"Voltaria a ser da PIDE"
Depois de ter dado a sua versão sobre a morte de Delgado, o ex-inspector Rosa Casaco relatou ao Expresso, em 1998, os seus 37 anos na PIDE/DGS. Uma sucessão impressionante de segredos, crimes e violências, por onde passam figuras como Jorge Sampaio, Mário Soares, Octávio Pato, Eduardo Mondlane, Henrique Galvão, Tito De Morais, Costa Gomes. Um depoimento que ajuda a melhor conhecer o anterior regime. Rosa Casaco morreu em 2006, aos 91 anos. No dia em que passam 50 anos desde a morte de Humberto Delgado, o site do Expresso recupera uma entrevista histórica publicada originalmente a 21 de fevereiro de 1998.
Entrou para a polícia da ditadura em 1937, apenas com 21 anos, como agente praticante. Privou com quase todas as figuras gradas do Estado Novo e cruzou-se com a nata da Oposição. Durante 37 anos foi um dos operacionais mais importantes e temidos da PIDE. Soube do 25 de Abril de 1974 através de um telefonema de um amigo muito especial, o chefe da polícia espanhola: "António, sai daí rapidamente porque vais ter problemas..."
António Rosa Casaco nasceu a 1 de março de 1915, em Rossio ao Sul do Tejo (Abrantes). Oficialmente, é filho de pai incógnito.
Da mãe, Joana Rosa, diz que era "uma rapariga bonita, mas muito pobre e humilde". Ao contrário, o pai provinha de uma família abastada e viria a ser dono de uma panificação. A história, bem típica, é a "do ricaço, do cacique, que abusa das raparigas novas e bonitas", para logo as abandonar à sua sorte. O apelido Casaco foi escolhido pela mãe, que o terá ido buscar a familiares longínquos.
A condição de bastardo deixou marcas profundas. "É sempre vexatório, uma vergonha." Aos 83 anos, ainda se refere ao pai como "o gajo". "Não posso ter consideração nenhuma por ele", explica. "Nunca quis saber de mim." A humilhação foi tal que se sentiu compelido a forjar um pai, a que deu o nome de António Rodrigues Casaco, que a partir de certa altura passou a constar dos seus documentos. Um personagem inexistente. "É uma invenção minha." Enquanto os meio-irmãos estudavam, o jovem António não concluiu sequer a instrução primária. Ficou-se pela frequência das chamadas escolas regimentais, em Abrantes.
A meninice e a juventude não deixaram recordações felizes. "Tive uma infância miserável, deprimente, de extrema pobreza. Foi uma fase muito dolorosa." Começou a trabalhar com dez anos, no Rossio, como aprendiz de marceneiro, ainda antes dos militares derrubarem a I República. Aos 15, já com Salazar a afeiçoar-se ao poder, rumou para Lisboa, para casa de uma tia. Foi nessa altura, assevera, que calçou o primeiro par de sapatos. Na capital trabalhou ao balcão numa das duas leitarias do tio. Foi por esta altura que descobriu o escondido gosto pela leitura. "A primeira obra a sério de que me lembro foram Os Três Mosqueteiros."
Na idade de ir às sortes, regressou ao Rossio e alistou-se, como voluntário, no Grupo Misto de Artilharia Montada n° 24, em Abrantes. O comandante era o coronel Júlio Lourenço, que, à época, pasme-se, acumulava com o cargo de adido militar na Embaixada de Portugal em Madrid.
Em 1936, de novo civil, tentou a sina uma vez mais na capital, onde os tios o voltaram a acolher. Na vizinha Espanha rebentara a guerra civil; uma vaga de nacionalismo, soprada pelo nascente Estado Novo, inundara o país. "Fui dos primeiros a alistar-me na Legião Portuguesa. Já tinha tendência para ser das direitas!"
Admissão na PVDE e primeiro louvor Desempregado e com horizontes profissionais diminutos, lembrou-se de recorrer ao seu ex-comandante. "Pedi-lhe uma cunha, para fiscal dos abastecimentos." Azar: estava demasiado longe de possuir a escolaridade mínima. Solícito, o coronel Júlio Lourenço sugeriu a polícia do irmão Agostinho, que era, nem mais nem menos, primeiro director da Polícia de Vigilância e Defesa do Estado (PVDE), a polícia política da ditadura, criada em 1933, e a necessitar de gente nova e diligente. Aceitou. Ao concurso, apresentaram -se quatro candidatos. Em primeiro lugar ficou Artur Simões Cascas, futuro vice-cônsul em Roterdão e que "falava sete línguas". Casaco ficou em segundo lugar. Instado a declarar quantas línguas dominava, não se atrapalhou e disse duas: "Português e brasileiro." Nos exames físicos, contudo, deu cartas. "Era um atleta, tinha um físico bestial."
Admitido na PVDE em 12 de Janeiro de 1937, começou como agente praticante, ganhando "700 escudos ao mês". Após rápida passagem pela sede, na António Maria Cardoso, foi colocado no Porto. Seguiu-se a fronteira de Vila Real de Santo António. No Algarve, fez gala dos dotes de desportista e deu aulas de natação às meninas de Monte Gordo.
De novo em Lisboa, estagiou com o famoso capitão Catela, o número dois da polícia, "mas que era o seu verdadeiro cérebro". Em 1938 contribui para detectar uma tipografia clandestina do PCP, para os lados do bairro lisboeta da Picheleira. Foi o seu primeiro "troféu de caça", a merecer um louvor, datado do último dia de 1938, do punho do próprio capitão Agostinho Lourenço, que o elogiou como "um dos funcionários mais activos e prometedores desta Polícia". No dia imediato era promovido a agente de 3ª classe. Agradado com o novo pupilo, o capitão Catela nomeou-o para uma missão muito especial: correio diplomático entre Lisboa e o Governo do generalíssimo Franco. Em plena guerra civil. À partida, Casaco não possuía atributos especiais para a tarefa: "Não conhecia a Espanha nem falava espanhol - nada!" Os superiores, contudo, viram nele o agente indicado. Durante quase uma década assegurou a ligação diplomática entre o Portugal de Salazar e a Espanha de Franco. Munido de um passaporte diplomático ("era o n°13"), ia e vinha, "pelo menos uma vez por semana", de comboio.
O destinatário era o diplomata Pedro Theotónio Pereira, acreditado como agente especial - logo depois embaixador de Portugal junto do regime franquista - e que foi acompanhando a lenta progressão das forças que se haviam sublevado contra a República democrática. Armado com uma pistola Walther, de 7,65 mm, o primeiro destino começou por ser Salamanca; seguiu-se Burgos - durante algum tempo a capital dos revoltosos - e, finalmente, Madrid. Entre o chefe do Governo e o embaixador fora instalado um telefone do Estado, "directo, com n° 54". A correspondência "do presidente Salazar levava-a eu, escondida no peito, numa bolsinha especial". Dentro do envelope dirigido a Theotónio Pereira, muitas vezes ia "um outro, destinado ao próprio Franco".
Entre o correio especial e o diplomata teceram-se relações muito para além das profissionais. Quando lhe nasceu o primeiro filho, em junho de 1942, Casaco fez questão que o padrinho fosse o embaixador e ainda delfim de Salazar. O varão tomou precisamente o nome de Pedro. A mãe, era Ivone Viana do Espírito Santo e Silva, com quem o polícia se casara no dia de Natal de 1939. Natural do Porto, e ao contrário de uma versão muito difundida, a senhora de Rosa Casaco não pertence à família dos conhecidos banqueiros.
