que este aceitara o seu convite. O motorista, que tinha por ele uma devoção quase mítica, na sua simplicidade, escreve-lhe pela segunda vez, desta para lhe agradecer: «Não lhe vou esconder que fiquei radiante em saber que lhe iria mostrar a minha profissão, motorista de pesados de mercadorias, e que Deus o tinha posto no meu caminho (…)». Até aí desconhecedor das fraquezas congénitas do Homem, agora admite: «Na altura acreditei que ele ia fazer alguma coisa pelos motoristas. Enganei-me».
Fernando vai no segundo café, mas o cansaço não se desprega do seu olhar, como se fosse alérgico à cafeína. O tempo tem nele o efeito de uma descarga elétrica. Olha para o relógio, as horas travam-lhe o ritmo das recordações: tem de entregar a carga antes das 13h e volta à estrada. Chega à fábrica meia hora antes do previsto, mas já não há ninguém para o receber. Ali, almoça-se cedo. Faz marcha atrás. Um quilómetro depois, estaciona o camião, debaixo de uma sombra.
Com traquejo em viagens internacionais, por países onde o preço das refeições é incomportável para aquilo que ganha, Fernando aprendeu a desenrascar-se. Num pequeno fogão a gás, despacha o almoço. A conversa solta-se, as memórias conduzem-no. Três meses após a viagem com o Presidente, foi Marcelo quem o convidou para uma visita a Belém.
Corria o mês de abril e o recém-criado sindicato dos motoristas de matérias perigosas, SNMMP, dera a volta do avesso ao país que entrara quase em asfixia.
O Governo perdera o controlo da situação. Fernando, sem pressentir que se colocava numa situação vulnerável, corre para Lisboa: o Presidente quer saber o que o motorista pensa da situação. «Disse-lhe que a culpa era da FECTRANS, que ficou a renegociar sozinha o Contrato Coletivo de Trabalho Vertical (CCTV) para 2020 com a ANTRAM, que só prejudica os motoristas aceitando um salário-base inferior ao que foi proposto».
Fernando baixa a guarda
Fernando nunca teve qualquer formação política, sendo até eclético nas figuras que admira. «Gosto de Kennedy, por exemplo, e de Sá Carneiro. Não é por acaso que foram mortos». Mas fora no Partido Comunista Português que sempre votara até aí. Chegara aí por intuição, como os cavalos procuram a água, e não por obediência a qualquer cartilha. Por isso, o ressentimento com o sindicato ligado ao PCP: «Se o Cunhal fosse vivo, dava três voltas na tumba ao ver que a FECTRANS não está do lado dos trabalhadores. Votei sempre no PCP porque pensava que estavam do nosso lado. Agora, ponho lá uma cruz, para não fazer pior».
O lugar de destaque que parecera ter ganho junto de Marcelo leva Fernando a baixar a guarda. A greve terminara ao terceiro dia, com o Governo, assustado, a intermediar as partes, e a promessa entre a associação patronal e o sindicato de se sentarem à mesa para negociar. Mas o guião acabou como de costume. Um mês depois, já estavam desentendidos, a ANTRAN, que se comprometera a aumentar o salário-base dos motoristas de forma escalonada até 2022, dava o dito por não dito e era marcada nova greve. Cirúrgica: em agosto, mês de férias para a maioria dos portugueses e época alta do turismo.
Três dias antes do início da nova greve, Fernando, que desenvolvera uma afeição pelo Presidente e esperava reciprocidade, vê-se na obrigação moral de lhe enviar nova missiva. Tem o contacto da assessora de Marcelo e, via Whatsapp, combina o envio da epístola. Foi numa sexta-feira, os ponteiros do relógio assinalavam 16h38, quando a Belém chega a previsão do motorista do que poderia acontecer com a nova paralisação dos motoristas. Passado uma hora, Maria João Ruela confirma-lhe que o Presidente recebera a sua carta.
A leitura é demorada apesar do motorista não acrescentar nada de novo ao que já tivera oportunidade de discutir com o Presidente da República: «Os motoristas estão determinados a avançar com a greve se as propostas não forem aceites. Em janeiro deste ano e depois em abril, quando estive com o Senhor Presidente e conversamos sobre os problemas e dificuldades que esta profissão enfrenta, alertei também para possíveis situações se uma greve geral de motoristas fosse para a frente. O que na altura previ está na iminência de acontecer, pois após a greve iniciada pelos motoristas de combustíveis, outros motoristas identificaram-se com a luta dos colegas e decidiram juntar-se a esta luta».
Fernando, imbuído de espírito revolucionário, fazia cálculos com base em lições históricas: «Desta forma, mais uma vez, quero alertá-lo para o que poderá vir a acontecer e, como tal, gostaria de dar o exemplo do Chile ou do Brasil, 26 dias foi quanto a greve durou no Chile, o Governo caiu. Mas olhando para nós, uma greve dessas dimensões seria um desastre nacional».
