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António Borges Coelho. “Eu não sou responsável pelo que os portugueses fizeram nos Descobrimentos”
Na sua casa repleta de livros, de história, filosofia, arte ou economia, o historiador e professor catedrático António Borges Coelho não abandona o papel e a caneta para continuar a fazer historiografia.
Está a escrever o sétimo volume da sua obra “História de Portugal”, mas sabe que. mesmo depois de terminada. continuará incompleta, tal como todas as suas obras anteriores.
Uma dessas obras, “Raízes da Expansão Portuguesa”, reeditada agora pela Caminho, valeu-lhe uma ida à sede da PIDE em 1964, onde foi interrogado e ameaçado. Os seis anos anteriores passou-os na prisão, entre os quais seis meses em solitária.
No isolamento, sem luz e sem nada para fazer, o combatente antifascista explica que “só há a memória”, que vai “a horizontes completamente inconcebíveis”. “Esse isolamento é quebrado para interrogatório e para ir à tortura, mas a maior tortura é para muitos precisamente esse isolamento contínuo, contínuo, contínuo, sem haver nada”, recorda o historiador.
Como vê as obras de uma vida de trabalho serem agora reeditadas?
Vejo-as como incompletas. Não perdi ainda a força e queria continuar pelo menos a escrita do sétimo volume da “História de Portugal”.
Já tem data para sair?
Tem data para se continuar a escrever. Por um lado, também sinto que há alguma realização feita, mas cabe aos outros apreciar e não a mim próprio.
Porque é que as suas obras estão incompletas?
São sempre incompletas. Qualquer autor por mais que escreva e vá ao fundo das coisas deixa sempre um monte infinito… Então em História! Quando se faz uma síntese de um período ou época, ficam de fora milhares de documentos e de informações. Agora, é tanto ou mais válida quanto se escolheu as informações mais significativas, aquelas que dizem mais à evolução social e política e à história económica.
Quais os critérios que usa para selecionar essa informação?
É muito trabalho. Isto é, há épocas em que o material escasseia e há outras em que o material é quase infinito. Então, na época contemporânea é praticamente infinito. Tudo é matéria-prima: são os jornais, a história da ciência, tudo. Agora, em períodos anteriores, como na pré-história, um caco ou um fóssil de um humano são uma maravilha [risos]. É de facto uma descoberta excecional que nos leva a pensar e a imaginar - não inventar - como seria a vida do homem primitivo. Noutras épocas, como a da Idade Média, não há muito material.
O seu trabalho é maioritariamente sobre a Idade Média e Época Moderna, quais as fontes que usa e seleciona?
A Torre do Tombo é um manancial, mas não só. Existem arquivos distritais em várias cidades e vilas portuguesas que têm material importante. Não é preciso ler todos os documentos, porque se repetem. É preciso encontrar documentos significativos que tenham uma carga muito grande, mas além disso há milhares de documentos publicados. É preciso lê-los - não apenas aquilo que está à mostra, mas aquilo que está subjacente. Não é fácil, é preciso ter-se experiência e viver muito na própria época para se avançar um pouco mais profundamente na leitura. Sem documentos não podemos fazer história.
Disse que a “História é uma ciência perigosa”.
E é, é perigosa. A História nasceu ligada à epopeia, isto é, o poder teve sempre a preocupação de deixar a sua memória, que nem sempre coincide com a vida e história reais. É a visão da História por parte do poder e quando o historiador ousa em determinados momentos escrever uma História que não é exatamente a do poder torna-se perigosa. É um continente de ciências por vezes extremamente perigosas.
Foi esse perigo que o levou, ao publicar o livro “Raízes da Expansão Portuguesa”, a ser interrogado pela PIDE?
O livro começou a ser vendido nas livrarias e foi denunciado. Eu estava em liberdade condicional e era obrigado a apresentar-me todos os meses à PIDE e quando fui à sua sede o livro já tinha sido retirado das livrarias. Fui interrogado pela PIDE por uma tarde inteira e submetido a ameaças de me prenderem novamente, acusando-me de traidor à pátria, aos heróis e santos da nacionalidade. Foi uma tarde inteira de ameaças e interrogatório. O resumo de um auto, que está muito longe de mostrar tudo o que se passou nessa tarde, foi encontrado na Torre do Tombo.
Duas das suas obras, a “Revolução de 1883” e as “Raízes da Expansão Portuguesa”, têm uma visão da História que criou polémica. O primeiro por defender que a revolução de 1883 foi a primeira revolução burguesa na História e o segundo por explicar a invasão de Ceuta como um confronto entre a nobreza e a burguesia emergente. Como é que estas obras colocavam em causa o regime do Estado Novo?
Vivíamos em plena guerra colonial. A guerra começou em 1961 e o livro [”Raízes da Expansão Portuguesa”] foi publicado em 1964. A tese do regime na ONU era que Portugal ia do Minho a Timor e que, portanto, as colónias faziam parte integral do país. O livro mostrava que Ceuta não era Portugal, isto é, fomos conquistar um território estrangeiro que ocupámos pela força. Na verdade, a revolução tinha sido ganha pelos concelhos, cidades e vilas, só que a aristocracia não tinha morrido e, como acontece sempre ao nível do poder quando existem classes antagónicas, havia contradições. É possível ver na empresa da conquista de Ceuta precisamente essas contradições que mostram que a dominância ainda era das forças emergentes da revolução de 1883-1885. O próprio poder da época, D. João, estava bem ligado àqueles que o colocaram no trono.
Nos seus livros sente-se uma análise marxista e a divisão da sociedade em classes, com uma dominante e outra emergente. Considera-se um historiador marxista?