Durante alguns anos, as cartas de Salazar foram-lhe entregues pelo chefe dos serviços de segurança de S. Bento. Um dia, contudo, Salazar terá mostrado curiosidade em conhecer o disciplinado e competente enviado. "Mandou-me chamar e fez um comentário: `Não sabia que era tão novo!' Deu-me a carta para as mãos, com a recomendação de que tivesse o máximo cuidado." Mais tarde, o portador passou a receber a correspondência do próprio Salazar, "com o lacre ainda quente. Era um homem muito austero, mas gostava de mim".
Em 1943, nasceu o comboio rápido Lusitânia-Expresso, entre Lisboa e Madrid. "Começou por ser criado especialmente para o correio diplomático." A ideia parece ter partido do próprio Theotónio Pereira, "que moveu as suas influências junto das administrações da CP e da Renfe, para criar um comboio directo". Nele seguiam muitos outros emissários diplomáticos. "Íamos no Wagons-Lits. Eu ficava sempre na cabina-cama n° 13, que, estava reservada em permanência."
Uma vez, recebeu a carta de Salazar muito tardiamente, mas com instruções de que a missiva teria de ser entregue no destinatário impreterivelmente na manhã seguinte. "O comboio já tinha saído há muito do Rossio, de modo que fui num Mercedes tentar apanhá-lo no Entroncamento. Chegámos tarde. Chamei o chefe da estação, Sr. Frutuoso, e dei-lhe ordens para mandar parar o comboio em Ponte de Sor. Ele olhou para mim e fez menção de não me obedecer. Mostrei-lhe então o sobrescrito, com a letra do Salazar, e disse-lhe: `Por ordem do Sr. Presidente do Conselho, Dr. Oliveira Salazar, mande parar o comboio.' E ele mandou. O comboio ficou umas duas horas em Ponte de Sor, até eu lá chegar. "A mensagem era realmente importante: tratava -se, nada mais nada menos, que a comunicação oficial de que o Governo português decidira, finalmente, ceder a base açoriana das Lajes às forças aliadas.
Guerrilheiros fuzilados Por uma única vez, o polícia-correio foi recebido pelo generalíssimo. Foi já em plena Guerra Mundial. Na ausência forçada de Theotónio Pereira em Madrid, Salazar incumbiu Casaco de entregar pessoalmente uma carta a Franco, no Palácio do Pardo. "Ele nunca se esqueceu de mim." Com efeito, passado um ror de anos, voltaram a cruzar-se na feira de Sevilha. "Quando me viu, saudou-me amigavelmente com a mão."
As longas horas das viagens eram repartidas entre a farra e a leitura. "Lia todo o tipo de literatura, mas sobretudo romances." Grande parte da sua vasta cultura (para um homem sem estudos...) adquiriu-a no interminável vaivém entre as duas capitais.
Em Madrid, conheceu o chefe dos serviços secretos da polícia espanhola, Lisardo Alvarez Perez. "Ele podia ser meu pai - tinha uns bons 40 anos a mais do que eu... O Theotónio Pereira foi quem me pôs em contacto com ele." Quando Lisardo morreu, foi substituído por Vicente Reguengo. Entre Casaco e Reguengo cresceu uma sólida amizade, incólume durante décadas. Foi graças a essa relação pessoal com a alta hierarquia da secreta espanhola que "se conseguiu uma ligação entre as duas polícias". A confiança era grande: "Eu entrava na sede da DGS, em Madrid, com a mesma facilidade com que entrava na sede da PIDE" - a Polícia Internacional de Defesa do Estado, que sucedeu à PVDE no final da II Guerra.
Casaco chegou, inclusivamente, a prestar alguns serviços às autoridades espanholas, de que evita falar. Um deles - que diz não gostar de recordar - foi a devolução de um grupo de guerrilheiros republicanos, que haviam procurado refúgio na serra do Gerês. "Eram uns três ou quatro e tinham sido levados presos para Lisboa. Coube-me a mim levá-los numa carrinha para Badajoz, onde os entreguei às autoridades. Foram imediatamente fuzilados." Garante não ter assistido à execução dos rebeldes. "Mas ainda ouvi os tiros."
Com o fim da Guerra largou a função de correio diplomático, que lhe valera várias promoções. Agente de 1ª desde 1945, participou no concurso aberto em 1950 para chefe de brigada. "Chumbei, mas no concurso seguinte fiquei em primeiro." Ascendeu a esta categoria em 1951, com o n° 17/50. Em Lisboa, trabalhou nos Serviços Reservados, onde se dedicou durante alguns anos à actividade preferida da PIDE: a caça aos comunistas (ver noutro local). Seguiu-se a chefia do posto de fronteira no aeroporto da Portela, onde conheceu Humberto Delgado. Em 1957, foi destacado para os Açores, onde montou a sede da delegação de Ponta Delgada e os postos de Angra do Heroísmo, Lajes e Santa Maria.
Em julho de 60, conseguiu a promoção a subinspector - categoria até então preenchida por oficiais milicianos recrutados na GNR. "Fui o primeiro inspector a vir de baixo e a fazer toda a carreira." Ascensão simultânea tiveram Fernando Gouveia e Joaquim Monteiro, muito mais velhos.
Sampaio sob escuta Em abril de 1962, Salazar promoveu uma profunda remodelação no topo da PIDE. Afastado o coronel Homero de Matos, o cargo de director-geral foi ocupado por Fernando da Silva Pais, um major vindo da Comissão Reguladora do Comércio do Bacalhau. Silva Pais apressou -se a nomear para subdirector-geral Agostinho Barbieri Cardoso, que anos antes se incompatibilizara com Homero de Matos, a ponto de ter deixado a polícia. O regressado Barbieri - que nunca mais deixou de ser o homem-forte da PIDE - procedeu a um sério reajustamento na hierarquia, com destaque para a nomeação de Álvaro Pereira de Carvalho para director da poderosa Secção Central. Rosa Casaco foi dos que mais beneficiou desta alteração na cúpula. Logo em Julho de 1962, ultrapassando as prioridades da escala de antiguidades, foi promovido a inspector, encarregado da Intercepção Postal, uma das áreas nevrálgicas de actuação. Um dos principais operacionais da PIDE, esteve envolvido durante vários anos na chamada "Operação Outono" - ou "operação de cerco e aniquilamento do general Humberto Delgado", como lhe chamaram Alfredo Caldeira e Santos Carvalho, os dois principais investigadores do crime.
Após a morte de Delgado, em fevereiro de 65, manteve -se na Intercepção Postal. Nega, porém, que tenha dirigido as escutas telefónicas - "nunca tive responsabilidades nessa área". O que não significa que não tivesse acesso a elas. "Lia muitas vezes os relatórios das escutas." Incidiam sobretudo em personalidades da Oposição, mas também do regime. Os membros do Governo, porém, "nunca estiveram sob escuta", afiança. O que não obsta a que não tenham sido vigiados antes ou depois da sua passagem pelo poder. Admite tal ter acontecido com Adriano Moreira, ex-ministro do Ultramar, e Craveiro Lopes, ex-Presidente da República. Sobre figuras da Oposição, cita o actual Presidente, Jorge Sampaio: "Esteve sob escuta telefónica depois de ter saído da Universidade, ainda jovem advogado."
