O canal de televisão argentino Todo Noticias comentou o momento com a expressão “As voltas da vida”. O Presidente francês, Emmanuel Macron, aterrou esta quinta-feira em Buenos Aires para participar na cimeira do G20. Para trás, ficou uma França em ebulição, abalada pelos protestos dos “Coletes Amarelos”, que se repetirão este sábado. Na chegada à capital argentina, à saída do avião, Macron estendeu a mão de imediato às primeiras pessoas que viu. Uma delas era um trabalhador com um “colete amarelo”. Nem na Argentina o movimento sai da cabeça — e do raio de visão — do chefe de Estado francês.
O movimento de protesto Gilets Jaunes (“Coletes Amarelos” em francês) é o mais recente problema político de Macron. Pior: o fenómeno, nascido nas redes sociais, pode revelar-se perigoso para um chefe de Estado que está com uma taxa de popularidade muito baixa, de cerca de 30%.
A 17 de novembro, quase 300 mil pessoas saíram à rua em todo o país para protestar contra o aumento do imposto sobre os combustíveis, a propósito da chamada “transição energética” promovida pelo Governo de Macron. Uma semana depois, esse número ficou-se pelos cerca de 100 mil participantes, mas as imagens de violência saídas dos confrontos entre manifestantes e polícia nos Campos Elísios deixaram claro que a raiva deste movimento — que, a essa altura, já exigia a demissão do Presidente — ia muito além da mera oposição a uma taxa.
Este sábado, o cenário repete-se: desde as primeiras horas da manhã, centenas de pessoas entraram em confrontos com a polícia, que tenta dispersar a multidão com gás lacrimogéneo e canhões de água.
Quem são estes indignados que captaram a atenção pública e o apoio da maioria dos franceses? Até que ponto representam um movimento verdadeiramente orgânico e “horizontal”? Ou são apenas uma arma de arremesso de partidos extremistas?
A “França do fim do mês difícil” juntou-se no Facebook e decidiu sair à rua
“O que é que eles vão fazer? Dar-nos ajudas? Não é ajudas que queremos, queremos é viver dignamente do nosso salário”; “O voto? Isso é uma cortina de fumo. Aquelas pessoas já não nos representam, só se representam a si próprios.” Estas foram algumas das respostas dadas por “Coletes Amarelos” a um jornalista do Le Monde ao longo dos últimos dias, quando perguntados sobre o que esperam dos seus representantes. As frases deixam claro que o anúncio do aumento da taxa sobre o combustível foi simplesmente o rastilho das manifestações.
“Isto já é mais do que um protesto contra um imposto”, reconhece ao Observador Romain Pasquier, diretor do Centro de Pesquisa da Ação Política Europeia da Universidade de Rennes e investigador na área do regionalismo francês. “As pessoas que vivem na província ou nas pequenas cidades têm uma condição social comum: trabalham, mas não são ricas, e muitas têm de usar o carro para ir para o trabalho, para levar os filhos à escola, para poder ir a um sítio praticar desporto… Os desafios colocados pela transição ecológica parecem-lhes um desafio à sua forma de vida.”
Os “Coletes Amarelos” deram automaticamente nas vistas por terem surgido como um movimento aparentemente espontâneo, nascido das redes sociais. Vários jornais franceses descrevem-no como um movimento “horizontal”, “orgânico”, sem liderança. Francis Brochet, autor do livro Smartphone Democracy: Digital Populism from Trump to Macron classificou-o como “uma revolta de ‘camponeses’ digital”. Uma avaliação da Fundação Jean-Jaurès, ligada ao Partido Socialista Francês, optou pela fórmula “a França que apoia este movimento é a França do ‘fim do mês difícil’”.
Apesar de serem motivados por questões económicas, não é essa a única preocupação do movimento. Afinal de contas, não estamos a falar dos mais pobres, dos desempregados ou dos que dependem da assistência social para viver, mas sim de uma classe média remediada. “Eles estão no meio: sentem que têm de contribuir para esta ‘transição económica’, mas não beneficiam de ajudas do Estado. Sentem que foram… fait avoir”, diz Pasquier, recorrendo à expressão francesa que pode ser traduzida com um sentido semelhante ao de “foram lixados”.
“Há uma clivagem real entre o ‘centro’ e a ‘periferia’ em França, das grandes cidades face às zonas rurais. O que os ‘Coletes Amarelos’ fizeram foi revelar à opinião pública que esta clivagem existe”, resume. “Este novo modelo de desenvolvimento baseado nas questões das alterações climáticas é visto pelas ‘pessoas comuns’ como sendo promovidas pelas elites urbanas de Paris, simbolizadas por Emmanuel Macron e pelos ministros. Por isso este é claramente um protesto contra a visão ‘parisiense’ de França.”
