O discurso dominante é economicista, tecnocrático.
Fala de competitividade, empregabilidade, PIB, baixos salários e mercado. É altura de se falar de economia política.
1 - O que é a economia?
2 - Os economicistas, os escribas do capitalismo
3 - O mercado e a irrelevância de quem trabalha
1 - O que é a economia?
Para Aristóteles[1], na senda de Thales de Mileto, economia significava a administração da casa, do lar que abarcava uma família e, no caso dos mais ricos, também os criados e os escravos, aparecendo também associada a frugalidade. A economia estava estreitamente relacionada com as necessidades humanas dos membros de uma família e exigia, no seio desta, uma adequada gestão, um conjunto de práticas baseadas no bom senso.
Esta definição, de irrecusável sensatez era objeto, para Aristóteles, de uma clara distinção face à crematística, a prática do enriquecimento, da acumulação de dinheiro como objetivo essencial, tomada como um desvio contranatura que desumaniza, uma vez que o objetivo passa por uma constante tentativa de superação para atingir algo que nunca pode ser alcançado – o infinito.
Ainda para o filósofo, no caso da economia, a focagem faz-se numa atividade humana natural, com fins precisos e delimitados; por seu turno, a crematística apresenta-se como uma compulsão demente, cuja realização obriga a todas as vilezas; a mentira, a estratificação social, a exploração laboral, os antagonismos culturais e xenófobos, o roubo, a especulação, o saque, a guerra, o assassínio, a predação ambiental e a utilização do aparelho de estado para o feitura de leis e o exercício adequado daquelas para o favorecimento da satisfação insaciável dos possuídos pela crematística – os capitalistas, as classes políticas e os avatares das business schools que incutem nos jovens uma volúpia psicótica.
No feudalismo, a grande maioria da população vivia no campo, sem vínculos económicos, numa atividade de subsistência e com poucos excedentes que eram canalizados para as cidades – que, em geral eram pequenas - e para as cortes dos senhores e dos dignitários eclesiásticos. Na produção familiar era preciso assegurar a subsistência e contar com o tributo a dar ao senhor que era o dono das terras, a quem se devia obediência e agradecimento pela segurança propiciada (… às vezes). Havia um vínculo político do servo para com o senhor e o tributo medido em sacas de cereal[2] selava esse vínculo, não correspondendo a qualquer elo económico, como é a norma no capitalismo. A fuga a esse vínculo era, em regra, com destino a uma cidade, onde a vida era menos penosa e o controlo senhorial menos presente, sobretudo na Itália e na Flandres.
As formas de comércio de longa distância atingiram grande relevância no Império Romano e as atividades bancárias desenvolveram-se a partir da Idade Média, incorporando elementos que se viriam a designar como capitalistas; porém, inseriam-se em sociedades dominadas por realezas, cleros poderosos, senhores feudais. No essencial, a produção material de bens e serviços balizava-se essencialmente na satisfação das necessidades coletivas das diversas comunidades e, só marginalmente, para destinatários geograficamente distanciados.
A dicotomia entre economia e crematística influenciou a Igreja durante grande parte da Idade Média favorecendo, implicitamente os judeus que praticavam a usura e o comércio longínquo sem condenação teológica proveniente do seu credo. No século XIII, numa época em que o comércio internacional na Europa se expandia, com a afirmação de abastados banqueiros e comerciantes, Tomás de Aquino, preparou a mudança teológica, aceitando a acumulação de capital… desde que o mesmo tivesse um fim virtuoso, a caridade[3].
No seu conceito actual, a economia politica enquadra os sistemas produtivos, de circulação e de consumo de bens e serviços, bem como as relações sociais inerentes àqueles serviços, tornando-se comum o seu uso somente no século XIX[4], com a maturidade do capitalismo, quando a produção para o mercado se tornou dominante e o regime da propriedade privada ocupou o planeta.