CIA e secreta espanhola Na António Maria Cardoso, ocupava uma sala contígua à de Silva Pais. "Era o gabinete mais bonito da polícia, com frescos no tecto." No rescaldo do assassínio de Delgado, as suas relações com Barbieri e Pereira de Carvalho foram-se degradando - com efeitos que lhe seriam nefastos.
No âmbito da repartição de contactos a nível internacional coube-lhe, com toda a naturalidade, a Espanha. "Tinha acesso directo ao número um e ao número dois da polícia espanhola" - Eduardo Blanco Rodriguez, director- geral da DGS, e Vicente Reguengo, comissário-chefe da Brigada Política e Social. Conheceu igualmente Carlos Arias Navarro, o chefe da DGS que viria a ser, sucessivamente, presidente da Câmara de Madrid, ministro do Interior e primeiro-ministro do regime de Franco. "Foi grande amigo meu. Era um homem brilhantíssimo."
Esta proximidade gerou a suspeita e a acusação, muito difundidas, de que trabalharia para os serviços espanhóis - um libelo que classifica de repugnante. "Tive as melhores relações com os serviços secretos espanhóis, muita amizade com os seus dirigentes, mas quanto a inconfidências em detrimento da política do meu país, nunca!" A colaboração entre os dois serviços era "mútua, porque o inimigo era o mesmo", mas ela "funcionou sempre mais a nosso favor do que o contrário".
Barbieri Cardoso era quem tinha mais contactos internacionais: Itália, Bélgica e, sobretudo, França. Quanto à CIA, Casaco é bem mais cauteloso do que quando fala de outros serviços secretos. Haveria antenas da CIA na PIDE? "Claro que havia." O único nome que avança é o do então inspector Abílio Alcarva. "Sabia-se que trabalhava para a CIA." De Pereirá de Carvalho, nada adianta. O próprio Casaco chegou a ter contactos assíduos com o chefe da base da CIA em Portugal, Rudolph Edward Gomez (que esteve em Lisboa entre 1969 e 1973, como adido económico). Travaram conhecimento quando este americano de sangue asturiano requereu o auxílio da PIDE "para identificar o autor de uma carta ameaçadora" enviada à Embaixada dos EUA. O interesse mútuo deu origem a "relações de amizade, com permuta de prendas pelo Natal e de jantares em minha casa e no apartamento dele", no aristocrata bairro da Lapa. A "amizade desinteressada 'e genuína" com Gómez manter-se-ia por pp muito anos. A ponto de, ao passar por Nova Iorque depois ido 25 de Abril, Casaco ter sido surpreendido com um inesperado convite do americano: "Para jantar no seu clube privado - `The Key', na Rua 57 Este."
Em África operou pontualmente. Para além de algumas idas a Moçambique, viajou até Dakar, Leopoldville, Brazaville, Monróvia. Fazer o quê, não conta - para além do clássico controlo dos informadores, que se escusa a identificar.
Apanhado no "Escândalo Matesa" Em finais da década de 60 esteve à beira de ser colocado em Angola. Mexeu-se o suficiente para o evitar, mas não impediu a transferência para o Porto, como subdirector. Uma despromoção, para a qual muito contribuiu o seu envolvimento no famoso "caso Matesa".
Tudo começou em 1969, quando o banqueiro e velho amigo Jorge Farinha Piano o abordou. Presidente do Banco Viseense, Piano estava em sérias dificuldades financeiras, fruto de um arriscado negócio de tráfico de divisas, em parceria com o grupo industrial Matesa - Maquinaria Têxtil del Norte, S. A., com sede em Barcelona. Com a colaboração de "uma organização especializada em contrabando de divisas, estabelecida na Galiza", Piano recolhia pesetas em Barcelona, cambiava-as no seu banco por dólares, que eram depositados em bancos norte-americanos, obtendo uma suculenta margem de lucro.
Em princípio a transacção tinha cobertura legal, uma vez que "não existiam, na época, quaisquer restrições quanto à entrada de divisas no nosso país". Só que Jorge Piano ter-se-á entusiasmado em demasia e "passou a efectuar esses depósitos com alguma antecedência ", tendo, a dado passo, ficado "credor de muitos milhões de pesetas", já que os contrabandistas galegos não chegavam para as encomendas. Em pânico, Piano recorreu aos bons ofícios do amigo inspector. "A amizade que nos unia e os favores que lhe devia levaram-me, cândida e infantilmente, a ajudá-lo." Falou no caso a três subordinados "da máxima confiança", que sabia atravessarem graves dificuldades económicas. Todos eles alinharam, "a troco de uma comissão choruda", em ir até à Catalunha e trazer as necessárias pesetas. "Fizeram várias viagens, sempre em carros próprios, - solucionando os seus problemas e os do banqueiro."
O negócio - que envolveu a exportação ilegal para o estrangeiro de 5400 milhões de pesetas! - acabou por ser descoberto pelas autoridades espanholas. Em maio de 1970, um tribunal condenou o patrão da Matesa, Juan Vila Reyes, e 47 colaboradores. Ao empresário foi fixada uma multa de 1600 milhões de pesetas e uma pena de três anos de prisão. Igualmente condenados, mas à revelia, foram dez estrangeiros, dos quais quatro portugueses: o banqueiro Jorge Piano (que levou três anos de prisão) e os três funcionários da PIDE (um ano cada). Sentindo -se acossados, os polícias pediram protecção a Casaco, que resolveu assumir "a responsabilidade total" do caso. Disso mesmo deu conta à direcção da PIDE. "Afirmei-me culpado e, consequentemente, assumia todo o ónus inerente a essa situação, inclusive incorrendo na pena de demissão, sob condição de que os meus funcionários ficassem ilibados." Silva Pais e Barbieri aquiesceram. O caso subiu a Gonçalves Rapazote, o ministro do Interior que tutelava a DGS (Direcção-Geral de Segurança, a designação que a PIDE tomou em 1969) e que "queria correr comigo ". O resultado foi um processo disciplinar, instaurado em 21 de maio de 1970 a Casaco e aos três subordinados. À falta de provas, os processos foram arquivados. Mas nem por isso deixaram de ser castigados: os três agentes foram transferidos para Moçambique e o inspector para o Porto.
Mostrando-se seriamente pesaroso ("É a página mais negra da minha vida! "), Casaco faz questão de esclarecer que não cometeu "qualquer crime de corrupção". E não recebeu "qualquer quantia em dinheiro" por parte de Jorge Piano.
O caso revelou-se fatal para as suas ambições. Apanhado em flagrante e já sem a cobertura de Salazar, os seus adversários na PIDE não perderam o ensejo. "Foi argumento que eu dei, estupidamente, aos "gajos" - como se lhes refere. Preterido outrora na promoção a inspector-adjunto e na nomeação para director de serviços, acabou por ser chutado para o Porto, como subdiretor da delegação. Tomou posse em maio de 1971, dedicou-se aos negócios bolsistas e imobiliários. "Ganhei muito dinheiro na Bolsa, muito mesmo." Fez sociedade com Manuel Alves Aldeia, entre outros empresários e especuladores.
Um dos últimos negócios que tinha em mãos era a venda de um terreno no Campo Grande (em Lisboa), onde hoje está o Hotel Radisson. No livro O Caso Delgado - Autópsia da Operação Outono estimava -se a sua fortuna, à data da revolução dos cravos, em mais de 100 mil contos. Confrontado, reage com uma gargalhada: "É absolutamente exagerado. Nunca tive tanto dinheiro na vida."