É verdade que a obra de Marx pôs em evidência a luta de classes no século XIX, embora essa ideia não lhe fosse originária. Fui um leitor de Marx, mas não apenas. A minha tese de licenciatura é sobre Gottfried Wilhelm Leibniz, filósofo do século XVII. De alguma forma também estudei profundamente Baruch Espinoza. Agora, é indiscutível que na altura em que escrevi o livro houve uma influência da leitura de Marx e, na minha opinião, é extremamente positiva do ponto de vista historiográfico. Em História não podemos partir das ideias de - seja lá de que filósofo for - e depois irmos aos factos para os meter a martelo para condizerem com as ideias. Isso em História não existe. Ponham-me o rótulo que quiserem, mas a verdade é que eu parto dos factos e daquilo que eu sou já, aquilo que pensei e penso. O que domina não é o que eu pensava, mas aquilo que os factos comprovam ou não. Estou a narrar os acontecimentos e a meter as pessoas nos acontecimentos. Não é tê-los fora e escrever abstrações sobre abstrações que não levam a nada. Marx foi um grande filósofo e economista da economia clássica, tudo bem. Tem livros magníficos, mas não é o único e nem acabou com ele [o conhecimento]. Isto é, o conhecimento da sociedade, que é hoje muito mais contraditório do que no tempo de Marx. Vamos deitá-lo fora? Claro que não, de maneira nenhuma.
No “Raízes da Expansão Portuguesa”, coloca os vários indivíduos como representantes das classes. Na invasão de Ceuta foi a burguesia emergente que fez força para que acontecesse, mas depois a nobreza queria avançar e a burguesia recuou. Porquê?
Creio que inicialmente estavam todos entusiasmados com a possibilidade de Ceuta. O segredo foi muito bem guardado. A rainha D. Filipa de Lencastre morreu de peste e mesmo assim a expedição foi para a frente. Havia muitos nobres no terreno, como Nuno Álvares Pereira, que apoiaram e quiseram ir. No conselho em que se decidiu a ida a Ceuta foi dita uma frase: “Rume-se ao além”. Eram os grisalhos de Aljubarrota que apoiavam a iniciativa, mas depois de conquistada e roubada - porque foi de facto um saque completo - houve aqueles que se dividiam sobre o que se fazer a Ceuta. [À nobreza] interessava muito mais a intrigalhada com Espanha e aos outros não, porque era a porta de entrada no Mediterrâneo. Ceuta era uma porta chave para a burguesia marítima.
Chegou inclusive a escrever que a nobreza estava disponível para criar um confronto com Espanha e a colocar em causa a independência nacional só para manter o poder.
Ao quererem entrar nos conflitos internos de Espanha estavam na verdade a colocar em perigo Portugal. Uma das razões para que Portugal tenha ido para fora [optado pela expansão marítima] era por ter corpo pequeno, isto é, o mar é a fronteira que se abre para fincar o pé relativamente ao muro de Castela, que não é muro nenhum.
Ceuta foi o primeiro empreendimento do que viriam a ficar conhecidos como “Descobrimentos”. Há uns tempos houve uma polémica sobre um futuro museu dos Descobrimentos e o professor afirmou que era um “absurdo”. O que queria dizer com isso?
A expansão portuguesa significou muito para a História da Humanidade. Levou à descoberta de todo o Atlântico Sul, levou os europeus a conhecerem África, um vastíssimo continente que nem vinha na Bíblia. Portanto, provocou o primeiro grande conhecimento por parte do Homem da sua própria casa, a terra. Isto é um acontecimento fantástico à escala humana, à da Humanidade. Claro que esse acontecimento provocou muito sofrimento, isto é, desenvolveu a escravatura - que já existia - e levou a uma guerra marítima na Ásia com a chegada dos portugueses pelo controlo do comércio das especiarias. Tudo isso faz parte. Um museu pode ter esse nome ou outro, mas tem de ser sobre este grande acontecimento dos portugueses no mundo na época dos Descobrimentos - porque houve efetivamente Descobrimentos.
Não acha que chamar “Descobrimentos” aos Descobrimentos é relegar para um segundo plano a dizimação de povos na América Latina e em África numa imagem áurea do passado português.
Depende do conteúdo que se colocar no museu. Até se podem pôr descobrimentos entre aspas. Deve-se discutir o nome, mas principalmente o seu conteúdo. É claro que os portugueses fizeram malandrices em série, mas também lhes fizeram malandrices. Aquilo não foi uma guerra de inocentes. A chegada dos portugueses ao Brasil provocou desde logo uma catástrofe do ponto de vista sanitário, depois a escravatura do índio, que se aldrabou durante séculos. O índio foi escravizado e não aguentava, não tinha força, e por isso é que veio o negro. Isso é que é o tema do museu, não é só a chegada. Se contarmos a verdade sobre a chegada de Vasco da Gama à Índia, vamos contar que ele se safou de o matarem por um triz. Há muitos filhos de colonos portugueses da época que estão hoje muito incomodados, mas eles não são responsáveis. Eu não sou responsável pelo que os portugueses fizeram.
Acha que não temos de pedir desculpas?
Julgo que isso é mais um pro forma. Cito apenas um caso especial: durante anos tenho-me batido para que haja um monumento no Campo das Cebolas ou no Terreiro do Paço dizendo ao povo português que durante três séculos queimou todos os anos gente na praça pública por terem ideias diferentes. Alguma vez apareceu e foi posto um monumento sobre isso?
Acha que o passado português da Inquisição é apagado da História?
Disseram-nos que nos tinha libertado das guerras religiosas, mas o que é que nos trouxe? Trouxe-nos um subdesenvolvimento intelectual durante quase três séculos. Quando chegámos ao século XVI, alguns autores estavam na vanguarda do progresso científico, dado precisamente pelas navegações. Navegar não era como agora. Era numa casca de noz com instrumentos de coordenadas que não são os de hoje, noites horrorosas, tempestades, morriam em massa nas tempestades.
Nasceu em Murça, em Vila Real, e aos 20 anos veio para Lisboa.
Fiz 20 anos em Lisboa.
Passou mal quando cá chegou.
Muito mal. Cheguei sem dinheiro. Um amigo tinha-me emprestado 200 escudos, não tinha quarto e não conhecia nada de Lisboa, embora tivesse cá vivido um ano e tal quando era miúdo. Não sabia sequer ao certo onde era a Praça do Comércio. Matriculei-me em Direito e um amigo conterrâneo levou-me para o quarto dele, mas a dona da casa não gostou nada. Lá fiquei a viver por três meses, enquanto procurava emprego. Era um estudante de Medicina da minha terra que me pagava as sandes por não ter dinheiro para comer.