Indissoluvelmente ligada a um modo de produção - o capitalismo - a economia terá de ser essencialmente política, uma vez que influi e domina a vida de quase todos, no âmbito das relações sociais, das culturas, dos aparelhos de estado e de representação que conhecemos, ou a regulação da propriedade, extensiva ou influente em quase todos os parâmetros da nossa vida social. A abordagem do sistema produtivo capitalista, envolve uma matriz de ciências, disciplinas e técnicas que estão no cerne da sociabilidade humana recente, quando as relações entre as várias áreas do planeta se densificam, quando os meios materiais de produção se aperfeiçoam e as tecnologias associam grande complexidade com uma durabilidade útil relativamente curta. Estando subjacentes conflitos e antagonismos entre classes e camadas sociais, nações e interesses particulares versus interesses de grandes massas de pessoas, naturalmente o epíteto de economia política tinha (e continua a ter) uma total e inelutável coerência. Desde sempre a economia política teve de integrar num fundo comum – e de forma criativa consoante o espaço, o tempo e os protagonistas em presença - outras abordagens como as da geografia, da geopolítica, da sociologia, da psicologia, da antropologia, do direito, da história. A integração mínima entre essas disciplinas é essencial para compreender a realidade, proceder à crítica social e das instituições, à avaliação das disfunções e perigos resultantes das acerbas disputas pelo controlo dos recursos e das pessoas, que os trabalham e podem consumir, da ligação entre os grupos humanos e a Terra, na sua mais vasta acepção.
As leituras socialmente assépticas têm um lastro pesado na história da economia política. Por exemplo, Lionel Robbins, nos anos 30 equipara a economia à mecânica, define a sua neutralidade face aos fins desejados pelos intervenientes humanos, uma ciência dedutiva, positiva, despojada de juízos de valor; estava-se então em pleno reinado do liberalismo económico. Este tipo de leituras tecnocráticas está muito em voga nos dias que correm – tempos de preponderância neoliberal - quando se observam as universidades a promoverem “ciências empresariais” depois das gerações anteriores terem castrado a política à economia. Nessas “ciências empresariais” o estudo sublinha as técnicas contabilísticas - estas também tomadas como “ciências contábeis”- mesmo que não passem de técnicas baseadas em princípios convencionais, como as partidas dobradas, do “deve” e do “haver”; a que se devem juntar as habilidades perante a caconomia fiscal, o manuseamento dos “packages” informáticos, a leitura das fugazes métricas das bolsas, a atenção às apreciações capciosas ou desastradas das empresas de rating, a validação como reais, dos dados contidos nos balanços (sobretudo dos bancos), a integração da volúpia das pirâmides de Ponzi que alicerçam os mercados financeiros como virtuosos instrumentos de criação de “valor”.
Na mesma lógica tecnocrática incluem-se os complexos modelos estatísticos inseridos em pesadas técnicas matemáticas, com o desinteresse pela análise concreta da realidade e dos fins que devem enformar a política[5]. As decisões das autoridades nacionais e comunitárias, do BCE, baseiam-se nesses modelos? Claro que não. São enformadas, na concertação entre os governadores dos bancos centrais, devidamente informados pela Goldman Sachs, pela Merryl Lynch e afins, onde trabalharam ou têm relações próximas, para procederem de acordo com as conveniências daqueles colossos financeiros.
Esta despolitização da análise económica tem vários intuitos. Por um lado, cingir essa análise a simples aspetos técnicos, cujo significado profundo é a consideração de que o modelo de sociedade e o capitalismo como o vivemos, não são elementos históricos, insertos numa transição entre o passado e o devir mas, como elementos consolidados, inerentes a qualquer sociedade, considerados como construções divinas de obrigatória aceitação pelos humanos que não queiram ser ímpios. Nessa narrativa, pretende-se isolar os contestatários ou simples discordantes, como elementos dotados de uma qualquer incapacidade que os torna desviados das alegrias do consumo, do endividamento, da precariedade de vida, dos néons publicitários e da inserção na lógica competitiva focada, globalmente, na criação da riqueza, do aumento do PIB. As insuficiências e as derivas típicas do capitalismo tornam-se apenas inconveniências passageiras, resolúveis com soluções técnicas, correções, ajustamentos, eventualmente dolorosos (para os “de baixo” como é óbvio) mas inevitáveis, exigindo aos afetados, fé, paciência e espirito de sacrifício. Esta é a narrativa do neoliberalismo, a do TINA, a do fim da História.