"Soube do 25 de Abril por um telefonema" Os serviços secretos foram surpreendidos pelo 25 de Abril. Há muito que corriam rumores sobre conspirações dos oficiais intermédios. O frustrado golpe das Caldas da Rainha, em 16 de março de 1974, devolveu a "tranquilidade" à DGS. "Até eu acreditei que a coisa não se repetiria." Puro engano. A revolução saiu vencedora, entre outras razões, "por ineficácia" dos serviços secretos. Apontados a dedo são Pereira de Carvalho e Barbieri Cardoso.
A primeira notícia sobre o golpe foi-lhe dada pelo chefe da policia de... Espanha. "Pouco depois da meia-noite" de 25 de abril: "O meu amigo Vicente Reguengo telefonou-me - `António, sai daí rapidamente porque vais ter problemas.' Só de madrugada é que percebi que a coisa tinha um aspecto grave." A delegação da DGS no Porto estava instalada na Rua de Angra do Heroísmo. Ao princípio da tarde recebeu de Lisboa ordens superiores "para abrir fogo sobre a multidão". Quem as transmitiu? "O Silva Pais, pelo telefone, directamente para mim. Ponderadamente, não aceitei as ordens. Fiz mesmo o contrário: mandei recolher as pistolas-metralhadoras e fechar as janelas."
O edifício foi ocupado no dia 26 pelos militares revoltosos, chefiados por um tenente-coronel - "creio que é agora um general muito conhecido". Depois de "longos conciliábulos, consegui convencer o oficial que nos devia libertar, não na cidade do Porto, mas nos arrabaldes, longe da perseguição de elementos comunistas que a todo o transe desejavam linchar -nos". Quase uma centena de funcionários da dissolvida DGS foram metidos em dois camiões militares, protegidos por um carro blindado "Chaimite", e tomaram uma estrada secundária em direcção a Braga. Perseguidos por um número crescente de viaturas civis, e "temendo o pior, solicitei ao oficial subalterno que comandava a coluna que atravessasse o `Chaimite' na estrada", por forma a barrar- lhes o caminho. A manobra resultou. Os camiões militares continuaram, permitindo, mais à frente, que os pides saltassem dos camiões em andamento, escapulindo-se no meio dos pinhais que rodeavam a estrada. "Fui o último a saltar, acompanhado do meu secretário. Antes, e a pedido de um alferes, dei-lhe o meu `crachat' da DGS, como recordação."
De uma pequena fábrica, estabeleceu contacto telefónico com a mulher. O ponto de encontro foi a Póvoa do Varzim, de onde seguiu até Viana do Castelo: "No meu carro, um Lancia Coupé 1300, de dois lugares, que andava desalmadamente. Se fosse o caso, ninguém nos apanhava."
A noite foi passada no Hotel Rali. Na manhã de 27 tomou a estrada para Chaves e passou "tranquila e legalmente a fronteira", em Vila Verde da Raia. Ao preencher a respectiva ficha, na alínea destinada à profissão, escreveu "retirado". Em Leon dormiu no Parador de S. Marcos, e no dia seguinte alcançou, sempre de carro - e não de helicóptero, como chegou a ser noticiado -, a capital espanhola.
Em Madrid dirigiu-se logo à sede dos serviços secretos, na Puerta del Sol, "um edifício que não tinha segredos para mim". Avisado, foi prontamente acolhido pelo velho e fiel amigo Vicente Reguengo, "que me prestou todo o auxílio necessário. Ele e o coronel que chefiava os serviços secretos do Exército". Ficou instalado, com a mulher, numa residência pertencente à DGS espanhola.
A 6 de Junho partiu para a República Dominicana, com um documento em nome de António Roque Carmona. "Era um passaporte português", um dos vários em branco com que se municiara em Portugal - "tive o cuidado de me prevenir".
A escolha desta república caribenha foi ditada pelas relações de amizade que estabelecera com o ex-Presidente Hector Trujillo, um ditador latino-americano que nos anos 60 pedira asilo a Portugal. O regime dominicano recebeu-o de braços abertos e facilitou-lhe a vida: "Incluindo o acesso a alguns negócios que me permitiram alguma tranquilidade financeira." Entre os seus "protectores", faz questão de mencionar o chefe dos serviços de segurança, os ministros da Defesa e dos Estrangeiros e o próprio Presidente da República, Joaquim Balaguer.
Seis meses depois deixou a República Dominicana com um passaporte daquele país, passado em nome de Filipe Tavares. "Não obstante ter vivido em ambientes de vida dura, também era - e sou - um sentimental, tendo saudades de toda a minha família." Quando chegou a Madrid, no Natal de 1974, exibia uma barba grisalha, que não mais haveria de cortar. Nessa altura, já o seu nome estava indiciado entre os assassinos de Delgado. Apesar disso, as coisas não estavam muito diferentes: "As autoridades espanholas continuaram a considerar-me e a aceitar-me como um amigo de sempre."
Há quem o referencie como tendo colaborado com o ELP e o MDLP, organizações de extrema-direita que operavam em 1975 a partir de Espanha contra o regime implantado em Portugal. Casaco nega. "Em Madrid não fazia nada. Vivia dos rendimentos obtidos em S. Domingos." Também nega a maior parte das acusações, feitas em jornais e livros, que o deram como contrabandista, traficante de divisas, armas, droga: "Tudo falso. É claro que os autores não provam nada. Trata-se de um arrazoado de calúnias infames, lançadas sobre um homem exilado no estrangeiro e que não se podia defender. O assunto mereceria ir, um dia, a tribunal."
Suborno no Brasil Durante o chamado "Verão Quente" de 1975 - que faz gala de classificar de "Era do terror" - dois dos três filhos emigraram para o Brasil. O pai juntou-se-lhes em 25 de outubro. No Serviço de Fronteiras do Rio de Janeiro serviu-se de "um punhado de dólares e cruzeiros" para subornar dois agentes e trocar a papelada dominicana por "um documento oficial comprovativo de que tinha entrado legalmente no Brasil". Munido desse papel, deslocou-se ao consulado-geral de Portugal, onde se registou - com uma falsa identidade - e obteve documentação portuguesa: "Para mim e para minha mulher e, logo a seguir, com a ajuda dos referidos agentes, obtive a Carta 19, de residente."
Instalado, "com esta enorme facilidade", no Brasil, viveu sucessivamente no Rio, em Fortaleza e em S. Paulo.
Beneficiando da experiência adquirida em Portugal, dedicou-se ao ramo imobiliário. No arranque contou com a ajuda financeira de alguns amigos, entre os quais Jorge Piano que também se tinha mudado para o Rio, onde dirigia uma casa bancária: "Não teve a mais ligeira hesitação em financiar os negócios que eu, então, iniciava" - uma retribuição pela ajuda dada no "caso Matesa".
"Consciência tranquila" Atualmente, reside "algures no estado de São Paulo", numa vivenda, na companhia da mulher ("com quem vivi sempre em boa harmonia") e não muito longe de dois filhos.
Acompanha Portugal pela RTP Internacional e continua a ler muito, ainda que cada vez mais selectivo: "Só ensaios, memórias e biografias." Romances já não, "tirando as novelas do Camilo", ou não fosse um "camiliano" indefectível... Queixa -se de dificuldades financeiras, mas todos os seus gostos, escolhas e atitudes - nos restaurantes que frequenta, nos vinhos que escolhe, na roupa e no "Rolex" que usa, no tabaco que fuma - parecem desdizê-lo.