Qual o impacto que isso teve na sua vida?
Teve muito impacto. Podia ter morrido com uma daquelas doenças da fome. Até que consegui emprego. Cheguei em outubro e no Natal arranjei emprego.
A fazer o quê?
Na Junta Autónoma das Estradas. Fiquei nesse emprego até fugir de lá.
Entrou em Direito, mas no segundo ano abandonou-o para se dedicar à luta contra a ditadura. A dureza da sua chegada a Lisboa contribuiu para a sua politização?
Já vinha com ideias revolucionárias de Murça.
Como é que as adquiriu?
A minha terra tinha dado à luz um grande revolucionário: Militão Ribeiro, que militou no Brasil, na Coluna Prestes, e que foi depois deportado. Passou um tempo no Tarrafal até ser libertado em 1945. Não foi ele propriamente, mas as vítimas da PIDE na minha terra que me deram livros a ler. Tinha saído do seminário e estava com um espírito propício. Já vinha mais ou menos revolucionário, mas depois quando entrei na faculdade aderi logo ao movimento estudantil. Quando abandonei os estudos foi para me dedicar em exclusivo à luta política.
Aderiu ao Movimento Unitário Democrático e tornou-se seu funcionário.
E depois funcionário do Partido Comunista Português.
E foi aí que a PIDE foi pela primeira vez à sua procura, no trabalho.
Tinha criado em Murça uma biblioteca popular e dei-lhe os meus livros. Um dos jovens da minha terra, o meu primo, estava à frente da biblioteca e a PIDE decidiu ir interrogar os fundadores da biblioteca. Éramos quatro. Quando me avisaram que a PIDE me ia buscar ou pelo menos saber de mim, pus-me ao fresco e entrei na clandestinidade.
Como é que viveu a clandestinidade?
Não tinha casa própria. Dormia aqui, ali e acolá. Foi assim dois anos e tal. A dada altura, teoricamente, iam-me dar um ordenado para comer, mas comia mal e porcamente, digamos. Foram anos muito difíceis, mas com muita esperança e alegria extraordinárias. Era uma vida dura e rude, mas éramos jovens e tínhamos confiança e esperança no combate, embora fossemos uma minoria.
Como aguentava essa dureza?
Estávamos ligados uns aos outros e havia uma espécie de fé de que tudo ia mudar. Havia a ameaça de uma guerra atómica à escala planetária e isso dava-nos força para aguentar. Uma das causas que nos dava força era a da paz. Fazíamos comícios na praça pública, espalhávamos papéis nos teatros e cinemas e organizávamos os jovens.
Mas acabou por ser apanhado pela PIDE.
Fui apanhado na casa de um homem que dava para os dois lados.
Um informador…
Tinha sido preso e tinha ficado ligado. A dada altura apercebi-me de que havia ali alguma coisa. Ainda avisei a rapaziada, mas disseram-me que estava a ver polícias em todo o lado. No dia seguinte entraram duas brigadas da PIDE pela minha casa adentro. Fui para a PIDE e viram que estava muito verde, enviando-me para as celas do Aljube. Estive 180 dias numa cela com luz e noutra completamente às escuras dia e noite. Depois fui para Caxias e daí transportado para o Porto para um julgamento que durou seis meses, acabando por ser condenado a dois anos e nove meses. Fui para Peniche, onde fiquei mais cinco anos. Aí já tinha cumprido um ano e meio de prisão - cumpri um total de seis anos e meio.
Passou 180 dias isolado numa cela. O que fez para lidar com o isolamento?
Só há a memória. A memória vai a horizontes completamente inconcebíveis. Esse isolamento é quebrado para interrogatório e para ir à tortura, mas a maior tortura é para muitos precisamente esse isolamento contínuo, contínuo, contínuo, sem haver nada.
É fácil ficar-se louco?
Comecei aos gritos por duas vezes e fiz greve de fome à porcaria do rancho que davam. Puseram-me na enfermaria, onde comecei a entrar em contacto com os moradores em frente pela janela. Barricaram a enfermaria e levaram-me para a tal cela onde não havia luz absolutamente nenhuma.
O que recordava no isolamento?
A infância, a adolescência, os amores... tudo. A luta. A preocupação inicial é ninguém estar preso, não ter vindo mais ninguém. Isto é, não falei e não apanharam nada. Havia sempre aquela história do: ‘vou ou não aguentar?’ Ou o indivíduo está disposto mesmo a morrer ou, se é por puro jogo, acaba por ser enrolado. Às vezes, não tendo grande experiência de luta e sendo-se verde vacila-se.
Ficou a conhecer-se melhor com esse percurso pela memória?
Esse período teve muita importância na minha vida. Não podia receber nada a não ser alguma correspondência da família. Mas apenas alguma - e já a meio da pena. Nessa altura foi publicado pelo “Diário Popular” o relatório do Kruschev ao XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética e deram-me o jornal. Li o relatório e teve uma influência muito grande na minha vida futura.
Foi o que o fez abandonar o PCP?
Não imediatamente, mas fez-me não continuar a vida de revolucionário que levava.
Esteve em Peniche e recusou-se a aderir à histórica fuga de Peniche. Porquê?
Não queria voltar a esse tipo de vida e queria desenvolver aquilo que comecei, o estudo da História. Foi essa a razão fundamental. Estava inteiramente irmanado com os fugitivos e sofri. Estive lá dois anos e meio [depois da fuga] e fui parar à estátua.
Como era a tortura da estátua?
Era estar de pé sem dormir. Um dia, dois dias, quatro dias, uma semana. A alguns rebentavam-lhes os sapatos, os pés. Esta era a tortura e quando os presos se deixavam dormir batiam com a régua numa secretária. A dada altura começam a ter visões. Estive pouco tempo nesta estátua, pouco mais de 24 horas, porque houve uma grande movimentação cá fora e me deu um ataque de loucura lá dentro. Comecei aos berros dentro da PIDE e a pedir que me matassem de uma vez.