Ainda no século XIX, David Ricardo e Marx e, mais tarde, Keynes acentuaram o carater social e político da realidade económica recusando observá-la com meros utensílios técnicos de gerir recursos escassos de modo racional; e para mais sabendo-se que a racionalidade é algo tão diversificado quanto os indivíduos. Em áreas sociais, a própria racionalidade não está nem poderá estar desligada dos interesses, das aspirações de quem decide ou pretende decidir; e, tanto assim que Keynes defendeu a forte intervenção estatal já aplicada na Grande Recessão e enformou o que se veio a chamar o modelo keynesiano que ainda hoje tem adeptos em gente de “esquerda” ou nacionalistas; e que foi aplicado, implicitamente na Alemanha nazi, com a íntima ligação entre o estado alemão e os grandes empórios industriais germânicos[6].
2 - Os economicistas, os escribas do capitalismo
Precisamente porque se trata de uma área onde os juízos de valor pontuam fortemente a leitura da realidade e das escolhas, há frequentes casos de imbecilidades proferidas por aqueles economicistas que os media escutam com servil deferência ou, que não relevam por ignorância ou obediência. Por exemplo, Paul Samuelson, terceiro galardoado com o Nobel da Economia considerava-se o maior economista vivo embora tenha afirmado que as ondas longas definidas por Kondratiev na segunda década do século XX eram apenas “ficção científica”. O venerado Keynes ainda em 1927 dizia “Não teremos mais nenhum crash no nosso tempo”; porém, o tempo … acabou por encolher muito depressa. A conceituada Harvard Economic Society revelava em 10 de novembro de 1929 que “uma depressão séria parece improvável; esperamos uma recuperação dos negócios na primavera e um crescimento no outono”. Este tipo de discurso esperançoso veio a constituir a norma de primeiros-ministros, ministros das finanças, eurogrupos, FMI, OCDE e dos plumitivos ao seu serviço. Em 1997 o “nobel” da economia recaiu sobre dois economistas (Merton e Scholes) que entusiasmaram com uma estratégia de tornar os mercados de derivados lucrativos e seguros; mas, com tanto azar que logo no ano seguinte houve uma crise financeira que exigiu a intervenção dos bancos centrais para evitar maior descalabro. O reconhecido “maestro” Greenspan confidenciava em 2008; “cometi um erro ao presumir que os interesses próprios das organizações, particularmente bancos e outros, seriam os mais capazes de proteger os seus próprios acionistas e os capitais investidos nas empresas”. Ao que parece acreditou no pai natal até idade avançada.
Quem preferir oráculos mais recentes poderá consultar uma boa porção deles aqui ou acompanhar as revisões das previsões feitas pelo poderoso FMI durante cada ano, começando com um otimismo que a realidade desmente mês após mês. Em dezembro do ano passado, Krugman, prémio “nobel”, venerado pela “esquerda” lusa, avisava ser problemático para a competitividade portuguesa um aumento do… salário mínimo.
Podemos também referir dislates de sumidades lusas. Braga de Macedo, ministro das finanças de Cavaco em 1991, declarava que Portugal era um oásis na Europa, então assolada pela recessão; o oásis afinal estava seco e veio a profunda crise de 1993/95, em que o poder de compra dos portugueses terá baixado uns 15%, selando o fim do cavaquismo. Pela mesma altura, um avatar que foi administrador do Banco de Portugal, um apaixonado pelos modelos macroeconómicos – Abel Mateus – anunciava que o PIB português iria aumentar… 10%; afinal o que aconteceu foi a crise. O economicismo é, muitas vezes, um misto de ignorância e pedantismo quando não é capa para a aldrabice.
Um economicista ilustre, Alfred Marshall, há cerca de cem anos, apontava para a maximização da riqueza a partir da soma das maximizações das satisfações individuais abrindo caminho à tara moderna do crescimento infinito do PIB, um género do obsessivo (ou demente) objetivo de alcançar Deus. Contudo, só no rescaldo da Grande Depressão norte-americana surgiu a ideia de medir a recuperação económica, sendo seu criador Simon Kuznets que, no entanto, teve o cuidado de focar as limitações dessa medida. De facto, de acordo com Kuznets, o PIB valoriza a produção de tabaco ou de armas de igual modo como considera medicamentos ou cereais e os serviços publicitários tal como os serviços médicos. Dizia também que o PIB é sempre uma medida aproximativa, uma vez que não considera a economia informal e todas as entre-ajudas, mormente entre familiares, que muito contribuem para o bem-estar coletivo, sem estarem contabilizadas no PIB nem – para grande pena das classes políticas – pagarem impostos. Já em outras ocasiões observámos as falácias que se escondem por detrás da sigla PIB.