Se houvesse uma máquina do tempo que lhe permitisse voltar para atrás, Casaco garante que "voltava para a PIDE outra vez". A Badajoz, ao encontro de Delgado, é que já não iria. "Nunca! Há coisas de que eu me arrependo - e essa é a principal. Não há o direito de tirar a vida a ninguém. Além de que foi uma estupidez" do ponto de vista político. "Outro erro" de que se penitencia é o envolvimento no "caso Matesa": "A minha atitude foi canalha e indigna. Ainda hoje sofro, envergonhado, por ter tomado tal posição. Arruinou a minha vida." Estas foram duas das "inúmeras faltas" que assume ter cometido durante a vida. "Se não fui nenhum santo, também não fui nenhum monstro, como me tentaram pintar."
Declarando -se católico praticante - "desde que me conheço" -, António Rosa Casaco mostra-se um homem sereno. "Morrerei de consciência tranquila, designadamente em relação ao único crime de que me acusam - e de que não fui nem o autor material, nem o mentor. Nada me pesa, excepto os desgostos da vida e a pulhice dos homens.
No mundo ligado à arte da fotografia, Rosa Casaco é um nome familiar. São dele, indiscutivelmente, as melhores imagens do homem que esteve à frente dos destinos de Portugal durante 36 anos. Imagens divulgadas em dois celebrados livros: Salazar na Intimidade, de 1954, um álbum de fotografias editado por Frederic P. Marjay, e Férias com Salazar, da jornalista -francesa Christine Gamier, com tradução para português de Barbieri Cardoso e chancela da Companhia Nacional Editora...
Este último é um dos textos mais apologéticos e eficazes do salazarismo, visto por uma sensibilidade estrangeira e feminina. De antologia é a foto da loira e sensual jornalista, ao lado do maduro e grisalho ditador, numa escada de pedra junto a um tanque, em cujas águas paradas se reflectem. "Foi uma foto muito atrevida para a época, devido às saias curtas, que deixam ver as pernas. Eu perguntei ao Salazar se a podia publicar, e ele autorizou. " O livro é o resultado de longos dias de conversa entre a jornalista e o governante. Casaco, que acompanhou parte da produção - como fotógrafo e não tanto como polícia -, está certo que "a parte mais política foi o Salazar quem a escreveu".
Nos anos 50, Salazar e Christine teceram uma relação amorosa, descrita com minúcia por Franco Nogueira, o biógrafo do ditador. Será que Salazar e Christine chegaram a ser amantes? "Suponho que sim", diz Casaco-fotógrafo. Uma resposta que só não é uma certeza "porque nunca fui travesseiro ". O mesmo não diz das tão propaladas relações do presidente do Conselho com a governanta Maria: "Isso é uma infâmia! Salazar nunca desceria tão baixo, não se rebaixaria a ir para a cama com uma criada. As relações deles eram as de patrão e criada. Ele era um aristocrata, íntegro em tudo."
A fotografia uniu para sempre o ditador e o polícia, o qual, no decorrer de uma das suas visitas clandestinas a Portugal - já procurado pela Polícia - fez questão de o homenagear, no cemitério de Santa Comba Dão. O Arquivo Salazar ainda conserva um cartão pessoal do inspector, certamente a acompanhar algumas fotografias, em que lhe deseja "os melhores cumprimentos". Por outro lado, não havia um dia de S. Martinho que Salazar não lhe enviasse "um saco de castanhas e um garrafão de vinho - ele odiava a Água-pé, que considerava uma adulteração".
Rosa Casaco descobriu a fotografia em 1942, em circunstâncias impossíveis de esquecer. "Quando nasceu o meu primeiro filho, pedi ao Amadeu Ferrari uma máquina para lhe tirar umas fotografias. Amadeu Ferrari, um velho amigo, pai de Nuno Ferrari (o falecido repórter de "A Bola"), era fotógrafo profissional e dono da afamada Casa Alvarez, na esquina da Rua Augusta com a Rua da Assunção. "Foi ele quem me ensinou a fotografar." A primeira máquina foi uma Rolleiflex 6x6.
A simples curiosidade deu lugar à paixão. Em casa, montou um laboratório fotográfico, onde nada faltava. "Trabalhava com o meu amigo Jaime de Sousa Marques, que era juiz da Relação e que era uma espécie de ajudante. As vezes, ficávamos no laboratório até de madrugada, a ouvir Beethoven." Passou a concorrer a tudo quanto fosse concurso, em Portugal e no estrangeiro - começando pelo Salão Internacional de Fotografia de Lisboa. Durante anos, amealhou um sem-número de prémios, taças, medalhas. A coroa de glória foi a inclusão no Anuário de Fotografia de Boston, de 1952, classificado em 12° lugar no "ranking" dos melhores fotógrafos do mundo.
Posta por várias vezes ao serviço da Polícia, a sua aptidão para a fotografia foi - e é - o seu principal "hobby". Inesquecível foi a visita do Papa Paulo VI a Fátima, em maio de 1967, que teve a oportunidade de fotografar com todo o detalhe. "Estive, com a minha mulher, ao lado dele e do Salazar", no encontro no santuário. A única cópia que terá vendido à Imprensa foi a foto de família de Salazar com todos os seus ministros, aquando da comemoração dos 25 anos da sua entrada no Governo. A foto viria a ser publicada emi968 pelo semanário francês "Paris Match", que "ampliou a parte central, onde se via Salazar em primeiro plano e, logo atrás, Marcello Caetano" - como quem diz: aqui estão o primeiro e o segundo homem do regime.
Com a sua velha Pentax de estimação, Rosa Casaco continua a fotografar - "sobretudo os netos, quando lá vão a casa ou durante as férias". Ao observar os repórteres de hoje a trabalhar, não se furta a uma observação crítica: "Eu nunca fiz batota! Posso garantir que, nas fotografias dos dois livros, não houve nada de preparado. Nem o Salazar o permitiria..."
Jornalista foi o disfarce preferido de Rosa Casaco. Em 1961, quando foi ao Brasil ao encontro de Henrique Galvão, viajou com um passaporte da Guatemala, emitido em nome de Roberto Vurrita Barral, no qual fora averbada a profissão de "periodista". Levou tão a peito essa condição que decidiu entrevistar o próprio Galvão "para um hipotético jornal sul-americano - não me lembro do nome que dei, inventei um qualquer". A entrevista decorreu na sede do jornal "Portugal Democrático", "num último andar da Avenida Paulista". Casaco/Barral não levantou suspeitas, visto que dominava perfeitamente o castelhano. O "jornalista" saiu de lá agradado, já que o destemido capitão lhe falou "da sua vida revolucionária e do assalto ao `Santa Maria'"; quanto ao polícia, saiu a chuchar no dedo, uma vez que Galvão "nada revelou quanto aos seus futuros planos, nomeadamente o `caso' do avião da TAP".
Quatro anos, depois, quando se tratou de ir ao encontro de Delgado, em Badajoz, Casaco retirou da gaveta o passaporte do "periodista" Roberto Vurrita Barral. A brigada por si chefiada integrava um outro "jornalista", identificado como Filipe Garcia Tavares, que era, nem mais nem menos, que o chefe de brigada Agostinho Tienza. Completavam a equipa um "advogado " (Ernesto Lopes Ramos) e um "industrial "(Casimiro Monteiro).