Levaram-no ao desespero.
Entretanto, entrou o meu pai quando estava a fazer de estátua.
Qual foi a reação do seu pai?
Deu-me uma grande firmeza, não me abateu. Eu aguentava aquela posição. Só à porrada é que acabavam comigo.
Essa força de espírito vem de onde?
Não sei, pá. Talvez da minha mãe. Isso vem da própria vida.
Ainda se casou na prisão. Foi já depois de ter decidido abandonar a vida de revolucionário?
A fuga foi um ano depois do casamento. Casei-me para a minha mulher me poder visitar. Foi uma luta que durou mais de um ano, mas finalmente casei.
Mas separado na cerimónia.
Começou separado, mas acabou do mesmo lado. O meu sogro começou a gritar que era impossível e então os guardas e a PIDE lá me puseram ao lado da minha mulher.
Como foi partilhar a cela com Álvaro Cunhal?
Eu era muito desleixado e estava-me a marimbar como é que andava. Pedi ao meu pai uns socos transmontanos para chegar à guilhotina da janela para ver o baleal, porque se não tinha de me por de bicos para o ver. Então o meu pai trouxe-mos e fiquei mais alto. O Cunhal um dia disse-me para coser a camisola rota no cotovelo. Chateou-me tanto que lhe disse para ma coser e coseu--ma. Isto dá um sentido do laço de camaradagem muito grande. Discutíamos e trocávamos livros. Mandei comprar a “Crónica de D. João I” e ele serviu-se dela. Ele tinha autorização para trazer livros de arte e o que aprendi sobre arte aprendi com ele e com os livros que ele conseguiu esconder debaixo da camisola para levar para a cela.
E as relações de camaradagem mantiveram-se depois de ter abandonado o partido?
Ele ficou magoado, é evidente. Mas a amizade manteve-se e tenho uma alta consideração pelo político, pelo homem.
A ligação ao partido manteve-se?
Sou amigo deles [risos], mas acho que o historiador não se pode ligar em demasia, principalmente se for de História Contemporânea.
Saiu em liberdade, dedicou-se à vida académica e tornou-se professor de História. Como viveu o 25 de Abril?
Foi a liberdade de facto. Nunca tinha havido tanta liberdade, até disseram que havia demasiada liberdade. A liberdade foi para a rua e impôs-se. Até a liberdade sexual se discutia nos comboios da linha. Foi uma espécie de ano e meio de embriaguez.
Quando as massas entram no processo histórico pelas suas próprias mãos…
Exatamente [risos].
Acha que as gerações mais novas têm memória do que foi a ditadura?
Não têm. Há minorias, há sempre gente, mas agora está tudo afastado do que é profundo. O grande mestre da vida é agora a televisão, mas o que é que ensina? Divertimento. Não é a leitura, a escrita ou o aprofundar dos temas. Claro que há gente magnífica e que aprofunda -não vamos subestimar a situação atual -, mas a grande massa está à superfície. É claro que ela pode despertar - nada de ilusões quanto a isso -, mas está pacificada. Hoje não é tanto a religião que a pacifica, mas o inimaginável divertimento que se dá aos jovens, mas não se dá muito aos mais pobres, a esses dá-se muito pouco.
Acha que um dia essa “massa” pode despertar?
Há altos e baixos, isto é às ondas. Acho que neste momento não estamos nem em baixo nem ao alto, estamos no meio, a meio gás.
Como vê a situação política hoje?
A Constituição é o instrumento orientador fundamental e creio que devemos ter plena consciência disso. Podemos melhorar - sobretudo no campo dos direitos humanos, das desigualdades e da miséria extrema que se vive em Portugal -, mas dêmo-nos por felizes apesar de tudo, das contradições, dos escândalos de que a televisão é ávida para entreter. Eu que vivi uma vida revolucionária não sinto vontade em fazer uma revolução de maneira nenhuma. Sinto-me bem com o Portugal de hoje, com todas as contradições e diferenças. Mal de nós se houver um país sem diferença, seria um país morto.
Isso não pode soar a um apelo à resignação?
De maneira nenhuma. É preciso tomarmos a palavra sempre que a injustiça nos bata à porta ou à dos outros. Tudo o que disse é tendo em conta o mundo. Não vivemos isolados, mas num universo extremamente contraditório, em que a violência atingiu limites extremos.
Reformou-se em 1998. Sente falta de dar aulas?
Sinto falta, mas o meu corpo já não aguenta duas horas a esse ritmo. Quando dava aulas era praticamente sempre em diálogo e altamente participativas com matérias para discutir e ir ao fundo e não ficar pela superfície.
Acha que falta espírito crítico na universidade?
Acho. É pior que a sebenta em alguns casos, agora nem apontamentos os alunos tiram. Dão ao dedo no tablet. Nem a mão se desenvolve com a escrita, o que é dramático para mim. A mão e a mente andaram sempre juntas.
Sente isso também na historiografia?
Desenvolveu-se muito nos 40 anos depois do 25 de Abril. Não é que antes não tivessem existido grandes historiadores, mas antes do 25 de Abril ficava-se pela época moderna. Hoje há um grande desenvolvimento da História Contemporânea.
Uma História crítica ou subserviente ao poder?
As duas coisas. Ainda continua a haver a História que deixa um bocado na sombra a parte crítica, mas de uma forma geral, mesmo a mais conservadora, tem dificuldade em omitir determinados factos. Pode-lhes dar uma outra interpretação, mas tem dificuldade em omiti-los. É necessário colocar-se os factos e as pessoas, como é que elas viviam e pensavam.
Depois da queda da URSS foi dito que se tinha chegado ao fim da História. As ideologias e a utopia terminaram?
Isso foi uma propaganda e uma estratégia ideológica. Qualquer historiador sabe que a sociedade não desapareceu e que as classes sociais continuam a existir e que são contraditórias. Na verdade, houve como que uma rendição de um dos blocos e um avançar galopante do outro bloco pelo planeta. Vieram as novas guerras - brutais - e a guerra económica, que por vezes não é menos brutal que a guerra [tradicional] por matar a população civil em massa.