A equiparação popular dos economistas a magos decifradores do oráculo, a sacerdotes conhecedores dos segredos divinos deve-se mais à incultura geral sobre a economia política do que aos méritos dos enfatuados avatares que surgem a todo o momento a opinar sobre a realidade económica. Passos e Maria Luís que terão pago propinas para a obtenção de diplomas em economia fazem parte desse vasto leque, como os jornalistas Helena Garrido ou Camilo Lourenço (este, até será licenciado em direito).
Sem desprimor para muita gente bem preparada na compreensão da realidade global, com maior incidência sobre o que se relaciona com a economia política, sublinhamos os conhecimentos de David Graeber (antropólogo, não publicado em Portugal), Anselm Jappe (filósofo), Noam Chomski (linguista), Antonio Negri (filósofo), Michael Hardt (filósofo e teórico de literatura), Paul Mason (jornalista, musicólogo e cientista político) e outros; com nomeada equiparada, não conhecemos nenhum economista empenhado contra o capitalismo.
3 - O mercado e a irrelevância de quem trabalha
Mercado é um conceito oriundo da designação dada ao local de encontro regular de compradores e vendedores, membros de uma comunidade local ou regional, para a troca dos seus bens, dos seus excedentes, numa atividade baseada na satisfação das necessidades familiares. A subsistência exigia, demasiadas vezes, trabalho árduo e nem sempre com os efeitos desejados, em virtude das vicissitudes meteorológicas, de guerras e pilhagens, das doenças e das imposições dos senhores.
A produção para o mercado tornou-se apanágio do capitalismo e o bem produzido (mercadoria) passa a ter um destino abstrato, indefinido, uma reserva de valor, de trabalho incorporado e cristalizado, tornando-se secundário se serve (e quando) ou não serve para a satisfação de necessidades; o que importa é a valorização que o mercado faz desse bem, em princípio, proporcional ao volume dos que o desejam (a procura). Para que essa reserva de valor em mercadorias aumente e com ele a riqueza e o património do seu detentor é preciso acrescer a produção de mercadorias, promover a sua venda, em prejuízo de concorrentes, gerando capital-dinheiro. Para esse efeito o figurino medieval, fechado, das corporações de artes e ofícios[7] era insuficiente para a produção de bens destinados a uma população presente numa área bem definida; tornou-se necessário arregimentar mão-de–obra para produzir os bens, destinados a compradores e locais fora da esfera habitual e cujo conhecimento era detido, em exclusivo pelo capitalista.
Para aumentar essa geração de capital, é preciso que o capitalista adquira matérias-primas, equipamentos e força de trabalho em condições otimizadas; e que o detentor dessa força de trabalho não constitua para o capitalista outro encargo que não o correspondente ao tempo de trabalho necessário. Isso constituiu uma enorme vantagem face à escravatura pois, neste caso, há uma responsabilidade objetiva sobre a vida e as condições de vida do escravo; se este morrer, adoecer ou fugir, o seu dono não terá quem o substitua a não ser que compre outro escravo. Em capitalismo, se o trabalhador adoecer ou morrer, se tiver ou não meios de subsistência para si ou para a sua família, o capitalista não tem sobre isso qualquer responsabilidade e terá, quase sempre, quem queira ocupar o lugar daquele trabalhador. Na escravatura adquiria-se a “máquina”, em capitalismo aluga-se.
Nos tempos que correm, vulgarizou-se, para além da contratação habitual do trabalhador pelo capitalista, do aluguer direto da “máquina”, a prática da externalização. Esta, consiste num contrato de prestação de serviços entre duas empresas em que uma delas tem por função o fornecimento à outra de um rebanho de precários, um lote de “máquinas”, numa postura semelhante à dos negreiros do século XXI. Os ditos trabalhadores colocados ao serviço apresentam-se como máquinas alugadas pelas “tecnológicas” empresas de trabalho temporário, cujo papel é o de fornecerem força de trabalho, precarizada, temporária, mal paga, sem direitos e em local variável. A segmentação dessa prática de aluguer é um símbolo do parasitismo do capitalista e configura o que se designa por alargamento da “cadeia de valor”.