Depois do 25 de Abril passou a colaborar assiduamente com jornais do Rio de Janeiro - não tanto como jornalista, mas mais como colunista. Durante alguns anos escreveu nos jornais da colónia lusa - "Mundo Português" e "Portugal em Foco" - vários artigos de opinião, com o pseudónimo de António de Castro ou, mais simplesmente, De Castro. Uma vez, em conversa com Marcello Caetano, na sua casa do Rio, este ficou "muito surpreendido ao saber que o jornalista com quem dialogava era o inspector Rosa Casaco". Caetano invectivou o colunista acerca de algumas opiniões emitidas sobre a forma como conduzira o Governo. "Manifestei-lhe a minha lealdade ao anterior regime" e à sua própria pessoa. A partir daí, De Castro deixou "de ser tão cáustico" para com Marcello "como o eram os `salazaristas'" da diáspora portuguesa.
Em dezembro de 1996, quis saber com exactidão qual a sua situação judicial. Voltou a disfarçar-se de jornalista, tendo telefonado do Brasil para o Tribunal Militar de Lisboa. A informação foi dada por um tenente que confirmou que o mandado de captura contra Rosa Casaco se mantinha válido...
Como muitos agentes da PIDE, Rosa Casaco vigiou, perseguiu, prendeu, interrogou, torturou. As principais vítimas foram os quadros do clandestino PCP, o partido que mais dores de cabeça deu à ditadura.
É virtualmente impossível calcular o número de presos ouvidos por Casaco. Foram seguramente muitas dezenas. Os interrogatórios tinham lugar, norma geral, no terceiro andar da sede, à Rua António Maria Cardoso. Inquirido sobre a forma como conduzia as sessões, Casaco fala pausadamente, pesando o valor de cada palavra: "Tenho de dizer a verdade. Obtive deles confissões com o tal sistema de tortura chamado `estátua', que consistia em não dei dormir os presos. Era um sistema adoptado e que, evidentemente, não foi inventado por mim. Era a única tortura que se fazia. Era uma norma, aplicada aos mais responsáveis, do Comité Central. Eram agentes que faziam esses serviços; eu só fazia os autos."
Um dos torturados foi Octávio Pato, dirigente histórico do PCP. É o próprio Casaco quem toma a iniciativa de o mencionar, acrescentando que lhe deu "uma bofetada". Pato foi detido a 15 de dezembro de 1961, quando se deslocava de automóvel a caminho da Amadora. "Nesse mesmo dia assaltaram a casa clandestina em que eu vivia", recorda Octávio Pato. "Prenderam a minha mulher, Albina Fernandes, e dois dos meus filhos, a Isabel, com seis anos, e o Rui, com dois, que ainda estiveram mais de duas semanas em Caxias antes de serem entregues aos meus pais." Pato teve o primeiro contacto com Casaco pouco depois de chegar à sede da Policia. "Com um gesto brusco, arrancou-me com força o cinto e os botões das calças." O efeito produzido é sempre o mesmo: uma "situação humilhante" para o preso, forçado a ter que segurar as calças com as mãos. Nas semanas seguintes, foi submetido ao que, na gíria policial, tinha a designação de "interrogatórios contínuos" - e que os detidos chamavam, com mais propriedade, de "tortura do sono". Foram duas sessões intermináveis. Conta Pato sobre a primeira: "Estive onze dias e onze noites sem dormir, de que resultaram alucinações tremendas, visuais e auditivas", mas sem outro tipo de violências. Após um intervalo de uma semana, seguiu-se nova sessão, de sete dias. "Foi aqui que entrou o Rosa Casaco", acusa Pato.
A 19 de Dezembro, quatro dias depois da prisão, uma brigada da PIDE baleou mortalmente o pintor comunista Dias Coelho. O episódio mereceu um manifesto da Comissão Executiva do Comité Central do PCP, datado de 13 de fevereiro de 1962, que também denunciava as torturas infligidas a Pato. Um exemplar do manifesto foi exibido pelo polícia perante o prisioneiro. Casaco terá desafiado o dirigente do PCP a confirmar a prática da tortura. Ao que este terá respondido que a tortura do sono não deixava de ser uma violência. A resposta, explica-a Casaco: "Dei-lhe uma bofetada. Foi um gesto de indignação, porque o partido dizia que ele estava a ser vítima de tortura, o que não era verdade. Ele estava a ser atendido com toda a consideração, devido à sua categoria."
As duas versões separam-se irremediavelmente quanto ao grau de violência empregue. Segundo Octávio Pato: "Ele começou à chapada mas com bastante força, a que se juntaram outros agentes, de tal modo que caí ao chão." Casaco, por sua vez, jura que "foi só uma bofetada". Confrontado com esta versão "soft", Pato não tem dúvidas: "Há coisas que nunca se esquecem na vida - e esta é uma delas. Lembro-me perfeitamente do que lhe disse: `Jamais me esquecerei que foi você a primeira pessoa que me bateu desde que sou homem.' A resposta foi uma nova remessa..." O candidato comunista às presidenciais de 1976 acrescenta: "Levei porrada várias vezes durante sete dias - e quem começou foi o Rosa Casaco. Fiquei com o corpo cheio de negras e com a boca em tal estado que, durante dias, só consegui ingerir líquidos."
Defendido pelos advogados Luís Saias e Mário Soares, Pato viria a estar nove anos preso. A mulher cumpriu seis anos de prisão, tendo-se suicidado em 1969 (já em liberdade). O dirigente do PCP deixou a prisão em novembro de 1970. No ano seguinte foi observado numa clínica na Crimeia, na URSS. Um exame radiológico assinalou um traumatismo craniano. "Foi certamente provocado por uma qualquer queda, durante a tortura do sono, mas de que não me apercebi na altura."
Não fora a primeira vez que Casaco violentara um preso. Já em 1939 colaborara activamente numa agressão. A ponto de lhe ter sido instaurado um processo disciplinar, pois "não só não evitou, como lhe cumpria, que fosse agredido na sua presença um preso que estava confiado à guarda do piquete, como ainda secundou e excedeu a atitude iniciada". O Conselho de Disciplina da ainda PIDE resolveu, por unanimidade, punir Casaco com "quatro meses de suspensão de exercício e vencimentos" - uma sanção invulgarmente pesada.
Vinte anos depois, o já subinspector Casaco assinou uma "Determinação" sobre "as regras mais elementares de tacto e de compostura" a ter nos interrogatórios. O texto, de 22 de janeiro de 1962, destinava-se alegadamente a pôr cobro a alguns excessos. Na sua extrema ambiguidade, está longe de desencorajar a violência, bem pelo contrário. No ponto 1, estipula que as perguntas "terão de ser feitas continuamente ao interrogado e até esclarecimento dos factos em que está incriminado". Logo a seguir: "O agente tem que manter sempre uma atitude digna, podendo, no entanto, enveredar para uma atitude mais ligeira ou para uma mais severa, se isso for necessário." E o ponto 3 diz que o agente "não deve afrouxar o interrogatório, pois terá que o manter activo durante o seu período de serviço".