Está a escrever o sétimo volume da sua obra “História de Portugal”, mas sabe que. mesmo depois de terminada. continuará incompleta, tal como todas as suas obras anteriores.
Uma dessas obras, “Raízes da Expansão Portuguesa”, reeditada agora pela Caminho, valeu-lhe uma ida à sede da PIDE em 1964, onde foi interrogado e ameaçado. Os seis anos anteriores passou-os na prisão, entre os quais seis meses em solitária.
No isolamento, sem luz e sem nada para fazer, o combatente antifascista explica que “só há a memória”, que vai “a horizontes completamente inconcebíveis”. “Esse isolamento é quebrado para interrogatório e para ir à tortura, mas a maior tortura é para muitos precisamente esse isolamento contínuo, contínuo, contínuo, sem haver nada”, recorda o historiador.
Como vê as obras de uma vida de trabalho serem agora reeditadas?
Vejo-as como incompletas. Não perdi ainda a força e queria continuar pelo menos a escrita do sétimo volume da “História de Portugal”.
Já tem data para sair?
Tem data para se continuar a escrever. Por um lado, também sinto que há alguma realização feita, mas cabe aos outros apreciar e não a mim próprio.
Porque é que as suas obras estão incompletas?
São sempre incompletas. Qualquer autor por mais que escreva e vá ao fundo das coisas deixa sempre um monte infinito… Então em História! Quando se faz uma síntese de um período ou época, ficam de fora milhares de documentos e de informações. Agora, é tanto ou mais válida quanto se escolheu as informações mais significativas, aquelas que dizem mais à evolução social e política e à história económica.
Quais os critérios que usa para selecionar essa informação?
É muito trabalho. Isto é, há épocas em que o material escasseia e há outras em que o material é quase infinito. Então, na época contemporânea é praticamente infinito. Tudo é matéria-prima: são os jornais, a história da ciência, tudo. Agora, em períodos anteriores, como na pré-história, um caco ou um fóssil de um humano são uma maravilha [risos]. É de facto uma descoberta excecional que nos leva a pensar e a imaginar - não inventar - como seria a vida do homem primitivo. Noutras épocas, como a da Idade Média, não há muito material.
O seu trabalho é maioritariamente sobre a Idade Média e Época Moderna, quais as fontes que usa e seleciona?
A Torre do Tombo é um manancial, mas não só. Existem arquivos distritais em várias cidades e vilas portuguesas que têm material importante. Não é preciso ler todos os documentos, porque se repetem. É preciso encontrar documentos significativos que tenham uma carga muito grande, mas além disso há milhares de documentos publicados. É preciso lê-los - não apenas aquilo que está à mostra, mas aquilo que está subjacente. Não é fácil, é preciso ter-se experiência e viver muito na própria época para se avançar um pouco mais profundamente na leitura. Sem documentos não podemos fazer história.
Disse que a “História é uma ciência perigosa”.
E é, é perigosa. A História nasceu ligada à epopeia, isto é, o poder teve sempre a preocupação de deixar a sua memória, que nem sempre coincide com a vida e história reais. É a visão da História por parte do poder e quando o historiador ousa em determinados momentos escrever uma História que não é exatamente a do poder torna-se perigosa. É um continente de ciências por vezes extremamente perigosas.
Foi esse perigo que o levou, ao publicar o livro “Raízes da Expansão Portuguesa”, a ser interrogado pela PIDE?
O livro começou a ser vendido nas livrarias e foi denunciado. Eu estava em liberdade condicional e era obrigado a apresentar-me todos os meses à PIDE e quando fui à sua sede o livro já tinha sido retirado das livrarias. Fui interrogado pela PIDE por uma tarde inteira e submetido a ameaças de me prenderem novamente, acusando-me de traidor à pátria, aos heróis e santos da nacionalidade. Foi uma tarde inteira de ameaças e interrogatório. O resumo de um auto, que está muito longe de mostrar tudo o que se passou nessa tarde, foi encontrado na Torre do Tombo.
Duas das suas obras, a “Revolução de 1883” e as “Raízes da Expansão Portuguesa”, têm uma visão da História que criou polémica. O primeiro por defender que a revolução de 1883 foi a primeira revolução burguesa na História e o segundo por explicar a invasão de Ceuta como um confronto entre a nobreza e a burguesia emergente. Como é que estas obras colocavam em causa o regime do Estado Novo?
Vivíamos em plena guerra colonial. A guerra começou em 1961 e o livro [”Raízes da Expansão Portuguesa”] foi publicado em 1964. A tese do regime na ONU era que Portugal ia do Minho a Timor e que, portanto, as colónias faziam parte integral do país. O livro mostrava que Ceuta não era Portugal, isto é, fomos conquistar um território estrangeiro que ocupámos pela força. Na verdade, a revolução tinha sido ganha pelos concelhos, cidades e vilas, só que a aristocracia não tinha morrido e, como acontece sempre ao nível do poder quando existem classes antagónicas, havia contradições. É possível ver na empresa da conquista de Ceuta precisamente essas contradições que mostram que a dominância ainda era das forças emergentes da revolução de 1883-1885. O próprio poder da época, D. João, estava bem ligado àqueles que o colocaram no trono.
Nos seus livros sente-se uma análise marxista e a divisão da sociedade em classes, com uma dominante e outra emergente. Considera-se um historiador marxista?