Esta ideia de que os “Coletes Amarelos” são a expressão das queixas de uma “França profunda e esquecida” é reforçada pelo sociólogo francês Michel Wieviorka: “No mesmo dia em Paris tivemos uma manifestação dos ‘Coletes Amarelos’ — o ‘velho mundo’ que está a tentar não desaparecer — e do ‘novo mundo’, com uma manifestação de ativistas feministas anti-violência contra as mulheres”, declarou à Radio France Internationale. “Tivemos o velho e o novo mundo ali. Não digo que um é melhor do que o outro, mas culturalmente estamos a falar de pessoas muito diferentes.”
As descrições não fogem muito à apontada em fenómenos que surgiram noutros países ocidentais, seja a propósito do Brexit no Reino Unido ou da eleição de Donald Trump nos Estados Unidos. A ideia de que há uma parte de cada país abandonada, esquecida pelas elites da capital, cuja raiva e frustração acabam por explodir em movimentos sociais mais extremados, é comum a todos. Mas serão os “Coletes Amarelos” assim tão espontâneos? Ou, como acusou o ministro do Interior Christophe Castaner na semana passada, são instrumentos de partidos políticos extremistas?
Le Pen e Mélenchon apoiam os “Coletes”. E eles querem o seu apoio?
“Os insubordinados responderam à chamada de Marine Le Pen”, declarou Christophe Castaner no sábado passado, em reação aos protestos nas ruas de Paris. Poucos dias depois, somava-se o ministro do Orçamento e Administração Pública, Gerald Darmanin: “Quem se manifestou no sábado não foram os ‘Coletes Amarelos’, foi a ‘Peste Castanha’”, disse, referindo-se à expressão utilizada em França para os oficiais das SA durante a Segunda Guerra Mundial, devido à cor das suas camisas. A estratégia do Governo parecia clara: colar as manifestações dos “Coletes Amarelos” à extrema-direita e à União Nacional (novo nome da Frente Nacional) de Le Pen.
O Eliseu pareceu assim ignorar deliberadamente a extrema-esquerda de Jean-Luc Mélenchon que, desde o primeiro dia, também deu o seu apoio ao movimento. O líder da França Insubmissa já prometeu, inclusivamente, que estará nos Campos Elísios ao lado dos manifestantes este sábado, embora garanta que tentará ser discreto para evitar a “concentração de câmaras” à sua volta. “Dizem-me que há fascistas aqui. Sim, eles estão em todo o lado, mas também há aqui muita gente zangada que não é fascista e que tem direito a estar zangada”, resumiu no início do mês sobre o seu apoio aos “Coletes”.
A verdade é que Le Pen e a União Nacional foram, desde o primeiro dia, apoiantes declarados do movimento. Ainda esta semana, a líder do partido disse que se o Governo não autorizasse que a manifestação de sábado se realize nos Campos Elísios — como fez na semana passada, uma das razões pelas quais os protestos se tornaram violentos — esse seria “um ato de humilhação e de desprezo”. A líder da extrema-direita, contudo, rejeitou a possibilidade de descer a Avenida com os manifestantes, ao contrário de Mélenchon. “Para mim, o papel de um líder partidário — exceto numa situação excecional — não é estar na rua, mas sim oferecer a opção de resolver os problemas dos franceses através do voto”, declarou, em entrevista ao Le Parisien.
Pode ser uma escolha por convicção pessoal, mas também pode ser uma estratégia para evitar a colagem entre “Coletes Amarelos” e Le Pen que os ministros de Macron têm tentado fazer. As acusações de que a União Nacional e a França Insubmissa estão a tentar direcionar os “Coletes Amarelos” ou a tentar infiltrar-se no movimento abundam. E não são ajudadas por notícias pontuais que dão conta de que um participante nos protestos fez parte de uma lista municipal da Frente Nacional e escondeu esse facto, nem pelas acusações de Marion Maréchal, a sobrinha de Le Pen (que abandonou entretanto o partido da tia e do avô): “O movimento foi totalmente canibalizado pelos militantes da extrema-esquerda. Ouvi [na manifestação de Paris] ‘morte ao capitalismo’. Se isso é a extrema-direita, está muito mudada”.
Para Romain Pasquier, estas realidades aparentemente contraditórias explicam-se pela heterogeneidade do movimento, ao qual pertencem pessoas que vão da extrema-direita à extrema-esquerda: “Não há uma orientação ideológica clara do movimento. É plural. É claro que podemos observar algumas tentativas da União Nacional e de outros partidos de tentarem ligar a sua organização política a este movimento, mas penso que não funciona. Eles não querem ser politizados, não querem ter uma etiqueta. Querem ser vistos como um movimento de cidadãos”, afirma.
Essa posição, contudo, não é consensual entre os analistas. Bernard-Henri Lévy, um dos intelectuais mais respeitados de França, avisa que “caberá aos historiadores decidir, quando chegar o momento, se os Le Penistas e os Mélenchonistas inspiraram o movimento, se infiltraram nele ou se simplesmente se aproveitaram da surpresa divina que se lhes apresentou”. Contudo, como escreveu numa coluna de opinião no jornal El Español, “o certo é que bastou um tweet da senhora Le Pen lamentando a proibição de se manifestarem nos Campos Elísios para que milhares de ‘Coletes Amarelos’ se unissem como um só homem. O certo é que quando o Insubmisso François Ruffin se maravilhou frente a uma câmara, a uns poucos metros dos black blocs [manifestantes de cara coberta geralmente ligados a movimentos anarquistas e anti-globalização] que montavam uma barricada (…) não havia ativistas presentes para acharem que estava a prejudicar a causa e para o retirarem da manifestação.”