Manuel Garcia, num trabalho publicado no Expresso (7/1/1977), considera esta declaração "um dos poucos documentos que permite provar, sem margem para dúvidas, a prática de tortura pela PIDE". Casaco tenta justificar-se: "Talvez tenha assinado (o documento), mas foi escrito pelo Boim Falcão, que era quem dirigia a investigação. Não é linguagem minha." Do volumoso "processo Delgado", consta uma lista de 18 pessoas que, segundo a acusação, terão sofrido maus tratos por parte de Casaco. Confrontado com a lista, Casaco comenta: "São coisas inventadas por quem queria ser mártir!" A maioria dos nomes parece nada dizer-lhe. Exceptuam-se alguns, por sinal os mais conhecidos, pelo papel que tiveram na vida política após o 25 de Abril.
É o caso, por exemplo, do já falecido Francisco Miguel, seriamente violentado na sequência da detenção, em janeiro de 1938. Casaco lembra-se perfeitamente de Miguel, mas desmente que tenha participado nas agressões. "Era um fanático; ficava danado quando a gente lhe chamava `Chico Sapateiro'. Mas nessa altura eu era um rapazote, um simples agente de 3ª classe, sem experiência para esse tipo de serviços." O polícia e o comunista voltaram a encontrar-se quando este foi preso pela quarta vez, em julho de 1960. No seu livro Das Prisões à Liberdade (Edições Avante!, 1986), Miguel descreve o encontro com Casaco, em Elvas. Casaco confirma: "Fui a Elvas para confirmar a sua identidade. Era mesmo o `Chico Sapateiro'..."
Outro dirigente comunista que integra a lista é Domingos Abrantes. "Nunca tive nada a ver com ele", diz Casaco. "Não é bem assim", responde Abrantes. Preso em 12 de agosto de 1959, na Venda Nova, foi sujeito a várias sessões de tortura do sono. "Numa delas apareceu o Rosa Casaco a fazer o interrogatório." As agressões viriam mais tarde, cometidas pelo famoso Mortágua.
Da referida lista faz parte igualmente António Borges Coelho, actual professor catedrático na Faculdade de Letras de Lisboa. "Tenho ideia desse nome", admite Casaco. "Mas fui eu que o prendi?!" A resposta é do próprio Borges Coelho: "Fui preso por duas brigadas, uma das quais chefiada pelo Rosa Casaco." Foi no dia 3 de janeiro de 1956, numa casa clandestina. Foi encurralado. "Dei os três maiores gritos da minha vida: `Viva a liberdade! Viva a democracia! Abaixo a PIDE!'" O futuro historiador foi sujeito "à tortura da estátua. O Rosa Casaco esteve presente nos interrogatórios, mas não teve papel relevante. Borges Coelho foi condenado, tendo cumprido seis anos e meio de prisão.
Dos 18 presos, o Supremo Tribunal Militar (STM) deu como provados os factos relativos a dois: Manuel Cabanas e Vasco dos Santos Martins. Militante do PS depois do 25 de Abril, o já falecido Manuel Cabanas foi insultado por Casaco, que deu ordens para que "fosse `metido no segredo' (internado numa cela de isolamento) em Caxias, o que se efectivou durante sete dias consecutivos". Casaco recorda-se de Cabanas, mas desmente os factos imputados pelo Supremo: "Eu não tinha autoridade para isso." Quanto a Vasco Martins, os juízes confirmaram a prática de "interrogatórios prolongados" durante uma semana, período em que foi várias vezes insultado por Casaco. Este, claro, diz não se lembrar de Vasco Martins.
Um nome que não consta da lista do "processo Delgado" - para além do de Octávio Pato - é o de José Vitoriano, que décadas depois viria a ser vice-presidente da Assembleia da República. É o próprio Casaco quem o menciona. "Prendi-o pessoalmente, em Torres Novas. E creio que também o interroguei." Nega, porém, que o tenha torturado.
A semelhança do ocorrido com a morte de Delgado, o ex-inspector considera-se uma vítima. Por um lado, dos próprios ex-colegas da PIDE. "Havia agentes que", durante os interrogatórios, "chamavam-se por outros nomes. Quando soube, fiquei indignado." Esta é uma das explicações adiantadas para que o seu nome tenha surgido associado a tantos casos de violência. Outra explicação que aponta reside "nos comunistas", que classifica como seus "eternos inimigos". "Fui inimigo feroz do partido, que nunca me perdoou, não olhando a meios para me difamar." O que, a seu ver, fundamenta "todas as falsidades e calúnias. Já lá dizia o Lenine: `Difama que alguma coisa fica...'"
"Nunca o vi na vida", afirma Rosa Casaco. Ainda assim, não deixou de estar envolvido nas operações tendentes à localização de Álvaro Cunhal, após a célebre fuga de Peniche, a 3 de Janeiro de 1960. A PIDE perdeu a pista do líder do PCP, que conseguiu atingir Paris a partir de Trás-os-Montes. A polícia conseguiu, no entanto, recuperar uma parte do dinheiro "dado ao António Alves, o soldado da GNR que colaborou na fuga do Cunhal", e a quem o PCP terá concedido "500 contos ou mais". Desse montante, "apreendemos 200 contos, em casa de uma irmã desse guarda, que morava na Pontinha e que estava casada com um outro soldado da GNR". Uma suspeita levou Casaco e a sua brigada ao local. "Passámos uma busca à casa e encontrámos o dinheiro escondido num colchão".
Foi no exílio do Rio de Janeiro que o ex-polícia teve uma maior proximidade com o último Presidente da República da ditadura. "Eu tinha um apartamento em Copacabana e o Américo Tomás vivia perto. Reconheceu-me logo", apesar da barba que passara a usar. A vizinhança propiciou relação de alguma assiduidade. "Privei intimamente com ele e com a família. Foi várias vezes comer a minha casa, com a filha Natália e a D. Gertrudes". Uma vez, o velho almirante pediu-lhe para ser portador de uma carta para Moreira Baptista, o ex-ministro do Interior, que, nessa qualidade, tutelara os serviços da PIDE/DGS. Casaco assim fez. "O Moreira Baptista vivia em Madrid. Quando eu lhe disse ao que vinha ficou muito surpreendido, porque não me reconheceu. Tive que me apresentar a mim próprio: `Sou o ex-inspector Rosa Casaco'".
Ministro da Defesa de Salazar e rosto visível da "Abrilada", Botelho Moniz foi seguido por Casaco no momento crucial daquela frustrada tentativa de golpe de Estado de Abril de 1961. "Eu e o Leitão Bernardino fizemos vigilância ao palácio de Belém", na madrugada decisiva, em que o general se deslocou à Presidência da República "para tentar convencer o Américo Tomás a demitir o Salazar". A dupla da PIDE seguiu a viatura de Botelho Moniz até Belém - "fomos num carro da polícia, eu a guiar a 140 quilómetros à hora pela Avenida da India...". Casaco conhecera Botelho Moniz "como adido militar da embaixada de Portugal em Madrid", a seguir à Segunda Guerra. "Éramos amigos, mas eu tinha de cumprir a minha missão". O resto da história é conhecida: Tomás não alinhou no golpe e Salazar não perdeu tempo, demitindo Botelho Moniz e os demais militares conspiradores.