É verdade que a obra de Marx pôs em evidência a luta de classes no século XIX, embora essa ideia não lhe fosse originária. Fui um leitor de Marx, mas não apenas. A minha tese de licenciatura é sobre Gottfried Wilhelm Leibniz, filósofo do século XVII. De alguma forma também estudei profundamente Baruch Espinoza. Agora, é indiscutível que na altura em que escrevi o livro houve uma influência da leitura de Marx e, na minha opinião, é extremamente positiva do ponto de vista historiográfico. Em História não podemos partir das ideias de - seja lá de que filósofo for - e depois irmos aos factos para os meter a martelo para condizerem com as ideias. Isso em História não existe. Ponham-me o rótulo que quiserem, mas a verdade é que eu parto dos factos e daquilo que eu sou já, aquilo que pensei e penso. O que domina não é o que eu pensava, mas aquilo que os factos comprovam ou não. Estou a narrar os acontecimentos e a meter as pessoas nos acontecimentos. Não é tê-los fora e escrever abstrações sobre abstrações que não levam a nada. Marx foi um grande filósofo e economista da economia clássica, tudo bem. Tem livros magníficos, mas não é o único e nem acabou com ele [o conhecimento]. Isto é, o conhecimento da sociedade, que é hoje muito mais contraditório do que no tempo de Marx. Vamos deitá-lo fora? Claro que não, de maneira nenhuma.
No “Raízes da Expansão Portuguesa”, coloca os vários indivíduos como representantes das classes. Na invasão de Ceuta foi a burguesia emergente que fez força para que acontecesse, mas depois a nobreza queria avançar e a burguesia recuou. Porquê?
Creio que inicialmente estavam todos entusiasmados com a possibilidade de Ceuta. O segredo foi muito bem guardado. A rainha D. Filipa de Lencastre morreu de peste e mesmo assim a expedição foi para a frente. Havia muitos nobres no terreno, como Nuno Álvares Pereira, que apoiaram e quiseram ir. No conselho em que se decidiu a ida a Ceuta foi dita uma frase: “Rume-se ao além”. Eram os grisalhos de Aljubarrota que apoiavam a iniciativa, mas depois de conquistada e roubada - porque foi de facto um saque completo - houve aqueles que se dividiam sobre o que se fazer a Ceuta. [À nobreza] interessava muito mais a intrigalhada com Espanha e aos outros não, porque era a porta de entrada no Mediterrâneo. Ceuta era uma porta chave para a burguesia marítima.
Chegou inclusive a escrever que a nobreza estava disponível para criar um confronto com Espanha e a colocar em causa a independência nacional só para manter o poder.
Ao quererem entrar nos conflitos internos de Espanha estavam na verdade a colocar em perigo Portugal. Uma das razões para que Portugal tenha ido para fora [optado pela expansão marítima] era por ter corpo pequeno, isto é, o mar é a fronteira que se abre para fincar o pé relativamente ao muro de Castela, que não é muro nenhum.
Ceuta foi o primeiro empreendimento do que viriam a ficar conhecidos como “Descobrimentos”. Há uns tempos houve uma polémica sobre um futuro museu dos Descobrimentos e o professor afirmou que era um “absurdo”. O que queria dizer com isso?
A expansão portuguesa significou muito para a História da Humanidade. Levou à descoberta de todo o Atlântico Sul, levou os europeus a conhecerem África, um vastíssimo continente que nem vinha na Bíblia. Portanto, provocou o primeiro grande conhecimento por parte do Homem da sua própria casa, a terra. Isto é um acontecimento fantástico à escala humana, à da Humanidade. Claro que esse acontecimento provocou muito sofrimento, isto é, desenvolveu a escravatura - que já existia - e levou a uma guerra marítima na Ásia com a chegada dos portugueses pelo controlo do comércio das especiarias. Tudo isso faz parte. Um museu pode ter esse nome ou outro, mas tem de ser sobre este grande acontecimento dos portugueses no mundo na época dos Descobrimentos - porque houve efetivamente Descobrimentos.
Não acha que chamar “Descobrimentos” aos Descobrimentos é relegar para um segundo plano a dizimação de povos na América Latina e em África numa imagem áurea do passado português.
Depende do conteúdo que se colocar no museu. Até se podem pôr descobrimentos entre aspas. Deve-se discutir o nome, mas principalmente o seu conteúdo. É claro que os portugueses fizeram malandrices em série, mas também lhes fizeram malandrices. Aquilo não foi uma guerra de inocentes. A chegada dos portugueses ao Brasil provocou desde logo uma catástrofe do ponto de vista sanitário, depois a escravatura do índio, que se aldrabou durante séculos. O índio foi escravizado e não aguentava, não tinha força, e por isso é que veio o negro. Isso é que é o tema do museu, não é só a chegada. Se contarmos a verdade sobre a chegada de Vasco da Gama à Índia, vamos contar que ele se safou de o matarem por um triz. Há muitos filhos de colonos portugueses da época que estão hoje muito incomodados, mas eles não são responsáveis. Eu não sou responsável pelo que os portugueses fizeram.
Acha que não temos de pedir desculpas?
Julgo que isso é mais um pro forma. Cito apenas um caso especial: durante anos tenho-me batido para que haja um monumento no Campo das Cebolas ou no Terreiro do Paço dizendo ao povo português que durante três séculos queimou todos os anos gente na praça pública por terem ideias diferentes. Alguma vez apareceu e foi posto um monumento sobre isso?
Acha que o passado português da Inquisição é apagado da História?
Disseram-nos que nos tinha libertado das guerras religiosas, mas o que é que nos trouxe? Trouxe-nos um subdesenvolvimento intelectual durante quase três séculos. Quando chegámos ao século XVI, alguns autores estavam na vanguarda do progresso científico, dado precisamente pelas navegações. Navegar não era como agora. Era numa casca de noz com instrumentos de coordenadas que não são os de hoje, noites horrorosas, tempestades, morriam em massa nas tempestades.
Nasceu em Murça, em Vila Real, e aos 20 anos veio para Lisboa.
Fiz 20 anos em Lisboa.
Passou mal quando cá chegou.
Muito mal. Cheguei sem dinheiro. Um amigo tinha-me emprestado 200 escudos, não tinha quarto e não conhecia nada de Lisboa, embora tivesse cá vivido um ano e tal quando era miúdo. Não sabia sequer ao certo onde era a Praça do Comércio. Matriculei-me em Direito e um amigo conterrâneo levou-me para o quarto dele, mas a dona da casa não gostou nada. Lá fiquei a viver por três meses, enquanto procurava emprego. Era um estudante de Medicina da minha terra que me pagava as sandes por não ter dinheiro para comer.