Nas sociedades atuais e, mais do que nunca, entre o produtor e o consumidor, deixou de haver qualquer vínculo ou sequer, conhecimento mútuo; tanto podem estar próximos, como em continentes distintos. É o mundo da mercadoria e nele se defende a ilusão de que o mercado tudo resolve, de que há uma inelutável tendência para o equilíbrio entre oferta e procura. Esse conceito, pura ideologia, traduz o interesse de uma camada social que, dominando a economia e a esfera política pretende perpetuar uma situação de onde extrai grandes vantagens, em detrimento da grande maioria da Humanidade e do equilíbrio ambiental a nível planetário.
Para o capitalista, essa separação tem o objetivo preciso da acumulação de capital, uma vez que o seu próprio consumo não será problema. Para quem não é capitalista, para quem a acumulação de capital não é o objetivo central de vida, esta centra-se na satisfação das necessidades, encaradas na sua forma mais lata, como as efetivas e naturais, relacionadas com alimentação, habitação… a que se devem adicionar as supérfluas, as induzidas pelo consumismo, pela moda, pela publicidade. Os “de cima” produzem o que lhes convém e aos “de baixo” falta-lhes o que precisam; a harmonia entre esses dois mundos tem uma probabilidade infinitesimal.
No frenesi da satisfação dessas necessidades, sem qualquer controlo ou intervenção nas decisões que conduzem à produção de bens ou serviços, a vida dos 99% resume-se à venda da sua força de trabalho, à submissão a capitalistas, ao Estado que decreta as leis e demais condições que convêm ao capitalismo, no sentido da perenidade desse sistema económico. A intermitência na vida de cada um, entre períodos com salário e outros em que ele não existe - substituído por um subsídio concedido como um favor - agrava-se nas situações em que nem um, nem outro existem, com vidas em inanição, de expedientes, na chamada economia informal, perseguida pelos esbirros do Estado. Para os mais velhos, já afastados do “mercado de trabalho”[8] a sobrevivência nem sempre é fácil, sobretudo nos casos em que é preciso ajudar filhos e netos desprovidos; e os cortes na saúde e na reforma configuram uma situação de genocídio suave. Em todo este plano de mercantilização e precariedade de vida, não admira a crescente prevalência de desequilíbrios psíquicos.
A questão do baixo consumo dificulta o escoamento das mercadorias e introduz um limite físico à acumulação tradicional, com a compra de tempo de vida, de força de trabalho. Como os capitais circulam sempre na procura de maiores rendabilidades, tudo o que dependa do consumo de massas humanas empobrecidas pela precariedade e pelos baixos salários ou pensões deixa de ser satisfatório, atrativo. Neste contexto, a defesa da “competitividade salarial”, baseada em baixas remunerações relativas, para atrair investidores é, no mínimo contraproducente.
Os capitalistas, para o efeito, utilizam duas formas de ultrapassar a referida limitação:
- Uma, será conseguir a intermediação do Estado para a constituição de contratos que configuram rendas (as portagens, as parcerias público-privadas, desenhadas muitas vezes de formas escandalosas que configuram casos de corrupção dos signatários estatais) ou encomendas (armas, por exemplo) ou ainda subcontratações, envolvendo os serviços públicos de saúde, educação ou ação social, à custa dos quais vivem enxames de capitalistas, intermediários, contratantes de trabalhadores precários, mal pagos e de parcos direitos. Os recursos financeiros para isso são garantidos pela punção fiscal, paga essencialmente pela multidão[9
- A outra é a aposta nos mercados financeiros, na especulação, na geração de dívida a contrair por famílias, empresas e Estados enquanto formas de cativação de receitas futuras, na compra e venda de empresas, objeto de rápido emagrecimento (o downsizing) para revenda com lucro dos seus ativos mais rentáveis, expurgados, previamente de grande parte dos trabalhadores.
O contributo individual para a produção social deixou de ter qualquer relação com as necessidades, tornou-se abstrato e desligado da vida e da sociedade e, por seu turno, as necessidades sociais não são sentidas como tal, apenas individualizadas. A ligação entre as necessidades globais (não forçosamente sociais, como no caso das armas) e as necessidades individuais processa-se no ditoso “mercado” dominado e manipulado em função dos interesses dos capitalistas.