Longe de imaginar que estas palavras seriam interpretadas como um incitamento à revolta, Fernando traça o cenário socioeconómico do que poderá acontecer com o prolongamento da greve: «No terceiro dia as fábricas terão de parar quer pela falta de matéria-prima como pelo não escoamento do produto acabado; centrais termoelétricas reduzirão a potência e poderá dar-se uma crise energética instalando-se o caos.
A população vai revoltar-se e muito seguramente lhe digo que está muito iminente uma revolução civil, que pode não ser tão civilizada como o 25 de Abril de 1974».
A realidade transporta-o ao presente. A seguir ao almoço, Fernando volta à estrada e entra na fábrica. À 13h45, com o sol a pique e a temperatura nos 33 graus, a desfazê-lo em água, retira a lona do camião e as traves que seguram a mercadoria e a borracha triturada é descarregada por um dos trabalhadores da fábrica.
O cérebro do motorista funciona como um arquivo que armazena a pior informação: «E tenho sorte porque, na maior parte das vezes – e apesar de ser proibido, a não ser que esteja numa adenda do contrato –, sou eu quem, sem formação, depois de conduzir horas a fio, descarrega o camião».
Continua a cronometrar o tempo como se este fosse um seu refém. Tem de seguir para outra empresa, em Arcozelo, a 16 quilómetros, para carregar de novo: «Por este andar, já não vou dormir a casa hoje». Num parque ali perto, de uma das lojas de eletrónica e eletrodomésticos da rede Rádio Popular, outros camionistas, sem local para se abrigarem, acabam por adormecer encolhidos no banco, enquanto esperam que haja gente disponível para fazer a descarga.
Fernando, que já correu mundo e pode fazer comparações, estabelece diferenças: «Já muitos camionistas morreram por terem adormecido no camião em dias de altas temperaturas. Em Inglaterra, por exemplo, há pontos de descarga com bilhar, plasmas, casas de banho e ar condicionado, claro». Adivinha que a espera vai ser longa: «Querem poupar na mão-de-obra, não saímos daqui tão cedo. E ainda tenho de fazer a distribuição da carga em cinco locais».
Presidente envia carta ao primeiro-ministro
Enquanto engana o tempo, regressa à dinâmica dos factos. Sete horas depois de ter enviado a carta a Marcelo, pelas 23h19, a assessora do Presidente envia-lhe uma mensagem: «O Presidente leu e enviou a sua carta ao primeiro-ministro». Sem que lhe tocassem as campainhas de alarme no cérebro, Fernando responde: «Obrigado, mas está tudo na iminência de parar».
E, como um espetador inocente, acrescenta referindo-se ao Governo, patrões e os dois sindicatos envolvidos: «Eu percebo as quatro partes». Fernando só veio a aperceber-se do imbróglio que se criara à sua volta uma semana depois. O Governo, prevenido, usara todas as armas para esmagar os grevistas. E, para descredibilizar mais os sindicatos, a carta de Fernando chega ao Expresso, que relata: Motorista que em janeiro transportou Marcelo escreveu um e-mail a ameaçar com uma greve que provocaria uma ‘revolução civil’.
Governo mandou para PGR e secretas. O título escondia a quem a carta fora dirigida na realidade, referindo-se apenas a uma «estrutura do topo do Estado».
A notícia que transformava o motorista num perigoso subversivo é repetida durante o dia pela SIC Notícias. Fernando estava a leste, quando recebe um telefonema e escuta uma voz conhecida. Era Marcelo a desvincular-se da fuga de informação: «Desculpe, ó Fernando, mas eu não tenho nada a ver com isso».
O Governo chegou a enviar epístola para à Procuradoria-Geral da República para que investigasse se estava em causa uma ameaça contra o Estado mas esta não precisou de tempo para pensar: a carta não passava de um mero desabafo. Independentemente das emoções, as linhas do seu rosto não se alteram. Regressa ao camião, após cinco horas de espera. Às 21h, mais de 12 horas depois de ter saído de Santarém, está de novo a entregar mercadoria em Coimbra e ainda lhe faltam quatro destinos. Passam-lhe para as mãos um porta paletes manual e é ele, desta vez, quem faz a descarga. Arrasta com ele um cansaço de quase duas décadas, como se fosse uma doença crónica. Leva com ele uma carga com o valor de mais de uma centena de milhares de euros e, receando assaltos, não quer dormir na estrada. Arranca, por isso, para local seguro. No parque do restaurante do ‘Amor’, estaciona o camião entre dezenas de outros.
Nesta sua vida de errâncias, costuma ter como companhia o ‘Faísca’, um gatinho amarelo que, hoje, para dar o lugar a outros, ficou em casa. Os animais são um conforto quando a solidão, por vezes, atinge extremos insuportáveis.
O entusiasmo com que antigamente falava do Presidente da República já não transparece: «Perdi a confiança. Nunca pensei que ele reencaminhasse a carta para o Costa, muito menos que viesse a ser investigado pela secreta. Ainda por cima, houve colegas que me acusaram do fracasso da greve, por causa da carta».
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