Qual o impacto que isso teve na sua vida?
Teve muito impacto. Podia ter morrido com uma daquelas doenças da fome. Até que consegui emprego. Cheguei em outubro e no Natal arranjei emprego.
A fazer o quê?
Na Junta Autónoma das Estradas. Fiquei nesse emprego até fugir de lá.
Entrou em Direito, mas no segundo ano abandonou-o para se dedicar à luta contra a ditadura. A dureza da sua chegada a Lisboa contribuiu para a sua politização?
Já vinha com ideias revolucionárias de Murça.
Como é que as adquiriu?
A minha terra tinha dado à luz um grande revolucionário: Militão Ribeiro, que militou no Brasil, na Coluna Prestes, e que foi depois deportado. Passou um tempo no Tarrafal até ser libertado em 1945. Não foi ele propriamente, mas as vítimas da PIDE na minha terra que me deram livros a ler. Tinha saído do seminário e estava com um espírito propício. Já vinha mais ou menos revolucionário, mas depois quando entrei na faculdade aderi logo ao movimento estudantil. Quando abandonei os estudos foi para me dedicar em exclusivo à luta política.
Aderiu ao Movimento Unitário Democrático e tornou-se seu funcionário.
E depois funcionário do Partido Comunista Português.
E foi aí que a PIDE foi pela primeira vez à sua procura, no trabalho.
Tinha criado em Murça uma biblioteca popular e dei-lhe os meus livros. Um dos jovens da minha terra, o meu primo, estava à frente da biblioteca e a PIDE decidiu ir interrogar os fundadores da biblioteca. Éramos quatro. Quando me avisaram que a PIDE me ia buscar ou pelo menos saber de mim, pus-me ao fresco e entrei na clandestinidade.
Como é que viveu a clandestinidade?
Não tinha casa própria. Dormia aqui, ali e acolá. Foi assim dois anos e tal. A dada altura, teoricamente, iam-me dar um ordenado para comer, mas comia mal e porcamente, digamos. Foram anos muito difíceis, mas com muita esperança e alegria extraordinárias. Era uma vida dura e rude, mas éramos jovens e tínhamos confiança e esperança no combate, embora fossemos uma minoria.
Como aguentava essa dureza?
Estávamos ligados uns aos outros e havia uma espécie de fé de que tudo ia mudar. Havia a ameaça de uma guerra atómica à escala planetária e isso dava-nos força para aguentar. Uma das causas que nos dava força era a da paz. Fazíamos comícios na praça pública, espalhávamos papéis nos teatros e cinemas e organizávamos os jovens.
Mas acabou por ser apanhado pela PIDE.
Fui apanhado na casa de um homem que dava para os dois lados.
Um informador…
Tinha sido preso e tinha ficado ligado. A dada altura apercebi-me de que havia ali alguma coisa. Ainda avisei a rapaziada, mas disseram-me que estava a ver polícias em todo o lado. No dia seguinte entraram duas brigadas da PIDE pela minha casa adentro. Fui para a PIDE e viram que estava muito verde, enviando-me para as celas do Aljube. Estive 180 dias numa cela com luz e noutra completamente às escuras dia e noite. Depois fui para Caxias e daí transportado para o Porto para um julgamento que durou seis meses, acabando por ser condenado a dois anos e nove meses. Fui para Peniche, onde fiquei mais cinco anos. Aí já tinha cumprido um ano e meio de prisão - cumpri um total de seis anos e meio.
Passou 180 dias isolado numa cela. O que fez para lidar com o isolamento?
Só há a memória. A memória vai a horizontes completamente inconcebíveis. Esse isolamento é quebrado para interrogatório e para ir à tortura, mas a maior tortura é para muitos precisamente esse isolamento contínuo, contínuo, contínuo, sem haver nada.
É fácil ficar-se louco?
Comecei aos gritos por duas vezes e fiz greve de fome à porcaria do rancho que davam. Puseram-me na enfermaria, onde comecei a entrar em contacto com os moradores em frente pela janela. Barricaram a enfermaria e levaram-me para a tal cela onde não havia luz absolutamente nenhuma.
O que recordava no isolamento?
A infância, a adolescência, os amores... tudo. A luta. A preocupação inicial é ninguém estar preso, não ter vindo mais ninguém. Isto é, não falei e não apanharam nada. Havia sempre aquela história do: ‘vou ou não aguentar?’ Ou o indivíduo está disposto mesmo a morrer ou, se é por puro jogo, acaba por ser enrolado. Às vezes, não tendo grande experiência de luta e sendo-se verde vacila-se.
Ficou a conhecer-se melhor com esse percurso pela memória?
Esse período teve muita importância na minha vida. Não podia receber nada a não ser alguma correspondência da família. Mas apenas alguma - e já a meio da pena. Nessa altura foi publicado pelo “Diário Popular” o relatório do Kruschev ao XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética e deram-me o jornal. Li o relatório e teve uma influência muito grande na minha vida futura.
Foi o que o fez abandonar o PCP?
Não imediatamente, mas fez-me não continuar a vida de revolucionário que levava.
Esteve em Peniche e recusou-se a aderir à histórica fuga de Peniche. Porquê?
Não queria voltar a esse tipo de vida e queria desenvolver aquilo que comecei, o estudo da História. Foi essa a razão fundamental. Estava inteiramente irmanado com os fugitivos e sofri. Estive lá dois anos e meio [depois da fuga] e fui parar à estátua.
Como era a tortura da estátua?
Era estar de pé sem dormir. Um dia, dois dias, quatro dias, uma semana. A alguns rebentavam-lhes os sapatos, os pés. Esta era a tortura e quando os presos se deixavam dormir batiam com a régua numa secretária. A dada altura começam a ter visões. Estive pouco tempo nesta estátua, pouco mais de 24 horas, porque houve uma grande movimentação cá fora e me deu um ataque de loucura lá dentro. Comecei aos berros dentro da PIDE e a pedir que me matassem de uma vez.
Levaram-no ao desespero.