O caráter de mercadoria da força de trabalho evidencia-se pela contrapartida, por um preço - o salário - que, longe de refletir os ganhos de produtividade na forma de redução do tempo de de vida gasto por cada um, mantém o trabalho tão penoso como sempre foi, sobrecarregado com os custos da atomização produzida pela desinserção social, pela luta pela sobrevivência, pelo pagamento das dívidas, pelo contínuo esforço pela integração na empresa, no trabalho, com horas extraordinárias, biscatos, segundos empregos… Um sufoco, no qual se hierarquizam as necessidades, entre as que podem e as que não podem ser satisfeitas, numa luta constante contra a instabilidade laboral, salarial, os aumentos da punção fiscal, contra a vida tornada precária através da sua própria precarização laboral.
Convirá, a propósito, referir a ideia vulgar de que o “trabalho dignifica” e que quem não trabalha (sem ser capitalista) é um pária, um madraço[10]; essa dicotomia vinca a absorção cultural da mercantilização da vida, empurrando as pessoas para a submissão ao esforço, à penosidade do trabalho[11], a uma reformulada penitência bíblica, seja na fábrica, ao volante ou na monstruosa burocracia que as empresas e o Estado não deixam de aumentar todos os dias. Curiosamente, muitos dos defensores dessa corrente que relaciona trabalho com “dignidade” horrorizam-se com o “Arbeit macht Frei” cujo sentido não é muito distinto do que defendem, embora celebrizado pela associação aos campos nazis de extermínio. A alternativa, nessa narrativa, à “dignidade” do salariato será a proscrição; a mansa inserção no mundo do trabalho, contudo, é a coisificação, a assunção da categoria de mercadoria, não sendo fácil perceber onde está a dignidade de uma condenação à subordinação vitalícia.
Que o capitalismo se apropria dos ganhos da produtividade é uma evidência se tivermos em consideração o enorme incremento das possibilidades da tecnologia e, em contrapartida, para muitos, jornadas reais de trabalho (para quem o tem) idênticas às de há cem anos; quando tudo indicaria que todos tivessem uma vida decente trabalhando muito menos horas. Tendo em conta que a população mundial é hoje muito superior à de então; que há uma crescente parcela das populações afastada da vida laboral e que a longevidade é claramente maior, torna-se claro que há uma parcela crescente da Humanidade imprestável para o capitalismo. São todos aqueles que não interessam como trabalhadores – os menos qualificados, os qualificados tomados como pouco necessários à vida das empresas, os doentes, os desempregados, os muito pobres e ainda os mais velhos que para além disso, na generalidade, não são animadores do consumo; isto é, não são geradores de rendimentos interessantes para os capitalistas. Há ainda a considerar os milhões de pessoas, inseridos no “mercado” ou não, que são desprezados pelo capital; referimo-nos aos tratadores de doentes, velhos e crianças pequenas e ainda aos professores que ensinam os filhos dos trabalhadores pobres. Neste contexto, toda esta enorme massa de gente é inútil, supérflua e pode desaparecer, do ponto de vista dos capitalistas. Como tecnicamente é caro, não os podem enviar para Marte mas, vão utilizando fórmulas criativas e suaves para não serem competitivos e irem desaparecendo da circulação.
O capitalismo, ao criar a economia enquanto sistema económico, baseado na crematística, primeiramente numa base nacional, em oposição aos de outros países, gerou entretanto, um sistema económico global, opressivo, insaciável, que gera uma informação e um pensamento próprio, único, como matriz onde se inserem as fabulosas previsões de austeras instituições bancárias e internacionais e ancorado em conceitos altamente discutíveis como a concorrência uber alles, a competitividade, o empreendorismo... Essa mescla, qual viscosa beberagem, mostra-se incapaz de dotar grande parte da Humanidade de um bem-estar aceitável, proporcional aos conhecimentos detidos e profundamente desigual; e, para mais, as disfunções que promove vão afetando gravemente os equilíbrios planetários construídos durante milhões de anos.