De forma mais ou menos orquestrada, a única coisa clara é que tanto a União Nacional como a França Insubmissa estão muito representadas no movimento. Segundo um estudo do Instituto Francês de Opinião Pública, os maiores apoiantes dos “Coletes Amarelos” são os que votaram em Le Pen na eleição presidencial de 2017; o segundo grupo mais representado é o dos eleitores de Mélenchon; e o terceiro são os abstencionistas, segundo explicou Jérôme Fourquet, responsável pelo estudo, ao Les Echos. “São os demasiado ricos para receberem ajudas [do Estado], mas que não têm o suficiente para viver bem. Não são os mais pobres, mas sim os que estão acima da linha de água”, resumiu, sobre esta massa social que compõe os “Coletes”. E esses são aqueles que, no clima político atual, têm tendência para votar na União Nacional e na França Insubmissa.
Eleições europeias, o grande teste à influência do movimento
Numa aparente tentativa de serem mais eficazes no cumprimento dos seus objetivos, os “Coletes Amarelos” nomearam oito “porta-vozes”: Eric Drouet, Priscillia Ludosky, Maxime Nicolle, Mathieu Blavier, Jason Herbert, Thomas Miralles, Marine Charrette-Labadie e Julien Terrier, sendo os dois primeiros coordenadores do grupo. Ao Libération, Terrier explicou que a delegação foi escolhida através de uma videoconferência onde participaram cerca de 30 representantes regionais. A questão que se coloca agora é se um movimento tão orgânico como o dos “Coletes Amarelos” aceitará ter este grupo a falar em seu nome.
“Este é um problema muito antigo para qualquer movimento político”,explicou ao Sud-Ouest o cientista político Vincent Tiberj. “Um movimento social é algo que vem de baixo para cima, e, quando ocorre uma estruturação, há uma perda de membros”. A definição de objetivos mais concretos e de uma hierarquia e a participação em negociações leva muitas vezes a que a heterogeneidade e ambiguidade que caracteriza os movimentos se perca.
A decisão de ter uma maior organização pode, por isso, ser o princípio do fim do movimento. Também pode, contudo, ser a transformação de um sentimento social latente num fenómeno político mais concreto: “Esta insatisfação e raiva contra as políticas do Governo e contra Emmanuel Macron não vão desaparecer rapidamente”, admite Sainte-Marie no mesmo artigo.
“Este não é ainda um movimento nacional, é uma coligação de vários movimentos locais. E, por isso, temos diferentes visões para o movimento”, resume Pasquier ao Observador. “Eu diria que, se eles forem capazes de criar as condições para um diálogo pacífico entre o Governo e o movimento, esse pode ser um primeiro passo. Eles têm de clarificar o que querem discutir com o Governo e o Governo devia ceder nalguns pontos, nomeadamente na questão do imposto”, defende.
Por enquanto, Macron tem deixado claro que não pretende deixar cair o aumento do imposto sobre o combustível, mas tem tentado demonstrar uma atitude mais aberta ao diálogo. Esta quinta-feira, em Buenos Aires, declarou ter ouvido “a raiva legítima, a impaciência e o sofrimento por parte do povo”. Dois dias antes, ainda no Eliseu, disse ter visto “as dificuldades que a situação implica àqueles que conduzem muito e que já andavam na luta para chegar ao fim do mês”. Os seus ministros, entre eles o da Ecologia e Energia (François de Rugy), mostraram-se disponíveis para receber a delegação de oito porta-vozes dos “Coletes Amarelos” — embora esta sexta-feira apenas dois representantes do movimento tenham aparecido para se encontrarem com o primeiro-ministro, Edouard Philippe.
“Vamos ver qual será a estratégia do Governo depois deste sábado”, avisa Pasquier. “Eu diria que uma atitude muito sobranceira e arrogante de Macron custar-lhe-ia muito politicamente, sobretudo nas próximas eleições europeias. Podemos estar perante uma derrota pesada para Emmanuel Macron e para o Republique En Marche.”
Com as sondagens a revelarem que a esmagadora maioria dos franceses (84%) considera o movimento dos “Coletes Amarelos” justificado — e que esse apoio está a aumentar —, convém ao Presidente francês medir bem as palavras e as ações. Com eleições europeias dentro de poucos meses, Macron pode assistir a uma sangria descontrolada dos votos que conquistou nas presidenciais do ano passado. E, a acontecer, quem beneficiaria com isso? “O ‘partido da abstenção’ e, naturalmente, os partidos populistas. Ou seja, Marine Le Pen e Jean-Luc Mélenchon”, prevê o investigador francês. Mais ou menos por dentro dos “Coletes Amarelos”, são os dois líderes quem mais beneficia com o grito de revolta que deu origem ao movimento.
observador.pt
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