Entretanto, entrou o meu pai quando estava a fazer de estátua.
Qual foi a reação do seu pai?
Deu-me uma grande firmeza, não me abateu. Eu aguentava aquela posição. Só à porrada é que acabavam comigo.
Essa força de espírito vem de onde?
Não sei, pá. Talvez da minha mãe. Isso vem da própria vida.
Ainda se casou na prisão. Foi já depois de ter decidido abandonar a vida de revolucionário?
A fuga foi um ano depois do casamento. Casei-me para a minha mulher me poder visitar. Foi uma luta que durou mais de um ano, mas finalmente casei.
Mas separado na cerimónia.
Começou separado, mas acabou do mesmo lado. O meu sogro começou a gritar que era impossível e então os guardas e a PIDE lá me puseram ao lado da minha mulher.
Como foi partilhar a cela com Álvaro Cunhal?
Eu era muito desleixado e estava-me a marimbar como é que andava. Pedi ao meu pai uns socos transmontanos para chegar à guilhotina da janela para ver o baleal, porque se não tinha de me por de bicos para o ver. Então o meu pai trouxe-mos e fiquei mais alto. O Cunhal um dia disse-me para coser a camisola rota no cotovelo. Chateou-me tanto que lhe disse para ma coser e coseu--ma. Isto dá um sentido do laço de camaradagem muito grande. Discutíamos e trocávamos livros. Mandei comprar a “Crónica de D. João I” e ele serviu-se dela. Ele tinha autorização para trazer livros de arte e o que aprendi sobre arte aprendi com ele e com os livros que ele conseguiu esconder debaixo da camisola para levar para a cela.
E as relações de camaradagem mantiveram-se depois de ter abandonado o partido?
Ele ficou magoado, é evidente. Mas a amizade manteve-se e tenho uma alta consideração pelo político, pelo homem.
A ligação ao partido manteve-se?
Sou amigo deles [risos], mas acho que o historiador não se pode ligar em demasia, principalmente se for de História Contemporânea.
Saiu em liberdade, dedicou-se à vida académica e tornou-se professor de História. Como viveu o 25 de Abril?
Foi a liberdade de facto. Nunca tinha havido tanta liberdade, até disseram que havia demasiada liberdade. A liberdade foi para a rua e impôs-se. Até a liberdade sexual se discutia nos comboios da linha. Foi uma espécie de ano e meio de embriaguez.
Quando as massas entram no processo histórico pelas suas próprias mãos…
Exatamente [risos].
Acha que as gerações mais novas têm memória do que foi a ditadura?
Não têm. Há minorias, há sempre gente, mas agora está tudo afastado do que é profundo. O grande mestre da vida é agora a televisão, mas o que é que ensina? Divertimento. Não é a leitura, a escrita ou o aprofundar dos temas. Claro que há gente magnífica e que aprofunda -não vamos subestimar a situação atual -, mas a grande massa está à superfície. É claro que ela pode despertar - nada de ilusões quanto a isso -, mas está pacificada. Hoje não é tanto a religião que a pacifica, mas o inimaginável divertimento que se dá aos jovens, mas não se dá muito aos mais pobres, a esses dá-se muito pouco.
Acha que um dia essa “massa” pode despertar?
Há altos e baixos, isto é às ondas. Acho que neste momento não estamos nem em baixo nem ao alto, estamos no meio, a meio gás.
Como vê a situação política hoje?
A Constituição é o instrumento orientador fundamental e creio que devemos ter plena consciência disso. Podemos melhorar - sobretudo no campo dos direitos humanos, das desigualdades e da miséria extrema que se vive em Portugal -, mas dêmo-nos por felizes apesar de tudo, das contradições, dos escândalos de que a televisão é ávida para entreter. Eu que vivi uma vida revolucionária não sinto vontade em fazer uma revolução de maneira nenhuma. Sinto-me bem com o Portugal de hoje, com todas as contradições e diferenças. Mal de nós se houver um país sem diferença, seria um país morto.
Isso não pode soar a um apelo à resignação?
De maneira nenhuma. É preciso tomarmos a palavra sempre que a injustiça nos bata à porta ou à dos outros. Tudo o que disse é tendo em conta o mundo. Não vivemos isolados, mas num universo extremamente contraditório, em que a violência atingiu limites extremos.
Reformou-se em 1998. Sente falta de dar aulas?
Sinto falta, mas o meu corpo já não aguenta duas horas a esse ritmo. Quando dava aulas era praticamente sempre em diálogo e altamente participativas com matérias para discutir e ir ao fundo e não ficar pela superfície.
Acha que falta espírito crítico na universidade?
Acho. É pior que a sebenta em alguns casos, agora nem apontamentos os alunos tiram. Dão ao dedo no tablet. Nem a mão se desenvolve com a escrita, o que é dramático para mim. A mão e a mente andaram sempre juntas.
Sente isso também na historiografia?
Desenvolveu-se muito nos 40 anos depois do 25 de Abril. Não é que antes não tivessem existido grandes historiadores, mas antes do 25 de Abril ficava-se pela época moderna. Hoje há um grande desenvolvimento da História Contemporânea.
Uma História crítica ou subserviente ao poder?
As duas coisas. Ainda continua a haver a História que deixa um bocado na sombra a parte crítica, mas de uma forma geral, mesmo a mais conservadora, tem dificuldade em omitir determinados factos. Pode-lhes dar uma outra interpretação, mas tem dificuldade em omiti-los. É necessário colocar-se os factos e as pessoas, como é que elas viviam e pensavam.
Depois da queda da URSS foi dito que se tinha chegado ao fim da História. As ideologias e a utopia terminaram?
Isso foi uma propaganda e uma estratégia ideológica. Qualquer historiador sabe que a sociedade não desapareceu e que as classes sociais continuam a existir e que são contraditórias. Na verdade, houve como que uma rendição de um dos blocos e um avançar galopante do outro bloco pelo planeta. Vieram as novas guerras - brutais - e a guerra económica, que por vezes não é menos brutal que a guerra [tradicional] por matar a população civil em massa.
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