A incapacidade de compaginar a necessidade prioritária de acumulação de capital com níveis de produção e consumo de coisas úteis e suficientes para a multidão humana é inerente ao capitalismo e essa acumulação, processando-se, hoje, numa escala alargada e global, aprofunda essa contradição. Como arma de defesa e arremesso contra a Humanidade o capitalismo investe fortemente na ideologia, na propaganda, através do controlo e manipulação da informação e, apresentando como produto perfeito e acabado, uma panaceia chamada “democracia representativa” em que os únicos representados são os capitalistas e os gangs partidários ao seu serviço, entre os quais alguns têm por missão a apresentação das alternativas que promovam a ilusão de mudança.
Neste contexto, a multidão mundial posiciona-se distribuída por variadas alternativas sectoriais, parcelares, umas mais realistas, outras mais românticas, outras ainda distraídas por derivas nacionalistas e fascizantes, sem que se cimente um corpo mínimo de ideias que mobilizem uma grande massa de grupos de seres humanos, articulados na sua atuação, sem preconceitos face ao local de nascimento, a cor da pele ou a crença, no sentido da superação do capitalismo.
(Para breve a publicação da segunda parte deste trabalho)
[1] Aristóteles em “Política”
[2] Havia também um outro direito do senhor, o de pernada. Este direito permitia-lhe deitar-se numa primeira noite, com a noiva de um servo, como a selar civilmente o direito deste último a ter uma companheira, sem prejuízo da intervenção legalizadora do padre ou de as pessoas, pura e simplesmente decidirem “juntar os trapos”.
[3] Se esse fim virtuoso fosse a sustentação do fausto na Cúria Romana não deixava de ser caridade
[4] A designação surgiu no princípio do século XVII, com Antoine de Montchretien que usou o termo como uma generalização ao Estado do que se passava na economia, então entendida como doméstica, de acordo com o seu significado, proveniente dos gregos antigos. Ingenuamente, Montchretien equiparava o Estado a um género de lar doméstico alargado, obedecendo aos mesmos comportamentos de racionalidade.
[5] É ilustrativa uma leitura das justificações da Real Academia sueca para a entrega dos prémios “nobel” da economia
[6] Note-se que Keynes escreveu sobre o seu emblemático “Teoria geral do emprego, do juro e da moeda” em 1936, quando o New Deal já estava no terreno, tal como o plano do vale do Tennessee e o plano de infraestruturas e de armamento de Schacht na Alemanha hitleriana.
[7] A versão moderna das corporações foi aplicada na Itália de Mussolini ou no Portugal de Salazar, como forma de fundir capitalistas e trabalhadores num interesse patriótico comum, definido pelos primeiros e pelo seu Estado, como está bem de ver. Atualmente, observa-se na atuação dos reguladores (ERSE, Anacom, Autoridade da Concorrência…) despojados de qualquer intuito de integrar os trabalhadores uma vez que o neoliberalismo esqueceu a encíclica Rerum Novarum que inspirou os corporativismos do século XX; apenas conta a concertação dos interesses das grandes empresas. O corporativismo, na sua forma mais degradada, encontra-se ainda nas designadas ordens profissionais, controladas pelos elementos já instalados de uma profissão, com a conivência do Estado, gerando formas de dificultar o acesso aos mais jovens, de os precarizar, com estágios e exigências absurdas, para cercear a… concorrência e limitar o “mercado” a um género de baronato.
[8] Designação popularizada pelo neoliberalismo que a “esquerda” também adoptou numa aceitação acéfala da consideração da condição de mercadoria, de interiorização da hierarquia estabelecida pelo capitalismo e pelo Estado.
[9] A gritaria, em Portugal, da direita tradicional e dos seus serviçais com funções nos media, contra um eventual imposto sobre a propriedade imobiliária, pela parcela que se situar acima de € 600000 e que abrange apenas 40000 imóveis - é reveladora da alergia dos ricos ao pagamento de impostos; coisa que aliás não os penaliza particularmente. Dentro da mesma linha, o FMI aponta para cortes sobre salários e pensões para equilibrar as contas do aparelho estatal.
[11] A sociológica penosidade do trabalho está contida nas culturas, incorporada na própria linguagem. Em português, castelhano e francês, trabalho deriva do latim tripalium que era um instrumento de tortura. O italiano lavoro vem de laborque significa cansaço, fadiga. Em euskera, que não tem relação com o latim, nekezale está associado a dor e cansaço. O arbeit alemão, mais ou menos semelhante em outras línguas germânicas, está associado a atividade obrigatória de seres escravizados ou órfãos
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