Entre os demitidos após o fracasso do golpe de Botelho Moniz, de abril de 1961, contava-se o então subsecretário de Estado do Exército e actual marechal Francisco da Costa Gomes. "Não o conheci pessoalmente, mas anos depois beneficiou de uma informação favorável que eu fiz". Costa Gomes e Casaco frequentavam o mesmo barbeiro, o "Jerónimo". Numa das conversas em que todos os barbeiros do mundo são pródigos, "o Jerónimo disse-me que o Costa Gomes tinha mudado muito e que, agora, estava com a 'situação'". Confiado nas impressões do especialista da barba e do cabelo fez "uma informação sobre o Costa Gomes, que, soube mais tarde, chegou até ao Salazar". Casaco está seguro que essa sua informação pesou na nomeação de Costa Gomes para comandante da Região Militar de Moçambique, em 1967. "Fui um ingénuo", lastima-se; "sabíamos que ele era das esquerdas, mas não sabíamos que era do `partido'..."
Moçambique foi a colónia africana a que mais vezes se deslocou Casaco. Duas das visitas tiveram pretextos de carácter privado: para o casamento do filho mais velho e para o baptizado da primeira neta.
De outra vez, foi encarregado de levar a Lourenço Marques (hoje, Maputo) "a nova cifra secreta" das comunicações, que entregou ao chefe da delegação da PIDE, Coelho Dias. "O código tinha sido alterado e o novo era um calhamaço enorme".
Os autores do livro O Caso Delgado - Autópsia da `Operação Outono' acusam-no de ter proposto, "perante duas testemunhas, a execução" de Eduardo Mondlane, fundador e primeiro líder da Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique), morto em Fevereiro de 1969 devido ao rebentamento de uma carta armadilhada enviada para a sede do movimento, em Dar-es-Salam. Casaco desmente categórico: "Isso é demais! Quem montou a carta foi o Casimiro Monteiro, parece que a mando do Fernando Fernandes Vaz". Chefe de delegação da PIDE de Moçambique, Vaz substituíra no cargo o inspector Coelho Dias e "era um grande jogador de poker".
Casaco alega que soube da autoria do atentado a Mondlane por "um funcionário amigo e leal" que lhe contou a história; "mas cujo nome já não me lembro". Ao desmentido, acrescenta um protesto indignado: "Isso é uma infâmia. Só me faltava essa acusação..."
Em 22 de Janeiro de 1961, o capitão Henrique Galvão tomou de assalto o navio "Santa Maria". Pouco depois, Casaco era enviado ao Rio de Janeiro para "tentar descobrir o que tencionava fazer Galvão", uma vez que um informador "havia assegurado que aquele atrevido revolucionário iria praticar um outro golpe espectacular". Chegado ao Rio, contactou um agente infiltrado nos núcleos da Oposição e que se insinuara com êxito junto de Delgado e de Galvão. Esse informador - que recusa identificar - "era palrador" e fez-lhe uma espantosa revelação: que informara a PIDE, "com mais de um mês de antecedência, da operação ao `Santa Maria'". O seu interlocutor em Lisboa, contudo, "não lhe dera crédito, considerando a informação de fantasiosa!"
A missão ao Rio não demorou mais do que dez dias e redundou num fracasso. É certo que estabeleceu contacto com Henrique Galvão. "Mas não consegui saber nada. Ele era uma águia, cem vezes mais esperto que eu". Semanas depois, Galvão vibrava, novo golpe na ditadura, com o desvio de um avião da TAP da carreira Casablanca-Lisboa.
Um dos grandes vultos da cultura portuguesa deste século e um dos mais respeitados dirigentes da Oposição democrática, Jaime Cortesão recusou candidatar-se à Presidência da República, tendo apoiado com empenho o general Delgado. Foi preso nesse mesmo ano de 1958, apesar dos seus respeitáveis 74 anos de idade. "Fui eu que o prendi, na sua casa perto do Largo da Estrela." Ao contrário do costume, Casaco apresentou-se com um mandado de captura e de busca à residência. "Recusei-me a fazer a busca, porque achei que era uma ofensa para um intelectual daquela categoria." Do reputado historiador e democrata incansável que viria a falecer dois anos depois - o polícia retém "a figura austera, interessantíssima, com a sua barba branca". E acrescenta com uma ponta de admiração: "Era um homem extraordinário, uma pessoa encantadora."
Com a morte política de Salazar, em setembro de 1968, a sucessão foi arduamente disputada por vários dos delfins. Um deles - que, aliás, viria a sair vitorioso - foi Marcello Caetano. A PIDE, atenta e desconfiada, vigiou a intensa luta política que, em surdina, se travou nos bastidores. "O telefone do Marcello Caetano esteve sob escuta". Casaco não pode precisar durante quanto tempo: "Foi naquelas semanas que se seguiram à queda de Salazar. A escuta foi desligada no dia em que Marcello tomou posse", 26 de setembro de 1968.
O novo presidente do Conselho passou, naturalmente, a ser protegido pela polícia. "Cheguei a fazer-lhe segurança, com dois agentes, em casa", na Rua Duarte Lobo. "Mudei-lhe logo o trajecto para S. Bento, evitando o viaduto dos comboios, em Entrecampos", um local propício à realização de atentados. "Foi sempre muito amável comigo", afirma Rosa Casaco. Caetano morreu em 1980, no Rio. "Eu e minha mulher fomos os primeiros portugueses a velar o seu cadáver e a rezar pela sua alma na capela do cemitério do Botafogo. Além de nós, encontrava -se apenas um irmão do Professor". Às exéquias do "grande estadista", realizadas no dia seguinte, compareceu uma "enorme multidão".
Uma fotografia de que não se esquece foi a que fez a Mário Soares numa das comemorações do 5 de Outubro, durante a imposição de flores junto à estátua de António José de Almeida. Disfarçado entre a pequena multidão, o polícia abeirou-se de Soares quando este usava da palavra. "Pedi-lhe para olhar para a câmara e, quando ele olhou, disparei." Provocador, Casaco não se coibiu de deixar escapar um "muito obrigado em nome da PIDE!" Casaco cruzou -se amiúde com Soares, advogado da família de Humberto Delgado e um dos dirigentes da oposição não-comunista. Era inevitável. "Cumprimentávamo-nos quase sempre: `Boa tarde, senhor doutor', dizia-lhe eu; `Boa tarde, senhor inspector', respondia ele." O ex-polícia fala de Soares num tom entre o desdenhoso e o trocista. "Eu até gostava do Mário Soares. Era um demagogo. O que ele queria era o poder - e conseguiu. Bem ou mal, conseguiu."
Exilado em Argel, Manuel Tito de Morais foi contactado, em abril de 1964, para um encontro com um grupo oposicionista ido de Portugal. A reunião foi aprazada para o dia 28, em Sevilha. Na véspera, saíra de Lisboa uma viatura com quatro pessoas, com o alegado objectivo de tentar raptar Tito de Morais e trazê-lo para Portugal. Transposta a fronteira do Caia, o carro tomou o caminho de Zafra; ao atravessar um cruzamento, chocou violentamente num camião. A força do embate projectou três dos ocupantes. O único que se manteve no carro, semidestruído, foi o condutor, que ficou com um fémur em estado lamentável. Chamava-se António Rosa Casaco. O condutor deu entrada no Hospital do Ultramar, para uma estadia que se prolongou até meados de agosto. "A reconstituição da perna demorou cinco horas ". Salazar interessou-se pelo estado de saúde do seu fotógrafo preferido, que mereceu várias visitas da governanta Maria e do chefe de gabinete.
Texto publicado na Revista do Expresso a 21 de fevereiro de 1998
expresso.pt
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